sábado, 29 de novembro de 2025

"Homens Imprudentemente Poéticos", de Valter Hugo Mãe

   "Quando Itaro caçou o besouro e o golpeou, até que o seu corpo mínimo restasse apenas mancha na madeira do chão, era mais do que o besouro que queria matar." 
   Num Japão longínquo, no tempo e no espaço, Itaro, um artesão de leques dotado de uma capacidade preditiva incomum, e Saburo, um oleiro dotado de uma empatia ainda mais incomum, vizinhos um do outro, vivem uma inimizade latente que se vai manifestando com maior ou menor intensidade. Tanto um como outro são dotados de capacidade e missão reflexas: se Saburo cria os seus potes e cuida de um lindíssimo jardim de flores na esperança de evitar um mal inevitável, Itaro cria os seus leques e resguarda o sentimento para si, sempre racionalmente, para não atrair os males do mundo. A pouca felicidade que ambos encontram no meio da miséria resulta dos que lhes são próximos - no caso de Saburo, a sua mulher, Fuyu, e no caso de Itaro, a sua irmã cega, Matsu, e a criada de ambos, Kame. Porém, a infelicidade acompanha a miséria, e a melancolia resultante deita Itaro e Saburo por caminhos que os antagonizam, não obstante serem reflexos um do outro. Entre misérias, melancolias e a felicidade possível, estas almas frágeis vão trilhando os seus percursos paralelos, cada um em seu mundo, mas incontornavelmente juntos. 
   Valter Hugo Mãe tem uma escrita sensível e bela. Este lindo retrato de solidão e melancolia não é exceção. A delicadeza com que Valter Hugo Mãe escreve sobre sentimentos tão escuros confere às suas frases uma humanidade profunda. Mas o ponto alto, para mim, deste romance são três metáforas fabulosas. A primeira diz respeito ao ciclo do luto, com Itaro e Saburo como protagonistas, em que Saburo perde aos poucos a mocidade que resistia dentro dele e Itaro se vê forçado a descer a um poço durante sete dias e sete noites, convivendo com um animal feroz que é o próprio luto. A segunda metáfora, ainda com os dois protagonistas como concretizações, é relativa ao ato de criação artística, no que tem de transcendente e de destrutivo. Itaro procura pintar a beleza nos seus leques, mas é apenas quando mergulha no seu luto melancólico que consegue extrair de si as representações mais belas. Saburo, por outro lado, trilha o caminho inverso, em que o ato criador vai dando lugar ao ato destruidor consoante o agudizar da sua própria destruição. A terceira metáfora equivale a cegueira à melhor visão, no sentido em que uma pessoa que não vê acede a uma compreensão mais nuclear e fundamental das coisas, desde as árvores até às pessoas. Se Matsu sempre o soube, porque nasceu cega, Itaro apenas o aprende quando o seu luto o cega, e Saburo, mais uma vez em reflexo, vai vendo melhor o mundo e perdendo em simultâneo a noção do núcleo das coisas. Estas três metáforas não são estanques, e desdobram-se em outras metáforas e aforismos que revelam o que faz de nós humanos e de que forma a humanidade é a ligação ao outro. Transversal a este romance dividido em quatro partes está uma reflexão sobre a particular magia da palavras e como estas ligam as coisas do mundo entre si. As palavras levam as pessoas ao encontro umas das outras, mas as palavras erradas, ou a falta delas, tem a capacidade de alterar o rumo de um destino. As reflexões mais amplas sobre as palavras partem, naturalmente, de Matsu, que, sendo cega, apenas vê o mundo através das palavras, o que lhe dá uma compreensão superior das coisas, das pessoas e do que as interliga. 
 
 Citações: 
 
"O vizinho, talvez por pouca definição das suas premonições, talvez incauto, o aconselhou a mudar a natureza. Queria certamente aludir à utopia de o conseguir, mas a Saburo pareceu-lhe assim, que se destituísse a floresta do seu cariz selvagem amansariam as bestas, ganhariam coração, seriam um pouco domésticas, como alguns pássaros que se habituavam a amizades com as gentes." 
 
"O artesão apenas educava os materiais para uma vocação que eles detinham por natureza, ouvira do pai. O artesão era um cúmplice da natureza, um certo intérprete. Como se avivasse a memória antiga à coisa inerte. O gesto precisava de ser único, sem repetição, para que a obra comparecesse na espontaneidade possível. Os crisântemos, explicava o pai, devem nascer de verdade no calmo papel de arroz. Mais do que pintar, os artesãos semeiam. Declarava solenemente. Semeia as flores no papel, filho. Lavra." 
 
"A menina Matsu sorriu. De algum modo, o desconhecido lhe inventara uma fantasia simpática, como se tivesse chegado com um brinquedo para a conquistar. Ela disse: os meus brinquedos são as palavras. Persigo o encantamento de que são capazes." 
 
 
Pontuação: 9/10 
 
 
Gonçalo Martins de Matos 

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

"Lobos Sedentos da Respiração dos Dias", de Ana Gil Campos

   "Quando se começou a ouvir falar de uma possível pandemia pareceu tratar-se para muitos de uma gota de chuva ainda sem nome num país distante, num país onde se guardam com pinças verdades isentas de boas notícias." 

   Num país anónimo algures, uma pandemia que originou num lugar distante chegou em força e mudou a sociedade para sempre. Regras de circulação e de prevenção foram impostas e a sociedade teve de se adaptar. Porém, essa mesma sociedade teve as suas resistências à mudança, o que levou a que um arquiteto projetasse um complexo habitacional moderno que protegesse todos os seus habitantes. Poucos anos depois, esse complexo já era a sua própria sociedade, o que levou a que a cidade fosse agora dividida nesta Cidade Nova, e na Cidade Velha, onde os hábitos de sempre se mantiveram. É muitos anos depois destes acontecimentos que conhecemos os protagonistas do romance, David, Aurora, Constâncio, Túlia e Vitória, uns puros habitantes da Cidade Nova, outros insuspeitos habitantes da Cidade Velha e alguns secretamente de ambos os lados da cidade. Cada um à sua maneira reflete sobre assuntos como a felicidade, a autorrealização, o amor e a liberdade, enquanto levam as suas vidas normais com maior ou menor concretização. David e Aurora têm visibilidade da casa de um para o outro, ele habitante da Cidade Velha e ela habitante da Cidade Nova. É dessa forma que Aurora se acha num encontro com o jovem arquiteto e desenvolvem uma conexão amorosa que expõe as fissuras nas fachadas de ambas as cidades. Em torno deles gravitam os restantes, seus amigos e conhecidos, rumando mais ou menos cientes dessas mesmas fissuras, em direção a um ideal de felicidade. 
   A nova realidade que a autora concebe, num futuro não tão distante, que resulta de uma pandemia global, ressoa principalmente depois da nossa experiência coletiva com a covid-19, que curiosamente apenas serviu de inspiração pouco tempo depois de a autora ter tido a ideia de imaginar um futuro pós-pandémico. Nota-se no rumo do texto que a descrição da pandemia é contemporânea da nossa pandemia e que foi inserida depois da conceção do romance, o que não deixa de ser notório. Quanto ao futuro próximo imaginado, assim como no livro anterior, a autora apresenta-nos um futuro no limiar do distópico, sem no entanto resvalar para esse abismo, mais ou menos como a contemporaneidade. A Cidade Nova, tecnologicamente avançada, é vividamente descrita em tudo o que tem de brilhante e moderno, em contraste, não com a Cidade Velha, mas com a opacidade interior da própria Cidade Nova. A Cidade Velha contrasta com a Cidade Nova, sim, mas é mais num sentido reflexivo - ambas as cidades são  inversões, como se se mirassem ao espelho: se a Cidade Nova é aparentemente controlada e moderna, no seu âmago trovejam o caos e a arrogância, e o que na Cidade Velha aparenta liberdade e tradição oculta prisões mentais e hipocrisia. Nenhuma sociedade é perfeita, e a autora demonstra-nos precisamente isso, através dos seus personagens. Tal como as cidades que os acolhem, os nossos protagonistas têm uma face pública e uma face oculta que são inversões uma do outra. Através dos seus personagens, a autora reflete sobre felicidade, liberdade, amor, redenção, passado e futuro, relações sociais e profissionais e outros assuntos que nos conectam enquanto seres sociais. Nas suas reflexões, Ana Gil Campos apresenta-nos com imagens marcantes e poderosas que ficam a ressoar e nos ajudam a processá-las. 
 
Citações: 
 
"Quando ia até lá, a fonte de inspiração era tanta, oriunda de filmes no cinema, de exposições, de pessoas em vários contextos, de sons, os seus sentidos eram tão estimulados que precisava de voltar a casa com urgência para libertar a criatividade que tinha dentro de si, como lobos sedentos que alojava na toca do seu ventre soltando-os sobre a mesa de trabalho." 
 
"David, numa conversa com o amigo, tentou fazê-lo ver que podemos desejar uma coisa, referindo-se à sua vontade de se querer mudar para a nova cidade, mas que depois de alcançada não nos realiza como imaginávamos, como ele bem sabe. Aquilo que desejas é algo de que precisas mesmo?, perguntou-lhe. Constâncio respondeu-lhe com a questão: aquilo de que tens medo é realmente algo que deves recear?" 
 
"Se a felicidade consiste em nos assumirmos como somos perante nós próprios e a sociedade, se não o fizermos quem somos? Não somos? Somos um corpo adormecido que cambaleia mais ou menos firme pelos dias? Há o perigo em não se conseguir desempenhar o papel que não é nosso com equilíbrio e sensatez e o indivíduo sucumbir a algum padecimento da alma, um desequilíbrio mental que acaba por se manifestar na própria vida e, como consequência, na dos outros."
 
 
Pontuação: 7/10
 
 
Gonçalo Martins de Matos