quinta-feira, 22 de agosto de 2019

"a máquina de fazer espanhóis", de valter hugo mãe

   As reservas que ainda tinha com a escrita de Valter Hugo Mãe, derivadas daquela primeira leitura e posterior redescoberta de o remorso de baltazar serapião, dissiparam-se definitivamente com este romance. Romance que encerra a "tetralogia das minúsculas", trata-se este a máquina de fazer espanhóis de um belíssimo romance por um dos autores mais originais da literatura portuguesa contemporânea.
   A vida de antónio jorge da silva muda drasticamente com a morte de laura, a sua mulher. De repente e sem aviso, aos 83 anos, viúvo e amargurado com o resto de vida que teria sem a sua mulher a seu lado, antónio silva é posto num lar de idade, o tempos felizes, onde passará o resto dos seus dias. De início misantropo e ensimesmado, de luto pela sua situação, aos poucos vais travando conhecimento com outros dos habitantes do lar. É assim que conhecemos personagens como o senhor pereira, o silva da europa, o anísio e o esteves, que, juntos, terão as suas conversas, os seus debates e as suas galhofas de forma a enfrentarem a depressão que tende a assaltar-lhes os pensamentos no resto de vida que ainda têm. É principalmente nestes personagens, e noutros, como por exemplo américo, médico que se afeiçoa a antónio silva, que se foca o romance, sendo tudo e todos perscrutados e relatados pelos olhos de antónio silva, a par com as suas reflexões sobre os temas que percorrem este romance: a velhice, a morte, a viuvez, a amizade e a vida. É este o andamento do romance, em vagas e acalmias, até a um final agridoce, tão brilhante quanto poético.
   Como é sabido, este é o último romance da "tetralogia das minúsculas", que, como o nome indica, se demarca por os seus quatro títulos estarem compostos completamente em minúsculas, sem qualquer distinção ortográfica de início ou fim de discurso direto e sem qualquer tipo de pontuação que não sejam pontos e vírgulas. Esta inteligente forma de o autor homenagear a intenção de Saramago de aproximar a escrita da linguagem oral é, assim, levada ao extremo. No entanto, é uma forma que não choca de modo nenhum com a narrativa, chegando nós mesmo a certo ponto da leitura que nem nos faz diferença se existem maiúsculas ou se não há travessão a iniciar o diálogo. No entanto, este livro tem um pormenor que os outros não têm. Dois capítulos neste romance estão escritos de forma tradicional, com maiúsculas e com outra pontuação, para além de estar escrito na terceira pessoa. Os temas e os personagens deste romance são sublimemente tratados, cada um dos velhos do lar, com as suas histórias, servem o seu propósito de dar a conhecer a antónio silva o conforto da amizade no difícil luto que atravessa. Dois aspetos devem aqui ser relevados. O primeiro é a existência o lar de um esteves com metafísica, em contraponto com o Esteves sem metafísica do poema de Álvaro de Campos. O outro é as ominosas visitas que o protagonista sofre de pássaros negros que entram pela janela para o magoar. A escrita de Valter Hugo Mãe é lírica e luminosa. No entanto, há uma crueza bem característica no tratamento da narrativa, que nos confronta com o que julgamos ser o acertado e nos retira a tapete algumas vezes, deixando-nos suspensos no seu significado. Há sem dúvida uma grande carga emocional na escrita deste autor, e não nos deixa indiferentes a tudo quanto sofrem os seus personagens. Um pormenor muito curioso é o destino da estatueta da nossa senhora, apelidada pelo protagonista de "mariazinha", que o acompanha pelas páginas desta obra. Não sendo antónio silva um homem religioso, a sua afeição à estatueta é ao mesmo tempo comovente e simbólica, uma vez que não representa a espiritualidade normalmente associada à imagética católica, mas acaba por representar todas as suas "aventuras" no lar, todos os bons momentos que passou com os seus novos amigos. 
   Resta-me recomendar, naturalmente, o romance. Todos quanto apreciem o lirismo e o esteticismo das construções de Valter Hugo Mãe devem ler esta sublime obra. Não imagino melhor elogio que o fornecido por António Lobo Antunes na contracapa deste livro: "A maior parte dos livros são escritos para o público; este é um livro escrito para os leitores."

Citações:
"com a morte, também amor devia acabar. ato contínuo, o nosso coração devia esvaziar-se de qualquer sentimento que até ali nutrira pela pessoa que deixou de existir. pensamos, existe ainda, está dentro e nós, ilusão que criamos para que se torne todavia mais humilhante a perda e para que nos abata de uma vez por todas com piedade."
"o senhor pereira soltou uma gargalhada  e disse, e a sorte é não ter os pastorinhas agarrados ali também, de joelhos a rezar, sabe, é costume. e eu respondi, que pena, ia dar-me um gozo ainda maior poder desparasitar a mariazinha dessa biches toda. coitada da rapariga, que até lhe põem uma expressão com vontade, mas depois não reage, fica como se a casa de banho estivesse ocupada."  
"quando dizemos que antigamente é que era bom estamos só a ter saudades, queremos na verdade dizer que antigamente éramos novos, reconhecíamos o mundo como nosso e não tínhamos dores de costas nem reumatismo. é uma saudade de nós próprios, e não exatamente do regime e menos ainda de salazar."


Pontuação: 9.5/10


Gonçalo Martins de Matos

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