sexta-feira, 22 de julho de 2016

"Aparição", de Vergílio Ferreira

   Aparição é talvez o romance de Vergílio Ferreira no qual está presente toda a sua temática literária. A preocupação existencial da condição do homem é uma constante na obra do autor, sendo que é neste livro que se encontra mais aprofundada.
   A história que nos é apresentada neste romance é secundária, é uma mera desculpa do autor para poder anunciar os seus pensamentos, as suas dúvidas e as suas cogitações mais profundas sobre o lugar do ser humano na insondável grandeza da existência. A história segue o atribulado quotidiano do narrador, Alberto Soares, após a sua chegada a Évora para dar aulas no liceu. As suas divagações levam-no a travar conhecimento com o doutor Moura, um velho amigo do seu falecido pai, através do qual conhece os restantes protagonistas deste romance. Por sugestão de Moura, Alberto propõe-se a dar lições de latim a uma das filhas deste, Sofia. Após vários serões com esta e com a família do doutor Moura, o narrador parte de férias em busca de tranquilidade, passando esse Natal com a sua família. Mas essa almejada tranquilidade é interrompida no final das férias, e eis que o protagonista regressa a Évora para retomar as suas aulas. A partir deste ponto, a história vai ficando muito pouco desenvolvida, sendo que apenas são narrados os eventos-chave do quotidiano do narrador e dos restantes personagens.
   Mas a história é o que menos importa neste romance existencialista. Como já referi, a história neste livro não passa de uma desculpa quase que esfarrapada que o autor dá para poder escrever sobre as suas ideias e teorias sobre o lugar do homem no mundo. Todo o livro é percorrido de descrições magníficas dos diversos locais frequentados pelo narrador e por profundas meditações sobre a existência humana e a perceção que cada um tem sobre esta. O autor revela mais a sua faceta de ensaísta que de ficcionista neste romance, sendo que a obra não é mais que uma grande meditação sobre a vida e a existência humana mascarada de história. 
   Achei curioso esse aspeto da obra de Vergílio Ferreira, particularmente deste Aparição, o de que faz um esforço por agradar dois tipos de leitores. Tanto os leitores que preferirem um grande ensaio filosófico sobre o lugar do homem no mundo como os leitores que apreciarem uma história simples recheada de inquietações e de descrições maravilhosas da natureza encontram neste livro uma satisfação às suas preferências.
   Recomendo, portanto, a leitura deste livro. Mas aviso que pode tornar-se maçudo por vezes, para quem não estiver habituado a leituras mais "pesadas" ou para quem olhe apenas para a história, esquecendo a faceta filosófica. Mas que deve ser lido, deve.

Citações:
"Por enquanto sinto a evidência de que sou eu que me habito, de que vivo, de que sou uma entidade, uma presença total, uma necessidade do que existe, porque só há eu a existir, porque eu estou aqui, arre!, estou aqui, EU, este vulcão sem começo nem fim, só atividade, só estar sendo, EU, esta obscura e incandescente e fascinante e terrível presença que está atrás de tudo o que digo e faço e vejo - e onde se perde e esquece."
"- Bem... Não sei como explicar. É assim: mastigar as palavras.
- Mastigar as palavras?
- Bem... É assim: a gente diz, por exemplo, pedra, madeira, estrelas ou qualquer coisa assim. E repete: pedra, pedra, pedra. Muitas vezes. E depois, pedra já não quer dizer nada."
"Nós, os homens das contas complexas de quem aprendeu mais do que as quatro operações, das bibliotecas de catacumbas de quem ousou mais do que o á-bê-cê, de quem arriscou as ideias e as não gastou em palavras, sabemos que a discussão se não esgotou num simples voltar de costas, numa troça de desprezo, embora soberana e eficaz como a das crianças."


Pontuação: 6.9/10


Meditativas leituras,
Gonçalo M. Matos

quinta-feira, 7 de julho de 2016

"Para Onde vão os Guarda-chuvas", de Afonso Cruz

   Este Para Onde vão os Guarda-chuvas revelou-se como uma experiência incrível que confirmou Afonso Cruz como um dos melhores prosadores contemporâneos e como um dos meus autores perdiletos. É difícil, atrevo-me até a dizer impossível, não gostar de ler este livro nem ter a perfeita noção de que tudo, desde a belíssima prosa de Afonso Cruz aos personagens cativantes e às situações envolventes, se encaixa numa perfeita construção. Esta é classificada como uma das melhores obras escritas por Afonso Cruz, e eu estou inteiramente de acordo, quer com quem afirma tal, quer com quem afirma que este autor é um dos melhores que o nosso país tem. A descrição mais interessante deste romance que consigo reproduzir é a de António Mega Ferreira, que afirma que "tal como numa sinfonia de Mozart, não há nem uma nota a mais". Sim, Para Onde vão os Guarda-chuvas é uma obra de arte autêntica e Afonso Cruz é um génio artístico. Este romance é uma pintura, uma paisagem, não só espacial mas também do interior mais profundo da alma humana. É soberbo.
   O pano de fundo deste romance é um Oriente como julgamos, nós, ocidentais, que ele é, com todos os seus aspetos positivos e negativos. A história segue as vidas de Fazal Elahi, um homem modesto cuja maior ambição é passar despercebido, o seu primo Badini, um dervixe (monge errante) mudo, que fala com as mãos, sendo tudo o que diz a mais bela das poesias e a sua irmã Aminah, que berra muito e sonha casar um dia. Estes três personagens compõem a primeira parte do romance, juntamente com a mulher de Elahi, Bibi, e o filho deles, Salim. A segunda parte do romance conta com os mesmos três personagens, acompanhados agora por um indiano apaixonado, Nachiketa Mudaliar, e o filho adotivo de Elahi, Isa. Ao longo do romance vão aparecendo outros personagens que contribuem para o desenlace, como o general Ilia Vassilyevitch Krupin, o mulá Mossud e o jovem Dilawar Krupin. A história possui, do princípio ao fim, um teor de esperança mas de inevitável fatalismo, recheada de um cuidado humanismo na descrição e desenvolvimento dos personagens. 
   Agora, as características que acrescentam ao romance algo de artisticamente brilhante: imagens, fotografias e plasticidade textual. Afonso Cruz auxiliou-se de fotografias de um tabuleiro e das suas peças de xadrez que incluiu em páginas pontuais do romance, como ilustração da história que se desenvolvia. Estão também presentes algumas ilustrações do próprio autor. As páginas tinham por vezes plasticidades textuais, imagismos criados pela estruturação das frases e das palavras. Um exemplo que me ocorre agora, é uma página onde se lê a palavra "desculpa" várias vezes repetida, formando uma rua de um quarteirão de uma cidade. Outra característica, e desta gostei especialmente, foi o capítulo cujas páginas eram pretas e as letras brancas, que eu achei imensamente divertido e interessante do ponto de vista estético. Outro exemplo é um capítulo inteiro composto simplesmente pela repetição da mesma palavra três vezes: "Escarlatina, escarlatina, escarlatina", simplesmente. 
   É um romance brilhante de um autor genial que me deu um enorme prazer de leitura. Devo muito a este autor por me proporcionar momentos de verdadeiro prazer estético quando leio os seus escritos. E não vou parar por aqui. Irei ler tudo o resto de Afonso Cruz. Em suma, este romance é uma obra genial que deve ser lida. Afonso Cruz merece e deve ser lido. É maravilhoso.

Citações:
"   Sabes qual é a diferença entre um sábio
e um devoto como o mulá Mossud?
O devoto, num naufrágio,
salva o seu tapete de orações.
O sábio salva
o homem que se afoga."
"Já reparou que entre os animais é o líder que vai combater com o líder rival? Os animais não mandam os peões para debaixo dos cavalos. No reino animal, os líderes são os primeiros. Se nós fizéssemos o mesmo, os conflitos seriam substancialmente diferentes. E o mesmo princípio não seria aplicado apenas em casos de guerra, Sr. Elahi, mas também em todas as vertentes da sociedade."
"Para onde vão os guarda-chuvas? São como as luvas, são como uma das peúgas que formam um par. Desaparecem e ninguém sabe para onde. Nunca ninguém encontra guarda-chuvas, mas toda a gente os perde. Para onde vão as nossas memórias, a nossa infância, os nossos guarda-chuvas?"


Pontuação: 10/10


Brilhantes leituras, 
Gonçalo M. Matos