segunda-feira, 29 de abril de 2024

"Se numa Noite de Inverno um Viajante", de Italo Calvino

   "Estás para começar a ler o novo romance Se numa noite de inverno um viajante de Italo Calvino." começa logo por desarmar quem entra neste romance peculiar do pós-modernista italiano. 
    A história é focada em nós. Nós quem? Nós, o Leitor. A história acompanha o Leitor, que, tentando sem sucesso ler o romance Se numa noite de inverno um viajante - porque o livro apenas apresenta o início -, enceta numa busca pelo resto do romance. No início dessa busca, o Leitor conhece Ludmilla, a Leitora, com quem partilhará a viagem que o aguarda. O livro incompleto leva ambos os Leitores a outro livro incompleto, que por sua vez leva a outro e por aí em diante, a cada novo livro desnovelando-se a trama que os tem deixado incompletos, mas adensando-se ainda mais o mistério em volta dos conspiradores e dos fins e dos meios da conspiração. As misteriosas personagens que rodeiam os misteriosos objetivos dos livros incompletos levam o Leitor numa viagem de descoberta da leitura e do papel que esta desempenha nas vidas de todos os Leitores e Leitoras. 
   Tratando-se de uma obra pós-moderna, as suas intenções não podiam ser mais claras. Abrindo logo com o reconhecimento de que nós, Leitores, estamos a começar a ler o livro Se numa noite de inverno um viajante de Italo Calvino, a partir daí as metarreferências e a metatextualidade assumem as rédeas da história do Leitor e da Leitora. Aquilo que se pode identificar como a trama principal do romance é interrompido esporadicamente com interações diretas do narrador connosco, leitores. Cada novo início de romance incompleto tem um título, um autor e uma história associada, que ajudam a empurrar a trama principal para a frente, enquanto o Leitor - o imaginado e nós - se deixa conduzir pelas ruelas labirínticas da literatura e da edição livreira. Todos os dispositivos narrativos servem um propósito apenas: dissertar sobre o papel da literatura e do livro na vida dos leitores, e na vida de todos. Esse propósito não é oculto, é diretamente comunicado ao leitor sem subterfúgios. Mesmo nos diferentes romances, os respetivos narradores, diferentes entre si, pensam sobre a narrativa e sobre como a usam e como ela se serve deles, nunca se dissipando a lembrança de que tudo não passa de um texto a ser desfiado pelas mãos de um autor com um propósito bem definido. Nesse sentido, neste romance autoconsciente, o metatexto funciona brilhantemente como forma e conteúdo, revelando-se equilibrado, tarefa que pela premissa já é de si difícil. Os romances inacabados, diferentes entre si, acabam por também se juntar numa história, também ela incompleta, que reflete a metáfora principal que o autor quer transmitir: a da leitura e o livro como as instâncias da vida, os personagens como os seres humanos que por ela caminham e que com ela e entre si interagem. 
   Um romance com toque de génio de um dos grandes da literatura pós-modernista europeia. 
 
Citações: 
 
"Estás para começar a ler o novo romance Se numa noite de inverno um viajante de Italo Calvino. Descontrai-te. Recolhe-te. Afasta de ti todos os outros pensamentos. Deixa esfumar-se no indistinto o mundo que te rodeia. A porta é melhor fechá-la; lá dentro a televisão está sempre acesa. Diz aos outros: «Não, não quero ver televisão!» Levanta a voz, senão não te ouvem: «Estou a ler! Não quero que me incomodem!» Não devem ter-te ouvido, com aquele barulho todo; fala mais alto, grita: «Estou a começar a ler o novo romance de Italo Calvino!» Ou se não quiseres não digas nada; esperemos que te deixem em paz."
 
"O romance começa numa estação ferroviária, ronca uma locomotiva, um arfar de êmbolo tapa a abertura do capítulo, uma nuvem de fumo esconde parte do primeiro parágrafo."
 
"Trazes o livro que estavas a ler no café e que estás impaciente por continuar, para de-pois poderes passar-lho, para comunicares de novo com ela através do canal aberto pelas palavras alheias, que justamente por serem pronunciadas por uma voz estranha, pela voz do silencioso ninguém feito de tinta e de espaçamentos tipográficos, podem tornar-se vossas, uma linguagem, um código entre vós, um meio de trocarem sinais e reconhecerem-se."  
 
 
Pontuação: 8.5/10
 
 
Gonçalo Martins de Matos