domingo, 12 de julho de 2015

"As Três Vidas", de João Tordo

   As Três Vidas. Por onde começar quando se fala de um dos melhores livros de um dos meus autores favoritos? Talvez começar por dizer que este livro é espantoso. É viciante a  sua leitura. Acabamos um capítulo e desejamos avançar para o próximo, ansiamos por saber o desenlace de uma história misteriosa do princípio ao fim. Tem o seu toque de inevitabilidade, de negrume, de esperança, de desilusão, de amor, de obsessão, um livro à la João Tordo, podemos afirmar. Mais uma vez nos apresenta uma história inusitada, bizarra e misteriosa, mais uma vez nos vai colando às páginas, deixando em suspenso as descobertas e os desenvolvimentos, e mais uma vez nos tira o tapete debaixo dos pés num final tão melancólico como iluminado.
   Agora, a história. O narrador, um jovem, é convidado por Artur Faria, um jardineiro, a trabalhar como secretário de um homem misterioso, chamado António Augusto Millhouse Pascal. Os trabalhos do narrador resumem-se a organizar os ficheiros dos clientes de Millhouse Pascal e de responder às cartas dos mesmos. Tudo parece normal até este ponto. Mas quando o narrador se apercebe que os clientes de MP não são aquilo a que se possa chamar de "normais", dúvidas lhe surgem quanto ao que será ao certo a atividade do seu patrão. A este mistério se juntam muitos outros, como os misteriosos encontros entre o jardineiro e um corcunda, a altas horas da madrugada, a diferença entre os clientes que chegam e os que partem, tudo intensificado pela sensação que o narrador sente de não pertencer àquele lugar e pela insónia causada por essa sensação. No entanto, luz ilumina essa sensação, sob a forma da neta mais velha de Millhouse Pascal, Camila, adepta e praticante de funambulismo, por quem o narrador desenvolve uma paixão. Após muitas reviravoltas tão surpreendentes como bizarras, tal como a descoberta do narrador sobre as atividades reais do seu patrão, que são a redenção dos pecados dos seus clientes obtidas com o auxílio de alucinógeneos e através da hipnose, Millhouse Pascal e o narrador acabam em Nova Iorque, à procura de Camila. A partir daí, e após o reencontro entre esta e o narrador, a vida deste transforma-se numa missão, a missão de juntar os cacos da sua vida e resolvê-los, resolver os mistérios. Mas essa missão revela-se morosa e inconclusiva. 
   É uma história que nos prende. Nunca quis pousar o livro para dormir, queria sempre avançar mais no mistério. Escrito soberbamente por um autor talentoso e genial, é um relato fantástico. Os eventos do século XX estão intrinsecamente ligados à vida de Millhouse Pascal, eventos sangrentos e monstruosos. No final, não chegamos a uma conclusão. No entanto, e aproveitando-me da metáfora do livro, a vida é como um funambulista sobre a sua corda bamba, nunca sabemos como irá acabar e a caminhada é perigosa e precária. As três vidas do título têm várias interpretações. No livro, são as três fases pelas quais o narrador passou, cada uma parecendo, aos seus olhos, uma vida completamente diferente. Pessoalmente, interpreto-as como sendo o passado, o presente e o futuro. O livro divide-se em quatro partes, sendo a primeira a mais longa destas. 
   Que mais posso acrescentar? Este foi o livro de João Tordo que lhe rendeu o Prémio José Saramago de 2009. É, sem dúvida, o melhor que li dele. Mas ainda há muitos para ler. E sei que João Tordo não me irá desapontar. Recomendo, recomendo e recomendo a leitura desta obra genial.

Citações:
"Ainda hoje, sempre que o mundo se apresenta como um espetáculo enfadonho e miserável, sou incapaz de resistir à tentação de relembrar o tempo em que, por força da necessidade, fui obrigado a aprender a difícil arte do funambumlismo."
"O segundo acontecimento foi de uma natureza mais sinistra. Mesmo agora, ao escrever estas palavras, sinto um calafrio ao invocar a memória daquela noite, a primeira de muito frio no Alentejo."
"Achei, naquela altura, que o meu patrão tinha poderes mágicos. Que, através da sua refinada arte, era mesmo capaz de invocar fantasmas, de nos fazer entrar numa dimensão alternativa por onde vagueavam os mortos."


Pontuação: 9.8/10


Requintadas leituras,
Gonçalo M. Matos