"A mulher está nua, o que neste instante a ocupa é mais prático
sem roupa – quando tocam à campainha."
Dois homens tocam à campainha da protagonista para que possam instalar o medo em sua casa. O Carlos, bem-falante e de aspeto mais civilizado, e o Sousa, de aspeto mais rude, mas supreendentemente eloquente, são os dois funcionários que vêm apresentar o medo enquanto procedem à sua instalação. A mulher que os recebe instruíra ao seu filho, antes de lhes abrir a porta, que permanecesse escondido na casa de banho, tendo sempre em mente essa questão. E é assim, numa tensão crescente, que se encontram os três, ela escutando e eles apresentando o medo, num jogo de dissimulação em que todas as aparências iludem e onde os trejeitos de uns são as suspeitas de outros.
Este romance de Rui Zink é uma alegoria sobre a força opressiva do medo enquanto modelo de organização social. Mas também sobre o medo enquanto mecanismo de sobrevivência necessário. E também sobre o medo enquanto tema filosófico. Num registo satírico, mordazmente irónico, o medo é apresentado e vendido por dois peritos em apresentação de produto. O teor da apresentação do medo por parte de Carlos e de Sousa é o de uma conversa animada, em que ambos entram em considerações e reflexões sobre o medo e as suas plúrimas formas. Já a mulher escuta atentamente, lembrando-se volta e meia que tem a criança escondida na casa de banho, e que ela não pode fazer barulho para não ser descoberta. O estilo de escrita é frenético e breve, sendo a narrativa movida por diálogos curtos, principalmente entre os dois técnicos de instalação do medo. As várias formas de concretização do medo são exploradas de uma forma muito pungente pelo autor, que não deixa de ironizar medos como os sentidos pelos mercados ou como o medo do outro, medos muito em voga e do melhor. A ideia da instalação artificial do medo por decreto, "pelo bem da nação", é uma imagem bem conseguida de como sociedades autoritárias e repressivas se instalam em força. O romance encontra-se também pejado de referências, desde o cinema e a literatura até à banda desenhada e aos videojogos, intertextualidade que enriquece o universo interno do romance. Nunca chegamos a perceber como é que se instala o medo, nem com que se parece a máquina que o espalha, nem por que regras se rege a existência do medo, o que gera um dos aspetos mais interessantes e metatextuais do romance, que é o medo do incerto. O mistério encerra o medo, e numa história em que o mistério não se desfaz, também não se desfaz o medo. O final é de tal forma inesperado que qualquer leitor que pense ter percebido o sentido do romance apenas estará a enganar-se a si mesmo, mas num bom sentido, porque é dessa forma que as contracurvas narrativas funcionam melhor. E a reviravolta que nos aguarda no final do romance é executada com mestria por Rui Zink.
Citações:
"– Ou seja, não nos cabe só a nós instalar o medo, é preciso também que haja, da parte dos concidadãos, um estado de disponibilidade mental (eu diria mesmo moral) para aceitar o medo. É como um sinal. Não é só importante que a emissão do sinal seja for-te, é também conveniente que à chegada seja."
"As aparências iludem. Nos filmes, os bons têm sempre cara de bons e os maus cara de maus, é uma alegria. Mas o ator que faz o papel de herói nunca praticou um só ato heróico. Apenas tem cara disso, voz disso, ar disso. Tão só isso disso. Heróis a sério podem parecer sevandijas, e algozes terem o ar mais inocente do mundo. Um “olhar fleumático” não implica fleuma, um “aspeto hirsuto” não indica hirsutez de espírito."
"Em inglês fica tudo mais smart, é um facto, minha senhora. Diga lá se Make my day, punk não é muito mais lapidar que “Anda lá se és forte, ó badameco”."
Pontuação: 8/10
Gonçalo Martins de Matos