Como se verificou com O Ano da Morte de Ricardo Reis, este romance não é particularmente memorável, não deixando de configurar uma grande obra por um autor que não desilude.
O pano de fundo deste romance é uma Península Ibérica que se separa do restante continente europeu pelos Pirenéus, começando assim uma viagem pelo Atlântico fora "em busca" de um lugar. Começa a história pelo surgimento de fendas ao longo de toda a cordilheira pirenaica, que, apesar de intrigarem os cientistas, não dão azo a preocupação por parte das autoridades. Nas cidades fronteiriças, vários sinais vão surgindo de que se prepara alguma coisa incomum, nomeadamente na cidade de Cerbère, onde todos os cães, até então calados, começaram a ladrar. No início de tudo isto está o ato de Joana Carda, uma das protagonistas, de desenhar no chão um risco com uma vara de negrilho, estabelecendo-se assim uma causalidade entre este ato e os factos descritos. Separando-se definitivamente a Península da Europa, somos introduzidos a Joaquim Sassa, que atirou uma pedra de tamanho impossível para longe no mar, José Anaiço, que é perseguido para todo o lado por um enorme bando de estorninhos, e Pedro Orce, que afirma sentir a terra tremer debaixo dos seus pés, mesmo que mais ninguém o sinta, os primeiros em Portugal e o segundo em Espanha. Ouvindo falar de um homem perseguido por um bando de estorninhos, Joaquim Sassa decide procurá-lo, viajando no seu carro, Dois Cavalos. Ambos partem então em busca de Pedro Orce. Os três viajam juntos, apenas impelidos pela sensação de que assim tem de ser, que os acontecimentos bizarros que lhes aconteceram estão ligados à separação da Península. Em Lisboa, encontram Joana Carda, que lhes relata o seu episódio com a vara de negrilho, juntando-se então ao grupo, para lhes mostrar o risco que desenhara no chão, passando ela e José Anaiço a estar juntos. Surgindo um cão escuro com um fio de linho azul na boca no local onde se encontra o risco, que eles têm a sensação de querer que o sigam, este guia-os até a casa de Maria Guavaira, viúva, a quem se liga Joaquim Sassa através do fio de linho azul que o cão transportava. Partem então os cinco, mais o cão e dois cavalos, que puxam a galera que os transporta, para o "fim do mundo", os Pirenéus, onde sentem que devem rumar e onde desejam ver o mar do alto das montanhas. Pelo meio, vamos observando a resposta da Europa e do resto do mundo a um insólito como este, assim como ás reações dos portugueses e dos espanhóis à situação em que se encontram. Seguimos também as viagens internas dos protagonistas à medida que vão efetuando a sua viagem física.
Este romance de José Saramago é saído de uma das suas convicções mais fortes, que é a identidade ibérica que devia unir os dois povos da Península. A metáfora de a Península Ibérica se separar do resto da Europa e de, por força disso, ter de trabalhar em conjunto para minimizar as implicações de tal acontecimento é mais uma prova do génio efabulador de Saramago, juntando-se a uma grande galeria de metáforas excecionais criadas pelo Nobel português. A história que vai acontecendo quase se subalterniza à mensagem que o autor quer passar, parecendo que a viagem dos protagonistas é apenas uma desculpa para poder encetar na sua análise. O marcante sarcasmo do autor não deixa de se revelar neste romance, como se revela nos outros, assim como a sua utilização liberal da pontuação e a marcante oralidade da sua narração, que são pontos fulcrais da obra saramaguiana. No entanto, fora estas vertentes essenciais, este romance não tem, verdadeiramente, muito mais que seja marcante. O que é verdadeiramente marcante neste romance é a descrição dos recantos da península Ibérica por onde passam os protagonistas e a metáfora principal do autor, da não pertença cultural da Península a uma identidade europeia, antes a uma identidade ibérica conjunta. Outro ponto que é sempre favorável é o vernáculo popular empregue por Saramago nas suas narrações, o que vai, claro, de encontro ao teor oral da sua narrativa. Há também umas referências subtis a O Ano da Morte de Ricardo Reis, romance cronologicamente anterior a este, que geram um pequeno meio sorriso a quem o leu e as descortina na narrativa.
Reiterando o que escrevi sobre o romance anterior de Saramago, trata-se aqui de um romance saramaguiano, lúcido e que merece ser lido e apreciado, apesar dos pontos desfavoráveis que nele encontrei.
Citações:
"Um dia que já lá vai, D. João o Segundo, nosso rei, perfeito de cognome e a meu ver humorista perfeito, deu a certo fidalgo uma ilha imaginária, diga-me você se sabe doutro país onde pudesse ter acontecido uma história como esta, E o fidalgo, que fez o fidalgo, foi-se ao mar à procura dela, gostaria bem que me dissessem como se pode encontrar uma ilha imaginária, A tanto não chega a minha ciência, mas esta outra ilha, a ibérica, que era península e deixou de o ser, vejo-a eu como se, com humor igual, tivesse decidido meter-se ao mar à procura dos homens imaginários"
"Desesperado, um sábio norte-americano, e dos ilustres, foi ao extremo de proclamar no convés do navio hidrográfico, contra os ventos e os horizontes, Declaro que é impossível que a península esteja a mover-se, mas um italiano, ainda que muito menos sábio, porém reforçado pelo precedente histórico e científico, murmurou, mas não tão baixo que o não ouvisse aquele providencial ser que tudo escuta, E pur si muove."
"Mas aproveitam, diriam, como aconselhou o poeta, Carpe diem, o mérito destas velhas citações latinas está em conterem um mundo de significações segundas e terceiras, sem contar com as latentes e indefinidas, que quando a gente vai a traduzir, Goza a vida, por exemplo, fica uma coisinha frouxa, insossa, que não merece sequer o esforço de a tentarmos. Por isso insistimos em dizer, Carpe diem, e sentimo-nos como deuses que tivessem decidido não ser eternos para poderem, no exacto sentido da expressão, aproveitar o tempo."
Pontuação: 6.8/10
Gonçalo Martins de Matos
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