Quando nos preparamos para ler o primeiro livro de um escritor devemos sempre ter em conta que, por mais que gostemos do autor, o livro pode dececionar-nos ou deliciar-nos, uma vez que se trata da pedra sobre a qual o autor ergue o resto da sua carreira. Um autor nunca deve ser imediatamente julgado pelo seu primeiro livro porque o primeiro livro é sempre o ponto de partida para a sua evolução literária. No entanto, o primeiro romance de João Tordo não dececiona. O Livro dos Homens sem Luz é construído com precisão, minúcia e coerência interna, sendo composto por várias histórias que se ligam entre si e por personagens tão peculiares mas que apelam a tanta gente. Trata-se sem dúvida de uma obra já bastante madura, tendo em conta que é o primeiro romance do autor. As características principais que marcam os livros subsequentes de João Tordo encontram-se todas neste seu primeiro romance.
O romance passa-se maioritariamente em Londres e divide-se em quatro partes, em quatro histórias diferentes que se interligam e que caminham para um desenlace comum e inevitável. Muito brevemente exporei a história de cada parte. Na primeira parte seguimos o quotidiano do narrador, chamado David, cuja perceção do mundo que o rodeia passa de uma apatia imutável para a sensação de inevitabilidade e de que a sua vida não lhe pertence, de que não é comandada por si, após uma sequência inesperada e bizarra de acontecimentos. Na segunda parte conhecemos um casal, Joseph e Helena, que ficam soterrados na cave da sua casa após um ataque alemão a Londres. A narração expõe o que se passou na cave e de como Helena se tornou numa pessoa fria e Joseph numa besta, nem homem, nem animal, completamente desmoronado psicologicamente. A terceira parte relata a constante insónia e dificuldade de interpretação da realidade ou irrealidade do mundo que o rodeia de um estudante que trabalha como arrumador de livros em Londres. A quarta história relata o internamento e estudo de Joseph por parte do hospital de Brighton e do médico por este convidado, Robert Burke. As histórias partilham aspetos em comum que lhes atribui um caráter de veracidade e de realidade, apesar do seu teor insólito. Todas as narrativas são labirínticas e claustrofóbicas, damos por nós a interromper a leitura para respirar e certificar-nos de que ainda nos encontramos no espaço físico onde iniciamos a leitura.
O autor faz um uso cuidado da língua e estica até aos limites a perceção que o leitor tem da realidade. Há, para mim, três aspetos fundamentais que ligam as histórias presentes no romance. O primeiro é a figura enigmática de Roy, que é mencionado em todas as histórias menos na de Joseph e Helena e que faz a sua aparição na história final. Roy começa e termina o romance como um personagem omnipresente, que controla a vida de todos os que consigo contactam. O segundo aspeto é a referência a três palavras-chave que atravessam o romance, insónia, fantasma e escuridão. Estas três palavras são sempre utilizadas pelos personagens quer a descrever as suas existências, quer a descrever a realidade onde se encontram inseridos. O terceiro é a presença de um cobertor laranja, que se encontra sempre presente no espaço físico das personagens. O narrador da primeira história é o dono do cobertor laranja, sendo que depois o passa para o jovem estudante, sendo-nos depois referido que o cobertor laranja era de Roy aquando da sua estadia no hospital. Cada história funciona como conclusão da anterior seguindo um esquema cruzado: a terceira conclui o que foi narrado na primeira e a quarta conclui o que foi narrado na segunda. A insónia e a escuridão oprimem a existência fantasmagórica dos personagens deste romance, sendo que aqui o nome fantasma representa não uma alma penada que vagueia a terra, mas uma pessoa real, de carne e osso, mas cuja existência passa despercebida e se processa de maneira monotonamente igual.
Concluo, portanto, afirmando de que me entretive imenso com este romance de João Tordo. Neste romance estão presentes as várias características que marcariam os romances seguintes, como as histórias insólitas, os personagens peculiares e a presença de personagens de umas histórias noutras histórias. Trata-se de boa literatura portuguesa e de um romance que aconselho que seja lido por todos os que apreciam uma narrativa com qualidade.
Citações:
"Escrevi as estórias daqueles que conheci durante os meus últimos tempos no mundo, e de outros que encontrei dentro de mim, escondidos, à espera de uma porta que se abrisse no escuro, estórias que irão ler nas páginas deste livro."
"Os sonhos começaram pouco tempo depois, regulares e intensos, como se um fantasma regressasse à casa que decidira assombrar, mas da qual fora expulso."
"Vi os sacos de lixo derrubados à porta de um prédio; e vi um bando de pássaros baterem as asas como livros folheados, fugindo à tempestade que se anunciava. A chuva começou a cair, oblíqua e indiferente, sobre toda a cidade, e um grupo de folhas ergueu-se no ar, conversando, murmurando segredos que nunca serão acessíveis aos homens."
Pontuação: 8.9/10
Gonçalo Martins de Matos
O romance passa-se maioritariamente em Londres e divide-se em quatro partes, em quatro histórias diferentes que se interligam e que caminham para um desenlace comum e inevitável. Muito brevemente exporei a história de cada parte. Na primeira parte seguimos o quotidiano do narrador, chamado David, cuja perceção do mundo que o rodeia passa de uma apatia imutável para a sensação de inevitabilidade e de que a sua vida não lhe pertence, de que não é comandada por si, após uma sequência inesperada e bizarra de acontecimentos. Na segunda parte conhecemos um casal, Joseph e Helena, que ficam soterrados na cave da sua casa após um ataque alemão a Londres. A narração expõe o que se passou na cave e de como Helena se tornou numa pessoa fria e Joseph numa besta, nem homem, nem animal, completamente desmoronado psicologicamente. A terceira parte relata a constante insónia e dificuldade de interpretação da realidade ou irrealidade do mundo que o rodeia de um estudante que trabalha como arrumador de livros em Londres. A quarta história relata o internamento e estudo de Joseph por parte do hospital de Brighton e do médico por este convidado, Robert Burke. As histórias partilham aspetos em comum que lhes atribui um caráter de veracidade e de realidade, apesar do seu teor insólito. Todas as narrativas são labirínticas e claustrofóbicas, damos por nós a interromper a leitura para respirar e certificar-nos de que ainda nos encontramos no espaço físico onde iniciamos a leitura.
O autor faz um uso cuidado da língua e estica até aos limites a perceção que o leitor tem da realidade. Há, para mim, três aspetos fundamentais que ligam as histórias presentes no romance. O primeiro é a figura enigmática de Roy, que é mencionado em todas as histórias menos na de Joseph e Helena e que faz a sua aparição na história final. Roy começa e termina o romance como um personagem omnipresente, que controla a vida de todos os que consigo contactam. O segundo aspeto é a referência a três palavras-chave que atravessam o romance, insónia, fantasma e escuridão. Estas três palavras são sempre utilizadas pelos personagens quer a descrever as suas existências, quer a descrever a realidade onde se encontram inseridos. O terceiro é a presença de um cobertor laranja, que se encontra sempre presente no espaço físico das personagens. O narrador da primeira história é o dono do cobertor laranja, sendo que depois o passa para o jovem estudante, sendo-nos depois referido que o cobertor laranja era de Roy aquando da sua estadia no hospital. Cada história funciona como conclusão da anterior seguindo um esquema cruzado: a terceira conclui o que foi narrado na primeira e a quarta conclui o que foi narrado na segunda. A insónia e a escuridão oprimem a existência fantasmagórica dos personagens deste romance, sendo que aqui o nome fantasma representa não uma alma penada que vagueia a terra, mas uma pessoa real, de carne e osso, mas cuja existência passa despercebida e se processa de maneira monotonamente igual.
Concluo, portanto, afirmando de que me entretive imenso com este romance de João Tordo. Neste romance estão presentes as várias características que marcariam os romances seguintes, como as histórias insólitas, os personagens peculiares e a presença de personagens de umas histórias noutras histórias. Trata-se de boa literatura portuguesa e de um romance que aconselho que seja lido por todos os que apreciam uma narrativa com qualidade.
Citações:
"Escrevi as estórias daqueles que conheci durante os meus últimos tempos no mundo, e de outros que encontrei dentro de mim, escondidos, à espera de uma porta que se abrisse no escuro, estórias que irão ler nas páginas deste livro."
"Os sonhos começaram pouco tempo depois, regulares e intensos, como se um fantasma regressasse à casa que decidira assombrar, mas da qual fora expulso."
"Vi os sacos de lixo derrubados à porta de um prédio; e vi um bando de pássaros baterem as asas como livros folheados, fugindo à tempestade que se anunciava. A chuva começou a cair, oblíqua e indiferente, sobre toda a cidade, e um grupo de folhas ergueu-se no ar, conversando, murmurando segredos que nunca serão acessíveis aos homens."
Pontuação: 8.9/10
Gonçalo Martins de Matos
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