domingo, 21 de maio de 2023

"Lolita", de Vladimir Nabokov

   Lolita é considerado um dos grandes romances da literatura anglófona do século XX. Controverso e ambíguo, é uma leitura muito curiosa no que toca à premissa e às consequências da leitura. Mas já lá vamos. 
   Humbert Humbert, pseudónimo de um homem que aguarda julgamento por homicídio nos Estados Unidos, é o narrador da história de como conheceu Dolores Haze, a titular Lolita, e de como manteve com ela uma relação abusiva e de cariz sexual, depois de se tornar seu padrasto. Depois de imigrar da Europa para os Estados Unidos, e ciente da sua obsessão com raparigas pubescentes, às quais dá o nome de "ninfetas", Humbert narra como travou conhecimento com Charlotte Haze, mãe de Dolores, e como usou a sua proximidade para se aproximar da rapariga, então com 12 anos. Humbert casa com Charlotte, selando os destinos de toda os envolvidos. Depois da morte prematura de Charlotte, Humbert viaja pelos Estados Unidos com Dolores, acontecimento através do qual nos é também apresentada a sociedade estadunidense de meados do século XX. Ambos se estabelecem em Beardsley, New England, onde Humbert inscreve Dolores numa escola para raparigas, controlando todas as suas ações. Depois de a jovem expressar que gostaria de fazer uma nova viagem. Mas desta vez, mais paranoico, Humbert sente que ela esconde alguma coisa, e sente-se perseguido ao longo de toda a viagem. Estão lançados dessa forma os dados dos inevitáveis destinos de Humbert e de Dolores, em toda a absurdez da sua tragédia. 
    A interpretação do teor do romance é ambígua e divide críticos e estudiosos desde a sua publicação. Se há quem veja uma tragédia romântica, há quem veja uma comédia trágica na história da relação entre Humbert e Lolita. Outra interpretação com que nos deparámos, muito interessante, é a da perda da inocência face à tirania, nomeadamente da infância do próprio autor em relação à tirania czarista e, posteriormente, bolchevique, na sua Rússia-natal. Na nossa amadora e modesta opinião, Lolita é uma sátira modernista, ácida e mordaz, ao conceito de história de amor típica da cultura de entretenimento que caracterizava, e ainda caracteriza, as artes produzidas nos Estados Unidos. Através de trocadilhos, ambiguidades e outros jogos de palavras, o teor do romance revela-se perfeitamente. A sociedade e cultura americanas são igualmente alvo do olhar satírico de Nabokov, principalmente a mesquinhez dos meios pequenos e a frivolidade dos meios maiores. Humbert é um narrador não confiável, e essa característica é essencial para perceber a natureza dos acontecimentos, principalmente no que toca a "avanços" e a "provocações" de Dolores. Nabokov declarou em diversas entrevistas que escreveu Humbert para ser um personagem odioso, e esse objetivo ele consegue magistralmente: não há empatia possível com o narrador de Lolita. O facto de demasiadas referências a este romance declararem que aos poucos vamos empatizando com Humbert revelam bem o tipo de mentalidade que Nabokov visava parodiar. A narrativa de Humbert absorve tudo o que sejam os sentimentos e as aspirações dos outros - nós nunca chegamos a saber quem é, de facto, Dolores Haze, apenas a Lolita que Humbert nos oferece. Esta questão é propositada, mais uma vez para aumentar os efeitos da paródia e enfatizar a infiabilidade do narrador. Algumas descrições de Nabokov, assentes em paradoxos e antíteses, revelam um surrealismo que contribui para o delírio que é a obsessão de Humbert, enquanto outras recorrem a diminutivos e trocadilhos para destacar o ridículo e, dessa forma, enfatizar a sátira. 
   Lolita é sem sombra de dúvida um romance a ler e a apreciar enquanto a paródia que é de um certo tipo de mentalidade e de mania que ainda hoje por aí rastejam, principalmente na sociedade estadunidense. 
 
Citações:
 
"Mas notei, com um espasmo de feroz repugnância, que o ex-conselheiro do czar não puxara o autoclismo depois de esvaziar completamente a bexiga. Aquela solene poça de urina alheia, na qual se desintegrava uma beata mole e acastanhada, pareceu-me um supremo insulto, e olhei, como louco, à minha volta, à procura de uma arma. Na realidade, creio que foi apenas um gesto de cortesia burguesa (talvez com um ressaibo oriental) que levou o bom do coronel (Maximovich! Lembrei-me, de repente, do seu nome), pessoa muito formal, como todos eles são, a abafar a necessidade íntima num silêncio cheio de decoro, para não realçar o pequeno tamanho do domicílio do seu anfitrião com o turbilhão de uma grande cascata a seguir ao seu esguichozinho discreto."
 
"No meio do labiríntico padrão (mulher apressada, rua escorregadia, o raio de um cão, rua íngreme, carro grande e idiota ao volante), conseguia vislumbrar vagamente a minha vil contribuição. Se, como um estúpido – ou um génio de intuição –, não tivesse conservado aquele diário, os vapores produzidos pela cólera vingadora e pela profunda humilhação não teriam cegado Charlotte, na sua corrida para o marco do correio. Mas, mesmo que a tivessem cegado, nada teria acontecido se o Destino meticuloso, esse fantasma sincronizador, não misturasse no seu alambique o automóvel e o cão e o sol e a sombra e a humidade e o fraco e o forte e a pedra."
 
"A Rubinov’s Jewellery Company exibia na montra uma coleção de diamantes artificiais, reflectidos num espelho vermelho. Um relógio verde, iluminado, parecia flutuar nas ondas de roupa da Lavandaria Jiffy Jeff. Do outro lado da rua, uma garagem dizia, no sono, lubricidade genuflexão, mas emendava-se logo para Lubrificação Gulflex. Um avião, também cravejado de jóias Rubinov, passou, a roncar, no céu de veludo."
 
 
Pontuação: 6.9/10 
 
 
Gonçalo Martins de Matos

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