"Ernst Spengler estava sozinho no seu sótão, já com a janela aberta,
preparado para se atirar quando, subitamente, o telefone tocou." É a terceira vez que leio estas palavras introdutórias da terceira entrada de O Reino. Desta vez trago o contexto dos dois livros anteriores e, como já esperava, esse pormenor trouxe novas camadas a este romance tão peculiar.
Ao revisitar as duas recensões anteriores que escrevi sobre este romance, a minha descrição da narrativa não mudou. Mylia, Theodor Busbeck, Ernst Spengler, Kaas Busbeck, Hinnerk Obst, Hanna. Estes nomes correspondem a seis personagens povoadas de vida e singularidade, localizados algures entre dois pontos opostos de um espetro (Loucura-Razão, Doença-Saúde, Força-Fraqueza...). Mylia e Theodor foram casados, até ao dia em que Mylia, esquizofrénica, teve de ser internada num Hospício Georg Rosenberg, gerido pelo doutor Gomperz, onde conhece Ernst, também esquizofrénico. De Ernst e Mylia resulta Kaas, mas Theodor reconhece Kaas, que sofre de doenças físicas e de fala, como seu filho, retirando-o aos pais. Hinnerk, ex-combatente, e Hanna, prostituta, partilham apartamento e dinheiro, enquanto ambos seguem com as suas existências quase paralelamente uma à outra. Entre analepses e prolepses, a narrativa foca-se em três linhas essenciais: a madrugada de 29 de Maio, o internamento no hospício e regresso à vida de Mylia e de Ernst e a investigação de Theodor.
Ler Jerusalém no contexto de O Reino traz novas dimensões de leitura deste romance. Hinnerk Obst foi o pormenor que mais me chamou a atenção. Este personagem, fundamental no desenlace deste romance, faz uma breve aparição em A Máquina de Joseph Walser. Em Jerusalém, Hinnerk já se encontra avançado na idade, sendo o seu estatuto de ex-combatente a ligação entre os romances anteriores e este, criando a tal ideia de continuidade transversal a este tetralogia. As tensões entre os pontos opostos dos diversos espetros em conflito são palpáveis ao longo do romance. Nas leituras anteriores não me tinha inteirado do quão bem a escrita ensaística e analítica de Gonçalo M. Tavares serve ao desenvolvimento da narrativa e às ações das personagens. Neste romance, a juntar aos temas comuns aos cinco, um dos focos fundamentais do autor é a fé. Se antes temos a Guerra, a Máquina e a Força em tensão, em Jerusalém junta-se ao conflito a Fé, e a sua relação ambígua com a Saúde e a Doença. E, claro, também o Horror é catapultado para o centro do palco neste romance, como objeto científico de Theodor. Nas leituras anteriores escapou-me igualmente a reflexão sobre figura fascinante de Hinnerk, e de como a sua relação com as personagens que com ele contactam pode representar as sequelas da guerra, quer os seus efeitos psicológicos, quer exteriores. Mas o foco deste romance é sem sombra de dúvida o corporizado na personagem de Mylia. Mylia é esquizofrénica, e tem fé: é doente da cabeça, mas saudável da alma. As associações entre a saúde, a espiritualidade e a razão são fascinantes, e Tavares explora-as da sua habitual forma magistral, explorando as zonas cinzentas onde estes conceitos se misturam, diluindo fronteiras que à primeira vista parecem definitivas.
Jerusalém é um romance portentoso, tendo sido na altura galardoado com o Prémio José Saramago, como é sabido. Agora contextualizado foi uma leitura diferente, e eu gosto dessa ideia.
Citações:
"Ela percebeu, claramente, que ali, junto à igreja, estavam em competição
duas dores grandes: a dor que a ia matar, a dor má, assim ela a designou, e, do
outro lado, a dor boa, a dor do apetite, dor da vontade de comer, dor que
significava estar viva, a dor da existência, diria ela, como se o estômago
fosse, naquele momento, ainda em plena noite, a evidente manifestação da
humanidade, mas também das suas relações ambíguas com os mistérios de que nada
se sabe."
"Chegando ao gráfico do horror distribuído pelo tempo poderia então
começar a pensar em algo ainda mais importante: a fórmula. Uma fórmula
numérica, objectiva, humana poderia mesmo dizer, não animalesca, não sujeita a
flutuações de sentimentos ou de ânimo, uma fórmula puramente matemática,
puramente quantitativa, serena, diria, uma fórmula serena. […] Mas não procuro
apenas a fórmula que resuma os efeitos do horror, que resuma aquilo que o
horror fez no passado; pretendo ainda alcançar uma outra fórmula; uma fórmula
que permita prever, que permita agir e não apenas contemplar ou lamentar."
"Theodor fora ensinado pelo pai, Thomas Busbeck, que a inteligência era
um índice do movimento do olhar. Se fizermos o cálculo, dizia Thomas, da
velocidade dos olhos dirigindo-se às coisas para as perceber, velocidade média
durante um ano, teremos o valor da inteligência dessa pessoa, e tal bastará
para adquirirmos uma ideia bastante precisa acerca da produção intelectual
desse indivíduo. O mais breve encontro entre dois seres que não se conheçam bastará
– se existir uma observação atenta do olhar do outro – para se captar a aptidão
intelectual de cada um, mesmo que um e outro não troquem palavra."
Pontuação: 9.5/10
Gonçalo Martins de Matos
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