Paulo José Miranda foi o primeiro autor galardoado com o Prémio Literário José Saramago, em 1999, pelo que as expetativas para este Natureza Morta, a obra premiada, estiveram elevadas. E é com gosto que posso afirmar que não saíram goradas.
No ano de 1816, João Domingos Bomtempo, músico e compositor clássico português do século XIX, regressa a Portugal, de visita ao seu tio Manuel, frade do Mosteiro de Santa Maria do Bouro, após conhecer algum sucesso com a publicação, em Londres, de três Sonatas da sua autoria. O país a que Bomtempo regressa encontra-se numa ebulição derivada da subjugação portuguesa à regência inglesa encabeçada por Beresford. Em Lisboa, depois de regressar do Norte com a notícia da morte do seu tio, Domingos Bomtempo remete-se a reflexões profundas sobre a arte, a criação, a morte e o país, enquanto no seu âmago fervilha um ímpeto criador. Certa manhã, começa a escrever o seu Requiem em Dó Menor, Op. 23, processo criativo sobre o qual se debruça este romance. À escrita da obra juntam-se sempre as reflexões do compositor sobre a música que escreve e sobre o mundo, exterior e, principalmente, interior.
Natureza Morta é o segundo livro de um tríptico de Paulo José Miranda sobre o processo criativo, composto ainda por Um Prego no Coração e Vício. Neste tríptico, o autor explora a sua temática através de três figuras da arte portuguesa: Cesário Verde, Domingos Bomtempo e Antero de Quental. Neste romance, o momento do processo criativo é o da efervescência criativa, que é captado de forma muito interessante pelo autor. A acompanhar o desnovelar do clima social do Portugal pré-Liberal, e as inquietações do compositor com o assunto da morte e do tempo, acompanhamos a forma como tudo se repercute na criação do Requiem. A escrita de Paulo José Miranda tem um teor vincadamente poético, sendo também marcadamente meditativa. O romance é narrado na terceira pessoa com algumas intromissões da voz, autodiegética, do protagonista. Acompanhando a narrativa e as reflexões de Domingos Bomtempo está a ideia artística da natureza morta, em particular um quadro de Chardin, Cesta de pêssegos com nozes, groselhas e cerejas, que acaba por servir como um espelho da posição no mundo que Bomtempo sente ser a do artista, do criador, e do próprio Requiem que vem compondo. O tom do romance é simultaneamente melancólico e inconformado, numa mistura de revolta e aceitação que, unidas, geram então a obra artística. Retomando o teor poético do romance, a narrativa é dotada de uma robusta linguagem imagética, sendo-nos fornecidas impressões que nos marcam pela sua profundidade.
Trata-se aqui de um profundo e luminoso romance que merece, sem dúvida alguma, ser lido e apreciado.
Citações:
"Havia um secreto desejo de vingança do mundo, de Deus, dos homens. Vingança do sofrimento de minha mãe e do meu próprio sofrimento, da minha perda, da memória repleta de gritos de dor. Tão pouco quis ser Deus, quis ser Bach. Ele e o meu tio foram o mais próximo que estive do Senhor. Sinto que gosto cada vez menos de mim mesmo. Este peso enorme de ser homem, esta tristeza de não poder ser somente música."
"E um Requiem é efectivamente o paradoxo máximo da miséria adocicada. É esta a grandeza e a pequenez do criador: assistir à subjugação do sofrimento ao prazer. O sofrimento não desaparece, pelo contrário, mantém-se presente, mas sob as ordens do prazer. Quando este por fim acaba, então, o sofrimento regressa, mas já humilhado. E um sofrimento humilhado é já uma culpa, não é sofrimento, pelo menos não é sofrimento límpido, será quanto muito sofrimento impuro."
"Pois só se pode descrever o que se passa no mundo ou na alma se o mundo ficar suspenso, se por momentos, os da criação, não existir nada mais senão tempo. O infinito a sufocar o finito. Nada mais importa senão a existência e um desprezo imenso por tudo. O homem desesperado de morte a vociferar de inveja contra o Eterno."
Pontuação: 9/10
Gonçalo Martins de Matos
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