terça-feira, 6 de novembro de 2018

"Uma Família Inglesa", de Júlio Dinis

   Uma Família Inglesa é uma das (se não a) mais conhecidas obras de Júlio Dinis. Trata-se de uma obra bastante acarinhada pelos leitores portugueses, situada a meio caminho entre o romantismo e o realismo. Por muitos apelidada como a obra-prima do autor, mais que uma história de amor, é um grande retrato da sociedade portuense na segunda metade do século XIX, e das idiossincrasias dominantes da época.
   Desde logo são-nos apresentados, numa "Espécie de prólogo em que se faz uma apresentação ao leitor", os personagens nucleares deste romance: Richard Whitestone, um comerciante inglês, Jenny Whitestone, sua generosa filha, e Carlos (Charles) Whitestone, seu leviano filho. Desde logo lhes são atribuídas estas características elementares, que os acompanharão ao longo do romance. Gravitando à volta destas três personagens situam-se as duas últimas personagens principais: Manuel Quintino, guarda-livros da firma Whitestone, e a sua filha, Cecília. Entre a atividade comercial de Mr. Whitestone, a vida doméstica da família inglesa (corporizada no "anjo doméstico" Jenny) e a existência desregrada de Carlos, vão-se sucedendo os dias até Carlos travar conhecimento com uma misteriosa mulher mascarada, na noite de Carnaval, que lhe fica remoendo na memória. Mais tarde vem a saber que essa mulher é Cecília, e, incapaz de deixar de pensar nela, começa a desenvolver-se por ela um sentimento forte. Por seu turno, Cecília já desde o Carnaval que pensava incessantemente no irmão da sua amiga Jenny, desenvolve com o passar do tempo uma paixão pelo jovem inglês. Mediada por Jenny, que escuta os desabafos, quer do seu irmão, quer da sua amiga, a paixão vai-se desenvolvendo à revelia dos restantes personagens, não obstante uma certa resistência inicial de Jenny. Posteriormente, Carlos e Jenny aproximam-se mais devido a um acontecimento mundano envolvendo o velho guarda-livros do comerciante inglês. No entanto, mais próximos do que nunca, surgem entraves atrás de entraves à felicidade de ambos. Por fim, após a transposição desses entraves, Carlos e Cecília podem ser felizes, sendo essa felicidade transmissível a todos os personagens principais apresentados.
   O estilo dinisiano é, como foi dito, um misto de romantismo com realismo-naturalismo. Este romance não é exceção. A história que serve de base ao romance encaixa no enredo romântico típico, mas a forma que assume apresenta já os traços do naturalismo que viria a surgir na década posterior à publicação do romance. As personagens trágicas e o fatalismo que assombra as suas vidas marca a maior parte do romance. Mas esse tipo de enredo é secundarizado em função da descrição da vida familiar, comercial e social portuense, já para não falar de um ou outro ocasional deslize para a crítica social (não tão marcada como em obras realistas posteriores). No entanto, o que mais se destaca é a toda a envolvência psicológica que rodeia os personagens, e a evolução que os acompanha do início para o final. Todos atravessam mudanças nas suas opiniões, ideias e personalidades, de uma forma natural, sem parecer fictícia ou forçada. Esta obra é soberba no seu espírito, pois a história mil vezes foi contada antes, sem deixar de ser, no entanto, cativante. Júlio Dinis é um exímio prosador. O vernáculo que emprega e as construções frásicas em que o inclui, sem perder nunca o seu domínio, são sem dúvida os pontos mais fortes do romance (num romance onde não existem per se pontos fracos).
   Nunca é de mais recomendar a leitura dos clássicos. E este é um daqueles clássicos de leitura obrigatória na literatura portuguesa. Pela sua qualidade e, acima de tudo, pela boa dose de português (mesmo sendo a história sobre uma família inglesa) que nos apresenta. 

Citações:
"- Ho Butterfly, good morning! How do you do sir? - exclamou Mr. Richard, saudando o seu cão perdileto, que lhe estendeu a pata como para um shake-hand. Havia nisto um requerimento para uma fatia de fiambre, o qual o inglês não indeferiu. 
"Parece que o tipo nacional é indigno de referência (...). A causa disto é o sermos nós uma nação pequena e pouco à moda, acanhada e bisonha nesta grande e luzidia sociedade europeia, onde por obséquio somos admitidos, dando-nos já por muito lisonjeados, quando os estrangeiros se deixam, benevolamente, admirar por nós."
"Mais uma vez se verificou a eterna luta entre a teoria e a prática; uma, com seus instintos de jovem, com seus hábitos de atividade, com seus amores pelo futuro e pelo progresso; outra, com a frieza da idade madura, com uma índole essencialmente prosaica e conservadora (...) enquanto o jovem letrado desenvolve teorias de ciência social, vistas transcendentes de filosofia de direito, o jurista, encanecido no foro, examina os artigos do código, esmiúça a letra da lei, aconselha as partes e despacha os autos."


Pontuação: 9.9/10


Gonçalo Martins de Matos