Quando nos preparamos para ler José Cardoso Pires, ocorre-nos sempre o seguinte: que estaremos a ler uma obra diferente. José Cardoso Pires é dos autores do século XX que mais marcou a sua dissonância em relação à forma de escrever um romance, e parte da importância da sua obra no geral é essa demarcação que o autor faz da escrita vigente na sua época. Quando nos preparamos para ler um romance como Balada da Praia dos Cães, temos sempre consciência de que iremos ler algo diferente do que estamos habituados, o que pode resultar numa surpresa agradável ou desagradável, dependendo dos hábitos e gostos pessoais de leitura de cada um. No meu caso, nem me aqueceu nem me arrefeceu. Trata-se de uma grande obra de um grande autor, mas houve vários aspetos que me foram deixando um pouco de pé atrás em relação a este livro. Já lá iremos.
A história relata a investigação levada a cabo pela Polícia Judiciária após a descoberta de um cadáver na Praia do Mastro em abril de 1960, em plena ditadura salazarista. A história é basicamente esta. Qualquer acrescento que eu faça a este pequeno sumário será uma revelação do enredo, coisa que eu não desejo para os meus leitores. Posto isto, para não deixar simplesmente este mote no ar, revelo um pouco mais da trama. A primeira parte da história retrata simultaneamente a investigação que Elias vai fazendo ao longo dos seus dias, mentalmente, e o interrogatório a uma das suspeitas, Filomena, abreviada como Mena, sendo pormenores sobre o caso revelados ao longo desta primeira parte, em retrospetiva. A segunda parte da história dá conta da reconstituição da noite em que a vítima, major Dantas Castro, foi assassinada, já com todos os suspeitos sob custódia da PJ.
Como já referi, o livro está dividido em duas partes, a investigação e a reconstituição, sendo que a primeira se divide em seis capítulos. A história é narrada numa mistura peculiar de presente e de retrospetiva, uma vez que a narração dos eventos é interrompida de vez em quando para introduzir informações adicionais que são fornecidas pelos autos do processo, ou seja, pelos textos legais finais e definitivos, que não poderiam existir aquando da investigação. Esta indefinição temporal da narração é peculiar a José Cardoso Pires, uma vez que ele se revela um narrador-autor, o homem que escreve é também o homem que narra. Esta utilização específica de narração cria um efeito de ficção real, é como se o caso se tivesse passado realmente no nosso mundo, e não só nas páginas do romance. No entanto, esta forma de narração distraiu-me por vezes, e vi-me obrigado a ter de repetir alguns parágrafos para retomar balanço na leitura. Regressando à linha fina que separa a realidade da ficção, obviamente essa falta de fronteira é intencional, uma vez que o autor, com este romance, demonstra, a meu ver, duas intenções: a de narrar como era a vida em Portugal durante o regime salazarista e o de transmitir uma ideia de possibilidade dos eventos narrados. O autor quis transmitir que os eventos que narrou saíram da sua imaginação, mas isso não quer dizer que não tenham acontecido, com outros intervenientes. As duras críticas à PIDE não escapam ao leitor, também. O tipo de escrita é sóbrio e direto, sem grandes floreados e de teor oral, como se o autor estivesse verdadeiramente a falar connosco presencialmente.
Concluindo, não foi uma leitura que eu possa dizer que tenha apreciado, mas não deixa de ser um romance inovador, focado e magistralmente composto, como são a generalidade das obras de José Cardoso Pires. Portanto, recomendo a leitura do romance, quer pelo estilo de escrita sóbrio, quer pela crítica inerente ao regime salazarista.
Citações:
"Contempla-o sentado à mesa, tendo à mão esquerda o lagarto Lizardo no seu deserto vidrado e à frente a noite em janela de infinito. Aprofunda a foto em silêncio."
"Tendo em vistas o advogado dos brilhos, salienta que o homo politicus é um animal lixado de trabalhar porque tem padrinhos no céu e afilhados no inferno, para não falarmos no purgatório que é onde se junta a maralha dos conspiradores em part-time."
"Depenou-a em poucas bicadas, foi fácil, trigo limpo, e agora, todo sozinho, soma as penas que ficaram a flutuar depois dela, é assim que a abrange melhor. A experiência diz-lhe que o investigar é como nos filmes, só depois do écran, só depois do contado e olhado, é que, repetindo e ligando, as fitas se veem no todo e por dentro."
Pontuação: 5.8/10
Agradáveis leituras,
Gonçalo M. Matos
A história relata a investigação levada a cabo pela Polícia Judiciária após a descoberta de um cadáver na Praia do Mastro em abril de 1960, em plena ditadura salazarista. A história é basicamente esta. Qualquer acrescento que eu faça a este pequeno sumário será uma revelação do enredo, coisa que eu não desejo para os meus leitores. Posto isto, para não deixar simplesmente este mote no ar, revelo um pouco mais da trama. A primeira parte da história retrata simultaneamente a investigação que Elias vai fazendo ao longo dos seus dias, mentalmente, e o interrogatório a uma das suspeitas, Filomena, abreviada como Mena, sendo pormenores sobre o caso revelados ao longo desta primeira parte, em retrospetiva. A segunda parte da história dá conta da reconstituição da noite em que a vítima, major Dantas Castro, foi assassinada, já com todos os suspeitos sob custódia da PJ.
Como já referi, o livro está dividido em duas partes, a investigação e a reconstituição, sendo que a primeira se divide em seis capítulos. A história é narrada numa mistura peculiar de presente e de retrospetiva, uma vez que a narração dos eventos é interrompida de vez em quando para introduzir informações adicionais que são fornecidas pelos autos do processo, ou seja, pelos textos legais finais e definitivos, que não poderiam existir aquando da investigação. Esta indefinição temporal da narração é peculiar a José Cardoso Pires, uma vez que ele se revela um narrador-autor, o homem que escreve é também o homem que narra. Esta utilização específica de narração cria um efeito de ficção real, é como se o caso se tivesse passado realmente no nosso mundo, e não só nas páginas do romance. No entanto, esta forma de narração distraiu-me por vezes, e vi-me obrigado a ter de repetir alguns parágrafos para retomar balanço na leitura. Regressando à linha fina que separa a realidade da ficção, obviamente essa falta de fronteira é intencional, uma vez que o autor, com este romance, demonstra, a meu ver, duas intenções: a de narrar como era a vida em Portugal durante o regime salazarista e o de transmitir uma ideia de possibilidade dos eventos narrados. O autor quis transmitir que os eventos que narrou saíram da sua imaginação, mas isso não quer dizer que não tenham acontecido, com outros intervenientes. As duras críticas à PIDE não escapam ao leitor, também. O tipo de escrita é sóbrio e direto, sem grandes floreados e de teor oral, como se o autor estivesse verdadeiramente a falar connosco presencialmente.
Concluindo, não foi uma leitura que eu possa dizer que tenha apreciado, mas não deixa de ser um romance inovador, focado e magistralmente composto, como são a generalidade das obras de José Cardoso Pires. Portanto, recomendo a leitura do romance, quer pelo estilo de escrita sóbrio, quer pela crítica inerente ao regime salazarista.
Citações:
"Contempla-o sentado à mesa, tendo à mão esquerda o lagarto Lizardo no seu deserto vidrado e à frente a noite em janela de infinito. Aprofunda a foto em silêncio."
"Tendo em vistas o advogado dos brilhos, salienta que o homo politicus é um animal lixado de trabalhar porque tem padrinhos no céu e afilhados no inferno, para não falarmos no purgatório que é onde se junta a maralha dos conspiradores em part-time."
"Depenou-a em poucas bicadas, foi fácil, trigo limpo, e agora, todo sozinho, soma as penas que ficaram a flutuar depois dela, é assim que a abrange melhor. A experiência diz-lhe que o investigar é como nos filmes, só depois do écran, só depois do contado e olhado, é que, repetindo e ligando, as fitas se veem no todo e por dentro."
Pontuação: 5.8/10
Agradáveis leituras,
Gonçalo M. Matos
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