domingo, 27 de julho de 2025

"História do Cerco de Lisboa", de José Saramago

   "Disse o revisor, Sim, o nome deste sinal é deleatur, usamo-lo quando precisamos suprimir e apagar, a própria palavra o está a dizer, e tanto vale para letras soltas como para palavras completas". 
    Raimundo Silva é um normalíssimo revisor literário, com uma vida rotineira e pacata. Porém, um dia, em processo de revisão de um livro sobre a história do cerco de Lisboa, tomado por um ímpeto inexplicável, decide escrever um "não" aquando da resposta dos cruzados no apoio a Afonso Henriques na tomada da cidade. Descoberto o "lapso" pelos seus superiores, Raimundo é convocado para que possa explicar-se, encontrando-se pela primeira vez com Maria Sara, nova diretora literária. Posteriormente, numa reunião entre ambos, Maria Sara desafia Raimundo a escrever a história do cerco de Lisboa a partir daquele seu "não", desafio que o revisor aceita. A partir daí, duas histórias desenvolvem-se intercaladas: a história do cerco e tomada de Lisboa pelos portugueses sem o apoio dos cruzados e a história de paixão entre Raimundo Silva e Maria Sara. Ambas as narrativas se cruzam no amor entre um soldado português, Mogueime, e uma mulher, Ouroana. 
   Seguindo a minha auto-teoria dos altos e baixos de leitura da obra de Saramago, este livro não me arrebatou como o anterior. Não deixa de ser mais uma obra literária muito bem conseguida, mas não é do melhor que o autor consegue produzir (friso, para mim). O "não" que Raimundo Silva acrescenta à história do cerco de Lisboa é o mote para uma reflexão sobre a volatilidade da história e as dinâmicas entre o passado e o presente. O passado ficcionado por Raimundo Silva gera uma história dentro de uma história, e a sua execução mais uma vez revela a mestria de José Saramago para a construção narrativa. Naturalmente, apesar de ser Raimundo Silva quem escreve a nova história, a voz narrativa é a de José Saramago, que aproveita para questionar alguns dos lugares-comuns da historiografia, como a autoridade das fontes, e para refletir criticamente sobre temas como a religião, a guerra, a autoridade e o amor. Um exercício que Saramago executa muito bem é o de, nos momentos de narração do cerco de Lisboa, reunir os testemunhos de ambos os lados da muralha, nunca pendendo nem para o lado dos mouros nem para o lado dos cristãos. A impecável estética oralizante da prosa de Saramago permanece forte e bem conseguida. 
   
Citações: 
 
"Era lua cheia, daquelas que transformam o mundo em fantasma, quando todas as coisas, as vivas e as inanimadas, estão murmurando misteriosas revelações, porém vai dizendo cada qual a sua, e todas desencontradamente, por isso não alcançamos a entendê-las e sofremos esta angústia de quase ir saber e não ficar sabendo." 
 
"Dê importância às palavras, não ao modo, Supus que a sua experiência de revisor lhe teria ensinado que as palavras não são nada sem o tom, Uma palavra escrita é uma palavra muda, A leitura dá-lhe voz, Excepto se for silenciosa, Até mesmo essa, ou julgará o senhor Raimundo que o cérebro é um órgão silencioso"
 
"um homem caminha léguas e léguas durante uma vida e dessas não aproveitou mais do que fadiga e feridas nos pés, quando não na alma, e vem um dia em que dá seis passos apenas e encontra o que buscava" 
 
 
Pontuação: 6.5/10
 
 
Gonçalo Martins de Matos 

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

"The Satanic Verses", de Salman Rushdie

   "'To be born again,' sang Gibreel Farishta tumbling from the heavens, 'first you have to die." abre aquele que é um dos maiores romances do século XX. 
   Gibreel Farishta e Saladin Chamcha, dois indianos muçulmanos, são milagrosamente salvos de uma queda resultante da explosão de um avião sequestrado por fundamentalistas religiosos. Tendo sobrevivido a tal evento, ambos pagam o preço: numa mutação igualmente milagrosa, Farishta, ator de Bollywood conhecido por interpretar divindades, assume a personalidade do arcanjo Gabriel, e Chamcha, anglófilo e dobrador (o homem das mil vozes, como é várias vezes referido), assume o aspeto do demónio. Portanto, aparentam ter assumido as formas quintessenciais da eterna batalha entre o Bem e o Mal. Porém, as ações que se seguem esbatem as fronteiras do que se julga ser o Bem e o Mal. Farishta, supostamente representando o Bem, trata de entrar numa espiral de destruição de uma vida intacta pelo sequestro do avião; Chamcha, supostamente representando o Mal, tenta reconstruir uma vida deixada em ruínas pelo mesmo sequestro. Estes dois movimentos arrastam as vidas de Aleluia Cone, amante de Gibreel, Pamela Chamcha, mulher de Saladin, Jumpy Joshi, amante de Pamela, a família indiana Sufyan, SS Sisodia, um produtor de cinema gago, Zeeny Vakil, amante de Saladin deixada na sua terra-natal, e outros protagonistas de uma história de aparências e desencontros. Paralelamente, intercalada com a narrativa principal está uma série de visões oníricas, que ocorrem na mente de Farishta, cujas temáticas são uma narração ficcional da vida do profeta Maomé (chamado Mahound) e da peregrinação liderada por Ayesha, uma jovem plebeia indiana, que, invocando visões do próprio arcanjo Gabriel, convence toda a sua aldeia a atravessar o Mar Arábico. Há ainda uma terceira sequência de sonho em que um líder religioso fanático consegue condicionar Gibreel, na sua forma de arcanjo, a uma batalha sobrenatural contra a imperatriz Ayesha, sua inimiga mortal. 
   The Satanic Verses é um romance monumental. Escrito sob um estilo de realismo mágico, e desenvolvido em várias camadas de significados e intertextualidades que geram uma obra complexa, como a grande literatura sabe sempre produzir. O mote do romance é a escolha de dois avatares para representar o Bem e o Mal na sua eterna batalha. Mas Gibreel Farishta e Saladin Chamcha estão muito longe de representarem os conceitos que lhes são atribuídos, mas não em opostos: Gibreel e Saladin são, primeiro e acima de tudo, humanos, e sendo-o, são pessoas complexas, capazes do bem e do mal. Os efeitos das suas vidas nas vidas dos que os rodeiam não podiam ser mais humanas: têm efeitos positivos e efeitos negativos. Tendo tantas camadas, a busca por um tema central ganha laivos de tarefa, porém existem certas pistas que nos permitem identificar que inquietações marcam a obra. Primeiro, trata-se de um monumental comentário sobre o ser migrante, numa perspetiva bipartida de ânsia e indiferença pela terra que os recebe e pela terra de onde partem, representadas por um Saladin anglófilo e por um Gibreel impermeável. Outra grande inquietação é o autoritarismo e a tolerância, de um modo geral e no modo específico da encarnação religiosa destas duas facetas. A tensão entre crença e prova, entre aceitação e exclusão marca as vidas dos que circulam pelas ruas de Londres e de Nova Deli. Da interseção destes dois grandes temas surge um universo de questões transversalmente humanas como as relações interpessoais, a intolerância étnica e religiosa, os dilemas do sucesso, a passagem do tempo, o colonialismo e os seus impactos, que constroem a monumentalidade que caracteriza este romance. Este romance é também uma grande obra do pós-modernismo, diria que marca o início de um novo período na literatura, pelo menos, anglófona. Do ponto de vista formal, o trabalho de linguagem de Rushdie é sublime. As marcas do romance pós-modernista estão todas lá: neologismos, oralidade, fluxo de consciência, intertextualidade, metatextualidade. A metalinguagem é particularmente eficaz neste romance: o facto de um narrador interventivo narrar e analisar os sonhos de um dos seus personagens gera uma camada complexa de autoconsciência que se traduz num quase pulsar de vida das palavras que o compõem. 
   Não se pode falar deste romance sem referir também o seu contexto complicado. Quando The Satanic Verses foi publicado, gerou-se uma grande onda de indignação, especialmente pela comunidade islâmica, devido à aparente islamofobia do romance. Uma reação tão grande que Ruhollah Khomeini, então líder do Irão, emitiu uma fatwa contra Salman Rushdie, ordenando a sua execução imediata, o que inclusivamente resultou na tentativa de homicídio de que foi alvo em 2022. A referência a este contexto serve para relembrar constantemente o seguinte: apesar de a vida de Maomé ser o pano de fundo, alvo de críticas só mesmo os seres humanos. A grande denúncia de Rushdie neste grande romance não é o islamismo: é mesmo a intolerância em todas as suas formas, do teísmo político ao colonialismo. As reações, de então e de agora, a este livro demonstram que a ignorância e o obscurantismo continuam dominantes. Mas é com a mesma vaga e desconecta esperança com que Saladin Chamcha descobre conseguirmos viver que devemos sempre lembrar este livro, e atirá-lo mesmo à cara dos trogloditas autoritários, vistam eles as vestes que vestirem. 

Citações 
 
"The human condition, but what of the angelic? Halfway between Allahgod and homosap, did they ever doubt? They did: challenging God’s will one day they did muttering beneath the Throne, daring to ask forbidden things: antiquestions. Is it right that. Could it not be argued. Freedom, the old antiquest. He calmed them down, naturally, employing management skills à la god. Flattered them: you will be the instruments of my will on earth, of the salvationdamnation of man, all the usual etcetera. And hey presto, end of protest, on with the haloes, back to work. Angels are easily pacified; turn them into instruments and they’ll play your happy tune. Human beings are tougher nuts, can doubt anything, even the evidence of their own eyes. Of behind-their-own eyes. Of what, as they sink heavy-lidded, transpires behind closed peepers… angels, they don’t have much in the way of a will. To will is to disagree; not to submit; dissent." 

"Hanif was a much as anything rooted in the other’s greater control of the language of desire. Mishal Sufyan was quite something, an elongated, tubular beauty, but he wouldn’t have known how, even if he’d thought of, he’d never have dared. Language is courage: the ability to conceive a thought, to speak it, and by doing so to make it true." 

"What follows is tragedy. – Or, at the least the echo of tragedy, the full-blooded original being unavailable to modern men and women, so it’s said. – A burlesque for our degraded, imitative times, in which clowns re-enact what was first done by heroes and by kings. – Well, then, so be it. – The question that’s asked here remains as large as ever it was: which is, the nature of evil, how it’s born, why it grows, how it takes unilateral possession of a many-sided human soul. Or, let’s say: the enigma of Iago." 
 
 
Pontuação: 10/10
 
 
Gonçalo Martins de Matos

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

"A Instalação do Medo", de Rui Zink

   "A mulher está nua, o que neste instante a ocupa é mais prático sem roupa – quando tocam à campainha." 
   Dois homens tocam à campainha da protagonista para que possam instalar o medo em sua casa. O Carlos, bem-falante e de aspeto mais civilizado, e o Sousa, de aspeto mais rude, mas supreendentemente eloquente, são os dois funcionários que vêm apresentar o medo enquanto procedem à sua instalação. A mulher que os recebe instruíra ao seu filho, antes de lhes abrir a porta, que permanecesse escondido na casa de banho, tendo sempre em mente essa questão. E é assim, numa tensão crescente, que se encontram os três, ela escutando e eles apresentando o medo, num jogo de dissimulação em que todas as aparências iludem e onde os trejeitos de uns são as suspeitas de outros. 
   Este romance de Rui Zink é uma alegoria sobre a força opressiva do medo enquanto modelo de organização social. Mas também sobre o medo enquanto mecanismo de sobrevivência necessário. E também sobre o medo enquanto tema filosófico. Num registo satírico, mordazmente irónico, o medo é apresentado e vendido por dois peritos em apresentação de produto. O teor da apresentação do medo por parte de Carlos e de Sousa é o de uma conversa animada, em que ambos entram em considerações e reflexões sobre o medo e as suas plúrimas formas. Já a mulher escuta atentamente, lembrando-se volta e meia que tem a criança escondida na casa de banho, e que ela não pode fazer barulho para não ser descoberta. O estilo de escrita é frenético e breve, sendo a narrativa movida por diálogos curtos, principalmente entre os dois técnicos de instalação do medo. As várias formas de concretização do medo são exploradas de uma forma muito pungente pelo autor, que não deixa de ironizar medos como os sentidos pelos mercados ou como o medo do outro, medos muito em voga e do melhor. A ideia da instalação artificial do medo por decreto, "pelo bem da nação", é uma imagem bem conseguida de como sociedades autoritárias e repressivas se instalam em força. O romance encontra-se também pejado de referências, desde o cinema e a literatura até à banda desenhada e aos videojogos, intertextualidade que enriquece o universo interno do romance. Nunca chegamos a perceber como é que se instala o medo, nem com que se parece a máquina que o espalha, nem por que regras se rege a existência do medo, o que gera um dos aspetos mais interessantes e metatextuais do romance, que é o medo do incerto. O mistério encerra o medo, e numa história em que o mistério não se desfaz, também não se desfaz o medo. O final é de tal forma inesperado que qualquer leitor que pense ter percebido o sentido do romance apenas estará a enganar-se a si mesmo, mas num bom sentido, porque é dessa forma que as contracurvas narrativas funcionam melhor. E a reviravolta que nos aguarda no final do romance é executada com mestria por Rui Zink.

Citações: 
 
"– Ou seja, não nos cabe só a nós instalar o medo, é preciso também que haja, da parte dos concidadãos, um estado de disponibilidade mental (eu diria mesmo moral) para aceitar o medo. É como um sinal. Não é só importante que a emissão do sinal seja for-te, é também conveniente que à chegada seja."

"As aparências iludem. Nos filmes, os bons têm sempre cara de bons e os maus cara de maus, é uma alegria. Mas o ator que faz o papel de herói nunca praticou um só ato heróico. Apenas tem cara disso, voz disso, ar disso. Tão só isso disso. Heróis a sério podem parecer sevandijas, e algozes terem o ar mais inocente do mundo. Um “olhar fleumático” não implica fleuma, um “aspeto hirsuto” não indica hirsutez de espírito."

"Em inglês fica tudo mais smart, é um facto, minha senhora. Diga lá se Make my day, punk não é muito mais lapidar que “Anda lá se és forte, ó badameco”." 


Pontuação: 8/10


Gonçalo Martins de Matos

"Bela", de Ana Cristina Silva

   "Bela acabou de se matar" são as lúgubres palavras que abrem esta biografia ficcional sobre Florbela Espanca. 
   Bela, diminutivo de Florbela, é uma mulher complexa, com as suas esperanças e as suas quimeras. Acompanhamos as intensas paixões e os profundos desesperos por que passa Bela, revisitando constantemente a sua infância em busca de uma fonte para os fortes sentimentos antitéticos que marcaram a sua vida. A história que se desenrola é uma versão ficcionada da história da Florbela Espanca real, em que figuram as pessoas que a gravitavam, fosse a sua tenebrosa mãe adotiva, o seu pai ausente, os seus icompreensivos maridos ou o seu confidente irmão, e as suas inquietações ou alegrias nas dinâmicas entre causas e efeitos emocionais. 
   Ana Cristina Silva captura a tragédia da vida de Florbela Espanca de forma muito aprofundada, tanto a nível factual como a nível psicológico. Aliás, é precisamente no retrato psicológico da poeta alentejana que reside o talento narrativo da autora. Com uma investigação sólida aos diários de Florbela Espanca e aos escritos da e sobre a poeta de Vila Viçosa, Ana Cristina Silva consegue transportar uma Florbela que respira e sente dor para as páginas do seu romance. Porém, o romance não foi assim tão memorável para mim. Apesar de se sentir a Bela do romance como real, algumas das indagações sobre o passado e sobre o presente de Florbela ficavam aquém do potencial, principalmente quando a narração se sucedia na terceira pessoa, em que o foco era descritivo, não obstante o enfoque nos retratos psicológicos dos personagens. Os capítulos na primeira pessoa revelam o potencial do romance, sendo reflexões retrospetivas da própria Florbela sobre a sua vida, a sua infância e a sua poesia. Muitas das melhores linhas do romance encontram-se nos capítulos em que é a poeta a narrar-nos as suas inquietações, oferecendo-nos frases belas e profundas. O que não significa que a escrita de Ana Cristina Silva não seja boa, é-o, mas fica muitas vezes no limiar do bom português, quando tem o potencial de ser verdadeiramente impactante. A relevância da infância na construção da nossa psique está bem presente neste romance, em que a autora nos demonstra cruamente que os "pecados dos pais" nos afetam para o resto das nossas vidas. 

Citações: 

"As palavras alinhavam-se automaticamente, escutava o seu ruído inexprimível de cascata ao caírem sobre a folha branca como se marulhassem à tona da água. A sua escrita era demasiado imprecisa para chegar à verdade. E, no entanto, prosseguia, deixando as palavras desembaraçarem-se sozinhas, quase sem precisarem dela."
 
"Reconhecia o poder das suas rimas, o cuidadoso rendilhado das palavras, mas assustava-se com o mundo de mágoa e de vazio que revelavam. Só umas mãos de pedra teriam força para arrancar a dor esculpida sobre o rosto da mulher que escrevia aqueles poemas."
 
"Os meus versos eram a argamassa de uma mente desfeita. Vivia tanto para o meu encontro com a morte como para a poesia. O que fluía, ao redigir um novo poema, era sangue misturado com tinta, que depois percorria os vasos do meu braço direito, como uma espécie de transfusão, antes de atingir o papel."


Pontuação: 7/10


Gonçalo Martins de Matos