O filho de mil homens é o primeiro romance de Valter Hugo Mãe após a sua "tetralogia das minúsculas", o que inaugurou o capítulo seguinte do estilo do autor. E nota-se bem a diferença de fôlego dos anteriores para este.
Crisóstomo, chegado aos 40 anos de idade, assume a tristeza de não ter um filho. Incompleto, metade de si mesmo, é com esse facto que ocupa os seus pensamentos. Crisóstomo é um pescador solitário que, num dos seus dias de trabalho, encontra um rapaz chamado Camilo, ao qual, após uma epifania e um abraço, pergunta se pode ser seu pai. Camilo responde que sim. É assim que é lançado o pretexto para que do encontro entre duas almas incompletas inaugure uma sucessão de encontros que criarão uma família não sanguínea, mas tão pura e humana como qualquer outra. As histórias de Crisóstomo e de Camilo cruzam-se com as de Isaura, Antonino, Matilde e Emília, que comporão a família inventada do pescador e do rapaz. Pelo meio outros personagens trarão um pouco das suas vidas para ir compondo as vidas uns dos outros, numa mútua influência que marca toda a experiência humana. As diferentes vidas que preenchem este romance entrelaçam-se de forma invulgar e única, por vezes agridocemente, mas sempre de uma humanidade subjacente, invisível superficialmente. É de interações humanas que esta história se compõe e é delas que se forma um final humano e sensível, não alheio ao que compõe a felicidade real de ser humano.
Como foi dito, este romance é o primeiro de Valter Hugo Mãe após a tetralogia das minúsculas, e com ele veio um novo fôlego. A mudança de estilo é notável na forma como se liam os anteriores e como se lê este. A voz do autor permanece a mesma, carregada de sensibilidade e humanismo, mas o tom é diferente. Uma das diferenças mais notáveis é a sensibilidade e o positivismo que atravessam todos os factos narrados e a forma de os personagens os encararem, ao contrário da crueza presente nos anteriores romances. O otimismo que transborda de Crisóstomo, não só para os que o rodeiam, mas para a a própria narrativa, é sem dúvida uma diferença quase abismal de tom. Quanto ao tratamento poético que Valter Hugo Mãe emprega na sua escrita, não há muito mais a acrescentar ao que já foi dito antes, a sua voz é marcadamente lírica e luminosa, carregada de um sensível humanismo que nos toca e não nos deixa indiferentes. Outro aspeto deste romance é a inclusão de duas belíssimas ilustrações do autor, no início do livro. Quanto aos personagens que compõem este romance, o que têm em comum Crisóstomo, Camilo, Isaura, Antonino, Matilde e Emília? Todos são desajustados de uma sociedade hipócrita e mesquinha que tem dificuldades em aceitar o outro, para além de as suas experiências de vida serem marcadas pela dor e pela angústia. É Crisóstomo a luz que afastará essa escuridão da vida da sua família, e assim poderão todos viver felizes, nem que seja por breves momentos, aceitando-se a si mesmos. Crisóstomo é um personagem sensível e carregado de bondade e amor, que nos comove com o seu modo otimista e esperançoso de ver o mundo que o rodeia. Por este lado gostamos imenso de conhecer Crisóstomo e de o deixar contagiar-nos com a sua bondade. A forma como a sociedade tacanha oprime o potencial humano de cada um é soberbamente tratada neste romance. A anã (falecida mãe de Camilo) é empurrada para o seu lugar de coitada pelas suas vizinhas, demasiado cristãs para deixarem a pobre alma desenrascar-se sozinha, a Isaura é castigada e repreendida por não cumprir as expetativas que outros haviam construído para si, o Antonino é desde cedo reprimido por ser homossexual e, portanto, diferente do que um homem deve ser. É preciso Crisóstomo mostrar aos párias da sociedade que o melhor que podemos fazer é ser nós mesmos para que nos aceitemos tal como somos, e assim, o mundo tornar-se um lugar menos sombrio e solitário. É a mensagem positiva e otimista deste romance que nos comove e toca especialmente, particularmente na apologia que faz da auto-aceitação. Trata-se esta obra de uma pérola de humanismo, escasso cada vez mais numa sociedade construída por cruéis expetativas de terceiros e preconceitos tacanhos.
Este luminoso romance não pode, portanto, deixar de ser lido.
Citações:
"Via-se metade ao espelho porque se via sem mais ninguém, carregado de ausências e de silêncios como os precipícios ou poços fundos. Para dentro do homem era um sem fim, e pouco ou nada do que continha lhe servia de felicidade. Para dentro do homem o homem caía."
"O Antonino explicou-lhe que não queria ser mulher e que gostava de mulheres e que lhes prestava atenção. Disse que admirava a liberdade que tinham para a expressão da sensibilidade, achava que era como uma permissão para ter a alma à solta, autorizada a manifestar-se pela beleza ou pelo espanto de cada coisa. Estava autorizada à sensibilidade que fazia da vida uma travessia mais intensa."
"Aos quarenta anos, o Crisóstomo deitou-se sobre a areia e inventou que estava ligado a todas as pequenas e grandes coisas do mundo, como se lhes pertencesse por igual e cada pedaço de matéria fosse uma extensão longínqua de si. Ia do centro do seu peito aos pinheiros ao fundo, ia do centro do seu peito à rocha despontando no meio do mar, ia do centro do seu peito até ao telhado de cada casa."
Pontuação: 9/10
Gonçalo Martins de Matos
Crisóstomo, chegado aos 40 anos de idade, assume a tristeza de não ter um filho. Incompleto, metade de si mesmo, é com esse facto que ocupa os seus pensamentos. Crisóstomo é um pescador solitário que, num dos seus dias de trabalho, encontra um rapaz chamado Camilo, ao qual, após uma epifania e um abraço, pergunta se pode ser seu pai. Camilo responde que sim. É assim que é lançado o pretexto para que do encontro entre duas almas incompletas inaugure uma sucessão de encontros que criarão uma família não sanguínea, mas tão pura e humana como qualquer outra. As histórias de Crisóstomo e de Camilo cruzam-se com as de Isaura, Antonino, Matilde e Emília, que comporão a família inventada do pescador e do rapaz. Pelo meio outros personagens trarão um pouco das suas vidas para ir compondo as vidas uns dos outros, numa mútua influência que marca toda a experiência humana. As diferentes vidas que preenchem este romance entrelaçam-se de forma invulgar e única, por vezes agridocemente, mas sempre de uma humanidade subjacente, invisível superficialmente. É de interações humanas que esta história se compõe e é delas que se forma um final humano e sensível, não alheio ao que compõe a felicidade real de ser humano.
Como foi dito, este romance é o primeiro de Valter Hugo Mãe após a tetralogia das minúsculas, e com ele veio um novo fôlego. A mudança de estilo é notável na forma como se liam os anteriores e como se lê este. A voz do autor permanece a mesma, carregada de sensibilidade e humanismo, mas o tom é diferente. Uma das diferenças mais notáveis é a sensibilidade e o positivismo que atravessam todos os factos narrados e a forma de os personagens os encararem, ao contrário da crueza presente nos anteriores romances. O otimismo que transborda de Crisóstomo, não só para os que o rodeiam, mas para a a própria narrativa, é sem dúvida uma diferença quase abismal de tom. Quanto ao tratamento poético que Valter Hugo Mãe emprega na sua escrita, não há muito mais a acrescentar ao que já foi dito antes, a sua voz é marcadamente lírica e luminosa, carregada de um sensível humanismo que nos toca e não nos deixa indiferentes. Outro aspeto deste romance é a inclusão de duas belíssimas ilustrações do autor, no início do livro. Quanto aos personagens que compõem este romance, o que têm em comum Crisóstomo, Camilo, Isaura, Antonino, Matilde e Emília? Todos são desajustados de uma sociedade hipócrita e mesquinha que tem dificuldades em aceitar o outro, para além de as suas experiências de vida serem marcadas pela dor e pela angústia. É Crisóstomo a luz que afastará essa escuridão da vida da sua família, e assim poderão todos viver felizes, nem que seja por breves momentos, aceitando-se a si mesmos. Crisóstomo é um personagem sensível e carregado de bondade e amor, que nos comove com o seu modo otimista e esperançoso de ver o mundo que o rodeia. Por este lado gostamos imenso de conhecer Crisóstomo e de o deixar contagiar-nos com a sua bondade. A forma como a sociedade tacanha oprime o potencial humano de cada um é soberbamente tratada neste romance. A anã (falecida mãe de Camilo) é empurrada para o seu lugar de coitada pelas suas vizinhas, demasiado cristãs para deixarem a pobre alma desenrascar-se sozinha, a Isaura é castigada e repreendida por não cumprir as expetativas que outros haviam construído para si, o Antonino é desde cedo reprimido por ser homossexual e, portanto, diferente do que um homem deve ser. É preciso Crisóstomo mostrar aos párias da sociedade que o melhor que podemos fazer é ser nós mesmos para que nos aceitemos tal como somos, e assim, o mundo tornar-se um lugar menos sombrio e solitário. É a mensagem positiva e otimista deste romance que nos comove e toca especialmente, particularmente na apologia que faz da auto-aceitação. Trata-se esta obra de uma pérola de humanismo, escasso cada vez mais numa sociedade construída por cruéis expetativas de terceiros e preconceitos tacanhos.
Este luminoso romance não pode, portanto, deixar de ser lido.
Citações:
"Via-se metade ao espelho porque se via sem mais ninguém, carregado de ausências e de silêncios como os precipícios ou poços fundos. Para dentro do homem era um sem fim, e pouco ou nada do que continha lhe servia de felicidade. Para dentro do homem o homem caía."
"O Antonino explicou-lhe que não queria ser mulher e que gostava de mulheres e que lhes prestava atenção. Disse que admirava a liberdade que tinham para a expressão da sensibilidade, achava que era como uma permissão para ter a alma à solta, autorizada a manifestar-se pela beleza ou pelo espanto de cada coisa. Estava autorizada à sensibilidade que fazia da vida uma travessia mais intensa."
"Aos quarenta anos, o Crisóstomo deitou-se sobre a areia e inventou que estava ligado a todas as pequenas e grandes coisas do mundo, como se lhes pertencesse por igual e cada pedaço de matéria fosse uma extensão longínqua de si. Ia do centro do seu peito aos pinheiros ao fundo, ia do centro do seu peito à rocha despontando no meio do mar, ia do centro do seu peito até ao telhado de cada casa."
Pontuação: 9/10
Gonçalo Martins de Matos
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