sábado, 24 de dezembro de 2016

"O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde", de Robert Louis Stevenson

   O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde é uma das histórias mais conhecidas e uma das minhas preferidas na literatura. Trata-se de um dos livros mais emblemáticos de um autor marcante na literatura de língua inglesa, sendo ainda nos dias de hoje admirado e estudado pela sua inovadora criatividade no tratamento de certos temas. Trata-se de um dos romances góticos mais conhecidos e é considerado por muitos (entre os quais, o mestre do romance gótico atual, Stephen King) como um dos clássicos do género. A sua influência foi tão vincada que a expressão "Jekyll and Hyde" faz parte da língua inglesa como designação precisamente da duplicidade moral de uma pessoa. 
   A história divide-se em três momentos. O primeiro, que é composto pela maior parte da obra, é o relato das indagações do advogado John Utterson sobre a relação sombria entre um terrível senhor chamado Edward Hyde e o seu amigo Henry Jekyll. O segundo momento consiste numa carta que o amigo de Utterson e Jekyll, Dr. Hastie Lanyon, a relatar a sua parte dos estranhos acontecimentos que rodeiam Jekyll e Hyde. O terceiro e último momento consiste na confissão de Henry Jekyll da sua ligação a essa criatura maligna que é Edward Hyde, ligação essa que, por ser tão famosa a história, todos sabemos tratar-se de uma fórmula que transforma quem a toma, trazendo ao de cima o seu lado mais maligno e os seus impulsos mais primitivos. Entre o primeiro e os restantes momentos, vários acontecimentos pontuais sucedem-se e são deixados por explicar de forma a que tudo seja elucidado mais para a frente, terminando a história num desenlace tenebroso e misterioso.
   Todo o romance transpira um ambiente sufocante e tenso, sempre pairando a ideia de nevoeiro, de enublado. Por todo o romance há pequenas insinuações à duplicidade, que passam despercebidas após uma primeira leitura. Referências ao dia e à noite, ou ao sol e ao nevoeiro. Até a casa onde habita Hyde se encontra nas traseiras da casa onde habita Jekyll, numa propositada alusão do autor à personalidade oculta do doutor. A razão principal que me leva a acarinhar esta história é o tema da duplicidade da alma humana, o lado bom e moralmente aceitável e o lado mau e primitivo nas suas ações. Essa multiplicidade de personalidades sempre me fascinou e a história que melhor retrata essa dualidade apenas podia ser muito apreciada por mim. O personagem que claramente mais me fascina é o Dr. Jekyll/Mr. Hyde. É ele o centro de todo o romance, é ele que movimenta o desenrolar do enredo. Henry Jekyll, um homem ético e austero nas suas emoções, crê ter desbloqueado a chave da alma humana, crê que a sua visão bipartida da alma humana é a correta, e decide fazer experiências para testar a sua tese. Dessas experiências nasce Edward Hyde, um homem de aspeto sombrio e que "passa uma a ideia de deformidade", que provoca calafrios em todos os que consigo contactam, imoral e composto apenas de pensamentos primitivos e eticamente malignos. E a pertir das primeiras experiências, Edward Hyde vai-se intrometendo aos poucos na vida de Jekyll até atingir um ponto sem retorno. A dualidade inerente da alma humana, a multiplicidade de personalidades, como disse, são temas que me fascinam profundamente, e esta visão peculiar dessa duplicidade não merece mais do que ser aplaudida e, mais importante, lida. 
   Portanto, trata-se de uma obra brilhante que deve ser lida e apreciada por todos os fascinados por boa literatura e pela questão da alma humana.

Citações:
"O homem levou o copo à boca e bebeu dum trago. Soltou um grito. Cambaleou, vacilou, agarrou-se à mesa, de olhos esgazeados, respirando com a boca escancarada. Mas, enquanto eu olhava, principiou..., assim me quis parecer..., a transformar-se, a inchar, a cara tornava-se negra, as feições como que dissolvendo-se e alterando-se." 
"Desde longa data, ainda antes que as minhas descobertas científicas começassem a sugerir-me a simples possibilidade de semelhante milagre, aprendi a admitir e a saborear, como uma fantasia deliciosa, o pensamento da separação daqueles dois elementos. Se cada um, dizia eu comigo, pudesse habitar numa entidade diferente, a vida libertar-se-ia de tudo o que é intolerável. O mau poderia seguir o seu destino, livre das aspirações e remorsos do seu irmão gémeo, o bom; e este caminharia resolutamente, cheio de segurança, na senda da virtude, fazendo o bem em que tanto se compraz, sem ficar exposto à desonra e à penitência engendradas pelo perverso."


Pontuação: 10/10


Gonçalo Martins de Matos

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

"A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça", de Washington Irving

   A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça é uma das histórias universalmente mais conhecidas pelos leitores, sendo o seu autor, Washington Irving, considerado, com esta história, como o introdutor do conto como um género literário próprio. Este conto consiste, precisamente, numa das mais importantes obras da literatura americana, sendo apreciada e estudada até aos dias de hoje. Washington Irving é tido como o primeiro grande escritor americano e foi graças a si que a literatura americana pôde afirmar-se perante o mundo. 
   O conto relata a história de Ichabod Crane, um mestre-escola que desempenhava a missão de instruir todas as crianças de Sleepy Hollow, sendo um professor rigoroso, mas justo e compreensivo. O enredo consiste na competição entre Ichabod Crane e Brom Bones pela mão de Katrina Van Tassel, filha única do rico fazendeiro Baltus Van Tassel. Uma noite, após um serão em casa dos Van Tassel, Crane, a caminho de casa, encontra-se com o Cavaleiro sem Cabeça, o fantasma de um cavaleiro hessiano da altura da Revolução Americana, que se dizia percorrer o Vale em busca da sua cabeça perdida. Crane tenta fugir, mas o Cavaleiro persegue-o, acabando por o apanhar na Ponte da Igreja de Sleepy Hollow, onde fica selado o destino infeliz de Ichabod Crane. No dia seguinte os habitantes procuram saber o que se terá passado com o mestre-escola, concluindo no final que o infeliz foi vítima do Cavaleiro. 
   Como se trata de uma história tão conhecida, desta vez não tive tantos cuidados com as revelações de enredo, mas esses cuidados são irrelevantes porque o que fascina os leitores nesta história é a escrita, as descrições das paisagens americanas oitocentistas e os seus personagens. Trata-se de uma história muitíssimo equilibrada, não exagerando nas descrições e sendo direta na narração. Para mim, as personagens mais fascinantes do conto são o protagonista e o antagonista, precisamente. Ichabod Crane é descrito como um homem alto, magro e educado, mas extremamente suscetível e supersticioso. A sua demanda para conquistar a mão de Katrina Van Tassel vê-se gorada, mas esse é o aspeto mais irrelevante de toda a construção do personagem, sendo o aspeto mais fascinante o seu empenho em instruir todas as crianças de Sleepy Hollow. O Cavaleiro sem Cabeça é para mim a personagem mais intrigante deste conto e uma das personagens sobrenaturais mais fascinantes da literatura. O Cavaleiro é um fantasma que assombra o campo de batalha onde pereceu, procurando incansavelmente a sua cabeça. A história deixa em aberto a natureza do fantasma, se seria realmente uma assombração ou se seria na realidade o rival de Crane, Brom Bones, disfarçando, sendo que a narrativa aponta mais para esta segunda opção.
   Em suma, trata-se de uma obra fascinante e realmente bem composta, sendo bastante inovadora na literatura americana da época, influenciando os autores que se seguiram, que deve ser lida e apreciada pelos amantes de uma boa história. 

Citações:
"Certo é que o lugar ainda continua sob a influência de algum poder mágico que lançou um feitiço sobre as mentes daquela boa gente, levando-os a andar num devaneio contínuo. São dados a todos os géneros de crenças maravilhosas; estão sujeitos a transes e visões, e é frequente verem coisas estranhas e ouvirem música e vozes no ar."
"Havia um contágio no próprio ar que soprava daquela região assombrada; soltava uma atmosfera de sonhos e fantasias que infetavam toda a terra."


Pontuação: 9.8/10


Gonçalo Martins de Matos

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

"O Livro dos Homens sem Luz", de João Tordo

   Quando nos preparamos para ler o primeiro livro de um escritor devemos sempre ter em conta que, por mais que gostemos do autor, o livro pode dececionar-nos ou deliciar-nos, uma vez que se trata da pedra sobre a qual o autor ergue o resto da sua carreira. Um autor nunca deve ser imediatamente julgado pelo seu primeiro livro porque o primeiro livro é sempre o ponto de partida para a sua evolução literária. No entanto, o primeiro romance de João Tordo não dececiona. O Livro dos Homens sem Luz é construído com precisão, minúcia e coerência interna, sendo composto por várias histórias que se ligam entre si e por personagens tão peculiares mas que apelam a tanta gente. Trata-se sem dúvida de uma obra já bastante madura, tendo em conta que é o primeiro romance do autor. As características principais que marcam os livros subsequentes de João Tordo encontram-se todas neste seu primeiro romance. 
   O romance passa-se maioritariamente em Londres e divide-se em quatro partes, em quatro histórias diferentes que se interligam e que caminham para um desenlace comum e inevitável. Muito brevemente exporei a história de cada parte. Na primeira parte seguimos o quotidiano do narrador, chamado David, cuja perceção do mundo que o rodeia passa de uma apatia imutável para a sensação de inevitabilidade e de que a sua vida não lhe pertence, de que não é comandada por si, após uma sequência inesperada e bizarra de acontecimentos. Na segunda parte conhecemos um casal, Joseph e Helena, que ficam soterrados na cave da sua casa após um ataque alemão a Londres. A narração expõe o que se passou na cave e de como Helena se tornou numa pessoa fria e Joseph numa besta, nem homem, nem animal, completamente desmoronado psicologicamente. A terceira parte relata a constante insónia e dificuldade de interpretação da realidade ou irrealidade do mundo que o rodeia de um estudante que trabalha como arrumador de livros em Londres. A quarta história relata o internamento e estudo de Joseph por parte do hospital de Brighton e do médico por este convidado, Robert Burke. As histórias partilham aspetos em comum que lhes atribui um caráter de veracidade e de realidade, apesar do seu teor insólito. Todas as narrativas são labirínticas e claustrofóbicas, damos por nós a interromper a leitura para respirar e certificar-nos de que ainda nos encontramos no espaço físico onde iniciamos a leitura.
   O autor faz um uso cuidado da língua e estica até aos limites a perceção que o leitor tem da realidade. Há, para mim, três aspetos fundamentais que ligam as histórias presentes no romance. O primeiro é a figura enigmática de Roy, que é mencionado em todas as histórias menos na de Joseph e Helena e que faz a sua aparição na história final. Roy começa e termina o romance como um personagem omnipresente, que controla a vida de todos os que consigo contactam. O segundo aspeto é a referência a três palavras-chave que atravessam o romance, insónia, fantasma e escuridão. Estas três palavras são sempre utilizadas pelos personagens quer a descrever as suas existências, quer a descrever a realidade onde se encontram inseridos. O terceiro é a presença de um cobertor laranja, que se encontra sempre presente no espaço físico das personagens. O narrador da primeira história é o dono do cobertor laranja, sendo que depois o passa para o jovem estudante, sendo-nos depois referido que o cobertor laranja era de Roy aquando da sua estadia no hospital. Cada história funciona como conclusão da anterior seguindo um esquema cruzado: a terceira conclui o que foi narrado na primeira e a quarta conclui o que foi narrado na segunda. A insónia e a escuridão oprimem a existência fantasmagórica dos personagens deste romance, sendo que aqui o nome fantasma representa não uma alma penada que vagueia a terra, mas uma pessoa real, de carne e osso, mas cuja existência passa despercebida e se processa de maneira monotonamente igual. 
   Concluo, portanto, afirmando de que me entretive imenso com este romance de João Tordo. Neste romance estão presentes as várias características que marcariam os romances seguintes, como as histórias insólitas, os personagens peculiares e a presença de personagens de umas histórias noutras histórias. Trata-se de boa literatura portuguesa e de um romance que aconselho que seja lido por todos os que apreciam uma narrativa com qualidade.

Citações:
"Escrevi as estórias daqueles que conheci durante os meus últimos tempos no mundo, e de outros que encontrei dentro de mim, escondidos, à espera de uma porta que se abrisse no escuro, estórias que irão ler nas páginas deste livro."
"Os sonhos começaram pouco tempo depois, regulares e intensos, como se um fantasma regressasse à casa que decidira assombrar, mas da qual fora expulso."
"Vi os sacos de lixo derrubados à porta de um prédio; e vi um bando de pássaros baterem as asas como livros folheados, fugindo à tempestade que se anunciava. A chuva começou a cair, oblíqua e indiferente, sobre toda a cidade, e um grupo de folhas ergueu-se no ar, conversando, murmurando segredos que nunca serão acessíveis aos homens."


Pontuação: 8.9/10


Gonçalo Martins de Matos