quinta-feira, 13 de novembro de 2025

"Lobos Sedentos da Respiração dos Dias", de Ana Gil Campos

   "Quando se começou a ouvir falar de uma possível pandemia pareceu tratar-se para muitos de uma gota de chuva ainda sem nome num país distante, num país onde se guardam com pinças verdades isentas de boas notícias." 

   Num país anónimo algures, uma pandemia que originou num lugar distante chegou em força e mudou a sociedade para sempre. Regras de circulação e de prevenção foram impostas e a sociedade teve de se adaptar. Porém, essa mesma sociedade teve as suas resistências à mudança, o que levou a que um arquiteto projetasse um complexo habitacional moderno que protegesse todos os seus habitantes. Poucos anos depois, esse complexo já era a sua própria sociedade, o que levou a que a cidade fosse agora dividida nesta Cidade Nova, e na Cidade Velha, onde os hábitos de sempre se mantiveram. É muitos anos depois destes acontecimentos que conhecemos os protagonistas do romance, David, Aurora, Constâncio, Túlia e Vitória, uns puros habitantes da Cidade Nova, outros insuspeitos habitantes da Cidade Velha e alguns secretamente de ambos os lados da cidade. Cada um à sua maneira reflete sobre assuntos como a felicidade, a autorrealização, o amor e a liberdade, enquanto levam as suas vidas normais com maior ou menor concretização. David e Aurora têm visibilidade da casa de um para o outro, ele habitante da Cidade Velha e ela habitante da Cidade Nova. É dessa forma que Aurora se acha num encontro com o jovem arquiteto e desenvolvem uma conexão amorosa que expõe as fissuras nas fachadas de ambas as cidades. Em torno deles gravitam os restantes, seus amigos e conhecidos, rumando mais ou menos cientes dessas mesmas fissuras, em direção a um ideal de felicidade. 
   A nova realidade que a autora concebe, num futuro não tão distante, que resulta de uma pandemia global, ressoa principalmente depois da nossa experiência coletiva com a covid-19, que curiosamente apenas serviu de inspiração pouco tempo depois de a autora ter tido a ideia de imaginar um futuro pós-pandémico. Nota-se no rumo do texto que a descrição da pandemia é contemporânea da nossa pandemia e que foi inserida depois da conceção do romance, o que não deixa de ser notório. Quanto ao futuro próximo imaginado, assim como no livro anterior, a autora apresenta-nos um futuro no limiar do distópico, sem no entanto resvalar para esse abismo, mais ou menos como a contemporaneidade. A Cidade Nova, tecnologicamente avançada, é vividamente descrita em tudo o que tem de brilhante e moderno, em contraste, não com a Cidade Velha, mas com a opacidade interior da própria Cidade Nova. A Cidade Velha contrasta com a Cidade Nova, sim, mas é mais num sentido reflexivo - ambas as cidades são  inversões, como se se mirassem ao espelho: se a Cidade Nova é aparentemente controlada e moderna, no seu âmago trovejam o caos e a arrogância, e o que na Cidade Velha aparenta liberdade e tradição oculta prisões mentais e hipocrisia. Nenhuma sociedade é perfeita, e a autora demonstra-nos precisamente isso, através dos seus personagens. Tal como as cidades que os acolhem, os nossos protagonistas têm uma face pública e uma face oculta que são inversões uma do outra. Através dos seus personagens, a autora reflete sobre felicidade, liberdade, amor, redenção, passado e futuro, relações sociais e profissionais e outros assuntos que nos conectam enquanto seres sociais. Nas suas reflexões, Ana Gil Campos apresenta-nos com imagens marcantes e poderosas que ficam a ressoar e nos ajudam a processá-las. 
 
Citações: 
 
"Quando ia até lá, a fonte de inspiração era tanta, oriunda de filmes no cinema, de exposições, de pessoas em vários contextos, de sons, os seus sentidos eram tão estimulados que precisava de voltar a casa com urgência para libertar a criatividade que tinha dentro de si, como lobos sedentos que alojava na toca do seu ventre soltando-os sobre a mesa de trabalho." 
 
"David, numa conversa com o amigo, tentou fazê-lo ver que podemos desejar uma coisa, referindo-se à sua vontade de se querer mudar para a nova cidade, mas que depois de alcançada não nos realiza como imaginávamos, como ele bem sabe. Aquilo que desejas é algo de que precisas mesmo?, perguntou-lhe. Constâncio respondeu-lhe com a questão: aquilo de que tens medo é realmente algo que deves recear?" 
 
"Se a felicidade consiste em nos assumirmos como somos perante nós próprios e a sociedade, se não o fizermos quem somos? Não somos? Somos um corpo adormecido que cambaleia mais ou menos firme pelos dias? Há o perigo em não se conseguir desempenhar o papel que não é nosso com equilíbrio e sensatez e o indivíduo sucumbir a algum padecimento da alma, um desequilíbrio mental que acaba por se manifestar na própria vida e, como consequência, na dos outros."
 
 
Pontuação: 7/10
 
 
Gonçalo Martins de Matos 

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