domingo, 12 de julho de 2015

"As Três Vidas", de João Tordo

   As Três Vidas. Por onde começar quando se fala de um dos melhores livros de um dos meus autores favoritos? Talvez começar por dizer que este livro é espantoso. É viciante a  sua leitura. Acabamos um capítulo e desejamos avançar para o próximo, ansiamos por saber o desenlace de uma história misteriosa do princípio ao fim. Tem o seu toque de inevitabilidade, de negrume, de esperança, de desilusão, de amor, de obsessão, um livro à la João Tordo, podemos afirmar. Mais uma vez nos apresenta uma história inusitada, bizarra e misteriosa, mais uma vez nos vai colando às páginas, deixando em suspenso as descobertas e os desenvolvimentos, e mais uma vez nos tira o tapete debaixo dos pés num final tão melancólico como iluminado.
   Agora, a história. O narrador, um jovem, é convidado por Artur Faria, um jardineiro, a trabalhar como secretário de um homem misterioso, chamado António Augusto Millhouse Pascal. Os trabalhos do narrador resumem-se a organizar os ficheiros dos clientes de Millhouse Pascal e de responder às cartas dos mesmos. Tudo parece normal até este ponto. Mas quando o narrador se apercebe que os clientes de MP não são aquilo a que se possa chamar de "normais", dúvidas lhe surgem quanto ao que será ao certo a atividade do seu patrão. A este mistério se juntam muitos outros, como os misteriosos encontros entre o jardineiro e um corcunda, a altas horas da madrugada, a diferença entre os clientes que chegam e os que partem, tudo intensificado pela sensação que o narrador sente de não pertencer àquele lugar e pela insónia causada por essa sensação. No entanto, luz ilumina essa sensação, sob a forma da neta mais velha de Millhouse Pascal, Camila, adepta e praticante de funambulismo, por quem o narrador desenvolve uma paixão. Após muitas reviravoltas tão surpreendentes como bizarras, tal como a descoberta do narrador sobre as atividades reais do seu patrão, que são a redenção dos pecados dos seus clientes obtidas com o auxílio de alucinógeneos e através da hipnose, Millhouse Pascal e o narrador acabam em Nova Iorque, à procura de Camila. A partir daí, e após o reencontro entre esta e o narrador, a vida deste transforma-se numa missão, a missão de juntar os cacos da sua vida e resolvê-los, resolver os mistérios. Mas essa missão revela-se morosa e inconclusiva. 
   É uma história que nos prende. Nunca quis pousar o livro para dormir, queria sempre avançar mais no mistério. Escrito soberbamente por um autor talentoso e genial, é um relato fantástico. Os eventos do século XX estão intrinsecamente ligados à vida de Millhouse Pascal, eventos sangrentos e monstruosos. No final, não chegamos a uma conclusão. No entanto, e aproveitando-me da metáfora do livro, a vida é como um funambulista sobre a sua corda bamba, nunca sabemos como irá acabar e a caminhada é perigosa e precária. As três vidas do título têm várias interpretações. No livro, são as três fases pelas quais o narrador passou, cada uma parecendo, aos seus olhos, uma vida completamente diferente. Pessoalmente, interpreto-as como sendo o passado, o presente e o futuro. O livro divide-se em quatro partes, sendo a primeira a mais longa destas. 
   Que mais posso acrescentar? Este foi o livro de João Tordo que lhe rendeu o Prémio José Saramago de 2009. É, sem dúvida, o melhor que li dele. Mas ainda há muitos para ler. E sei que João Tordo não me irá desapontar. Recomendo, recomendo e recomendo a leitura desta obra genial.

Citações:
"Ainda hoje, sempre que o mundo se apresenta como um espetáculo enfadonho e miserável, sou incapaz de resistir à tentação de relembrar o tempo em que, por força da necessidade, fui obrigado a aprender a difícil arte do funambumlismo."
"O segundo acontecimento foi de uma natureza mais sinistra. Mesmo agora, ao escrever estas palavras, sinto um calafrio ao invocar a memória daquela noite, a primeira de muito frio no Alentejo."
"Achei, naquela altura, que o meu patrão tinha poderes mágicos. Que, através da sua refinada arte, era mesmo capaz de invocar fantasmas, de nos fazer entrar numa dimensão alternativa por onde vagueavam os mortos."


Pontuação: 9.8/10


Requintadas leituras,
Gonçalo M. Matos

domingo, 28 de junho de 2015

"A Marcha", de Daniel Silva

   A Marcha é o terceiro livro de Daniel Silva, e o segundo protagonizado por Michael Osbourne. É a continuação dos eventos sucedidos em A Marca do Assassino, cuja leitura já efetuei. Aliás, foi a leitura deste último que me introduziu Daniel Silva, de quem sou fã há algum tempo. Mas considero-me um fã dentro da medida de que sou fã de Dan Brown: na escrita. Porque considero este tipo de literatura como entretenimento, como não-literária. Mas deixemos as especificidades. 
   É um livro muito interessante para quem se interesse por uma boa história de espiões e pela situação irlandesa que se arrasta à demasiados anos: a eterna luta entre os protestantes e os católicos. Muito sangue foi derramado à conta deste problema que dura à séculos, e este livro demonstra bem esse derramamento de sangue. A história passa-se maioritariamente entre os Estados Unidos da América e o Reino Unido. Michael Osbourne, após os acontecimentos do primeiro livro, encontra-se reformado da CIA e a viver com a sua mulher e os seus filhos. No entanto, regressa ao ativo para poder fornecer proteção ao seu sogro, Douglas Cannon, nomeado embaixador dos EUA em Londres. Douglas torna-se alvo de um grupo terrorista protestante chamado Brigada de Libertação do Ulster, que tem como objetivo a sabotagem do acordo de paz entre os católicos e os protestantes. A sociedade secreta que nos foi apresentada no primeiro livro participa também nesta narrativa, ajudando a Brigada a cumprir os seus objetivos. Mas quando a Brigada é desmantelada e apenas um dos seus elementos, Rebecca Wells, escapa, a sociedade recorre a Outubro, o assassino contratado do primeiro livro. E assim assistimos a mais um jogo de gato e rato entre Osbourne, que continua com o desejo de se vingar da morte de Sarah Randolph às mãos do assassino e do inferno que fez Osbourne e a sua mulher passar no primeiro livro, e o assassino.
   Embora seja um livro muito interessante, as pessoas não o receberam tão bem quando saiu. E eu compreendo o porquê. Trata-se de um thriller de espionagem igual a tantos outros, com os mesmo clichés de sempre e os lugares-comuns habituais no género. O livro seguinte iria revestir-se de uma história tão radicalmente diferente que iria tornar-se um sucesso, e cada livro seguinte sendo mais bem recebido que o anterior. Assim termino a minha opinião. É um livro para ser lido, e Daniel Silva é um autor que merece ser lido. Fica a recomendação.

Citações:
"Eamonn Dillon, do Sinn Fein, foi o primeiro a morrer, e morreu porque tinha planeado parar para beber uma caneca de cerveja no Celtic Bar antes de subir a Falls Road a caminho de uma reunião em Andersontown."
"- Muito bem - disse Leroux. - Mas sinto-me um bocadinho como aquele idiota que deu umas marteladas na Pietà."
"- Adrian Carter [disse Michael], gostaria de te apresentar o Jean-Paul Delaroche. És capaz de o conhecer melhor como Outubro."


Pontuação: 7.5/10


Agradáveis leituras,
Gonçalo M. Matos

sexta-feira, 29 de maio de 2015

"Jerusalém", de Gonçalo M. Tavares

   Jerusalém pode muito bem ter sido uma das grandes desilusões que já tive quanto à relação entre expetativa e leitura. Ou não. A verdade é que cheguei ao final do livro sem saber o que dizer dele. Não sei dizer se gostei. Sei que quis ler, nunca pensei em parar a meio, mas sempre que lia, ficava com a sensação que as palavras não me convidavam a ficar, fiquei com a sensação que as palavras eram robots, desprovidos de sentimentos e antipáticos. No entanto, essas mesmas palavras faziam-me querer continuar. Este autor é muito elogiado (e com razão, este livro não é o meu primeiro contacto com o autor), e esta obra também. Quanto à obra, não compreendo o porquê de ser tão elogiada. As palavras são desprovidas de sentimento, os personagens não são identificáveis (com isto quero dizer que o narrador não as conseguiu tornar apelativas). Resumindo, fiquei com a sensação de estar a ler um livro de Ciências, de Matemática, um livro objetivo, racional, lógico. Talvez resida aí a sua novidade e o seu cariz inovador. Afirmo que para mim a literatura não é objetiva, não é racional, não é lógica. Mas isto no caráter da narrativa. Dito isto, avanço para os pontos a favor. A história narrada no livro é interessante, tem um desfecho interessante e um final igualmente interessante. Mas mais do que isso não. Tem também a organização dos capítulos como ponto a favor.
   Avançando agora para a história em si. À medida que a narrativa progride, são-nos introduzidos os vários personagens desta obra. Mylia, Ernst Spengler, Theodor e Kaas Busbeck, Hinnerk Obst e Hanna. Outros são introduzidos, mas estes são os principais. Mylia e Ernst, dois esquizofrénicos, Theodor, médico e investigador reputado, Kaas, filho de Theodor, miúdo com problemas na fala e uma deficiência nas pernas, Hinnerk, ex-combatente e... nada mais digo, terá de ler, e Hanna, uma prostituta. A narrativa foca-se nas relações que se estabelecem entre cada um dos personagens, e das suas relações com os outros e consigo mesmas. E é basicamente isto. Eu sei, dito assim parece muito desinteressante. E para mim foi. Mas aconselho a ler. Se muitos outros gostaram, há a hipótese de gostar também. Apenas digo que existem, de facto, algumas reviravoltas, mas são previsíveis (pelo menos, eu previa-as a chegar enquanto lia). No entanto, não deixam de ser interessantes e até surpreendentes, num caso ou noutro. Refiro-me brevemente ao aspeto que mais confuso me deixou: o final. Quando cheguei ao final, aí é que fiquei sem saber o que pensar da leitura. Foi fraco? Foi bom? Foi...? Não sei. Foi talvez um dos finais mais bizarros que já li. 
   E foi isto. Há um velho ditado português que afirma: "não te iludas, que não te desiludes". Infelizmente, iludi-me, tive altas expetativas quanto a este livro, li-o e desiludi-me. Achei o livro medianamente interessante. Já o disse, é um tipo de literatura que não é, na minha modesta visão, literatura. Dito isto, não compreendo como foi este o livro vencedor do Prémio José Saramago de 2005. Nem compreendo o porquê de Saramago o ter catalogado como pertencente à grande literatura ocidental. Mas mais uma vez, trata-se da minha opinião. Posto isto, não recomendo a sua leitura, mas aconselho-a. Ou seja, não recomendo a leitura de Jerusalém, mas se me perguntar se o deve ler, deve. Penso que um livro deve sempre ser lido, independentemente do que dizem os outros. Teremos sempre uma opinião diferente. No meu caso, tive uma opinião diferente.

Citações:
"Ernst Spengler estava sozinho no seu sótão, já com a janela aberta, preparado para se atirar quando, subitamente, o telefone tocou. Uma vez, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze, catorze, Ernst atendeu"
"Kaas estava zangado. Como médico e como pai, Theodor não tinha o direito de o deixar sozinho meio da noite. Uma cobardia, murmurava."
"Conta os teus dedos, quantos dedos?
Cinco, responde Mylia.
Vês?, diz Witold, tens a mão toda.
Falta a mão, insiste Mylia."


Pontuação: 5.8/10


Boas leituras,
Gonçalo M. Matos

terça-feira, 28 de abril de 2015

"o remorso de baltazar serapião", de valter hugo mãe

   o remorso de baltazar serapião é uma obra interessante. E aborrecida. E cativante. E bizarra. Sinceramente, não sei o que dizer deste livro. Fiquei sem certeza se gostei, se não gostei. Não consigo chegar a uma conclusão quanto a isso. Não ajudou o facto de estar completamente escrito em minúsculas. Pois, porque há ainda esse ponto. Valter Hugo Mãe (valter hugo mãe, na altura em que escreveu este livro) escreveu os seus primeiros quatro romances completamente em minúsculas, sem nenhuma distinção qualquer e não ser pontos finais e vírgulas. Isso torna só por si a leitura muito labiríntica, e por consequência, muito confusa e maçadora. Houve alturas em que eu não conseguia sair de um parágrafo porque tentava perceber quem estava a falar, quem não estava, se era o narrador ou se já eram personagens... Enfim, essa parte estragou-me ligeiramente a leitura. Porque Saramago ainda se lê, que ele, quando iniciava o diálogo, escrevia uma vírgula e a seguir maiúscula. Agora, tudo em minúsculas, peço desculpa, torna tudo confuso. Quanto à história, achei-a maçadora no início, cativante a meio. Mas o final... argh!... o final foi uma desilusão. Foi muito bizarro, muito apagado, muito... não sei dizer! Não consigo dizer o que foi, o que sinto quanto ao final, quanto ao livro! 
   Bom, a história trata de baltazar serapião, chamado sarga porque este é o apelido que o povo deu à sua família, por causa da vaca da família, a sarga. baltazar é um homem feito da idade média. O que implica isso? Talvez tenha adivinhado. É machista. Mas um machista ferrenho e inquebrável. E as sua opiniões quanto às mulheres irritaram-me durante a leitura da obra. Não consegui criar empatia pelo protagonista. Talvez fosse essa a intenção de Valter Hugo Mãe. Bom, não quero narrar muito da história porque qualquer momento (e este é um ponto positivo) é impossível de resumir, ou por se tratar de uma reviravolta, ou por se ter de referir os antecedentes e algumas das consequências. Apenas refiro que estes vivem numa propriedade pertencente a um nobre, de seu nome dom afonso (cuja mulher, dona catarina, é uma vaca, uma cobra), que a sarga é como o "cão" da família, que baltazar casa com ermesinda, a mulher mais bela da vila e que acontecem inúmeras peripécias, não felizes e infelizes, juntamente com o seu irmão aldegundes. Digo apenas que eu não gostei particularmente da história (e da forma como foi narrada), mas admito a sua criatividade e a sua novidade.
   Agora, aquele que foi para mim o aspeto mais positivo da leitura: a mensagem. A mensagem que Valter Hugo Mãe transmite é grande, é forte, é intemporal, é verdadeira, é infelizmente atual e verdadeira, é direta. No fundo, a mensagem que o autor transmite é, sem querer revelar muito mais, que sempre houve uma mentalidade bruta e imoral contra as mulheres, e que esta ainda se manifesta (cada vez menos, mas ainda lá está). 
   Foi esta a obra de Valter Hugo Mãe que venceu o Prémio José Saramago de 2007. Saramago considerou o remorso de baltazar serapião um fenómeno revolucionário. E, de facto, não discordo. As minúsculas e a forma como o autor brinca com o português, fazendo deste uma bola de plasticina, a qual molda à mercê da sua imaginação. Para mim, não foi muito interessante, mas não deixo de reconhecer a originalidade da narrativa.
   Não tenho mais nada a dizer. Mas recomendo-o. Recomendo que este livro seja lido. Não gostei, mas não desgostei. E olhando para o seu sucesso com a crítica e com o público geral, muitos hão de haver por aí que gostem da escrita e da narrativa. 

Citações:
"a voz das mulheres estava sob a terra, vinha de caldeiras fundas onde só o diabo e gente a arder tinham destino. a voz das mulheres, perigosa e burra, estava abaixo de mugido e atitude da nossa vaca, a sarga, como lhe chamávamos."
"e foi o teodolindo quem gritou, matas a rapariga, e eu só olhei depois e vi que era a teresa diaba, carga descarregada, como se ela me tivesse saído do cu."
"abre, parecia dizer o próprio sol, abre-te, e abri os olhos e boca pouco vendo e bocejando, ganhando lenta consciência da diferença daquela manhã para com todas as outras."


Pontuação: 6.7/10


Alegres leituras,
Gonçalo M. Matos

domingo, 22 de fevereiro de 2015

"Trilogia Soberba", de Andreia Ferreira

Soberba Escuridão


   Não é raro, enquanto leitor, ser surpreendido por uma obra dentro de um género do qual acho que não se pode esperar algo de novo. Bem, enganei-me, e ainda bem que me enganei. Esta foi, dentro do género, a minha segunda leitura e devo dizer que foi das leituras mais fantásticas que já tive. Foi uma experiência fantástica, cada palavra encaixava onde devia, cada frase descritiva descrevia muito sem maçar, aliás, descrevia muito por poucas palavras, cada sentimento genuíno, sem resvalar para o dramatismo excessivo. Resumindo, foi uma leitura fantástica. Os meus parabéns à autora, Andreia Ferreira, por esta obra fenomenal. A autora tem futuro nas letras.
   A obra conta a história de Carla, uma rapariga de 17 anos. Até aqui tudo bem. Mas quando ela se vê assombrada por uma sombra negra, a sua vida começa a descambar, indo de surpresa em surpresa, de revelação em revelação até ser atingida pela realidade chocante de que o sobrenatural pode afinal não ser fruto da imaginação humana. Não é uma grande sinopse, mas se despertar o interesse e o leitor ou leitora decidir ler esta magnífica prosa, não ficará desiludido(a). 
   Foi uma experiência de leitura magnífica, épica em todo o sentido da palavra. Nada mais tenho a acrescentar, a não ser: leia. Leia, que esta autora, esta obra, não pode permanecer na escuridão por mais tempo. O mundo tem de conhecer o talento de Andreia Ferreira.


Citações de Soberba Escuridão:
"A forma oval que parecia ser a cabeça da criatura era de cortar a respiração. Tinha os olhos amendoados, de um vermelho intenso e no lugar do nariz tinha duas fendas como uma cobra." 
"Era como olhar um anjo, pelo menos no meu ponto de vista que nunca imaginei os anjos loirinhos com olhinhos azuis portadores de cabelinhos meticulosamente encaracolados."


Pontuação de Soberba Escuridão: 8.2/10








Soberba Tentação


   Confesso-me viciado nesta trilogia. Nitidamente melhor que o primeiro, também mais negro e deliciosamente bem composto, bem escrito e bem imaginado. 
   Gostei imenso de descobrir novos factos sobre os personagens da história. Admirei o desdobramento do ponto de vista da narração em várias personagens, e não só numa, ao contrário do primeiro. Mas acima de tudo, gostei do aprofundamento que a autora fez a algumas personagens, que no primeiro livro se apresentavam como superficiais. Em especial, os personagens do vampiro Ricardo e da Raquel. 
   Não posso falar muito da sinopse sem estragar um bocado a história, por isso limito-me aos traços gerais. Neste segundo volume vemos o desenrolar da vida de Carla após a descoberta do mundo sobrenatural, e de como consegue (ou não consegue) lidar com isso. A sua vida caminha para a ruína, evidenciado nos que a rodeiam. Os seus amigos vão-se afastando e (terá de ler a história para perceber o que vou dizer agora) deteriorando aos poucos. Nada mais posso dizer sem revelar o enredo.
   Por isso, a minha recomendação é: leia. Leia o primeiro, leia o segundo. Mais do que ler, goste, admire. Este segundo livro é algo de inovador, muito como o primeiro, mas melhor que este. A autora consegue incluir elementos que se não fossem trabalhados da maneira como ela os trabalha seriam clichés. Admiro a capacidade de introduzir elementos familiares nos livros, mas conseguir ao mesmo tempo ser original. Acredite no que lhe digo, este livro é uma tentação autêntica.


Citações de Soberba Tentação:
"Com a mente liberta das recordações da noite, graças ao toque do Caael, adormeci na «paz dos anjos»."
"A boca dela sangrava, mas ela ainda não se apercebera. Laçou o pescoço para traz e com os olhos fechados urrou."


Pontuação: 8.5/10







Soberba Ilusão


   Os finais dos livros, principalmente das séries de livros, são sempre interessantes de se ler. Porque é o fim. Estivemos um determinado período de tempo naquele mundo, e chegamos ao seu fim. 
   O final desta trilogia é deliciosamente negro. O que não deixa de ser um choque para quem se apega com facilidade aos personagens. Eu, que nem costumo fazer isso, senti imenso o final do livro. Não vou dizer que chorei, não é livro para tanto, mas senti qualquer coisa com estes personagens. O que, no fundo, é o que importa quando se escreve uma boa história: levar os leitores a criar laços com os personagens. E Andreia Ferreira tem um talento especial em fazer dos sentimentos dos seus leitores brinquedos com os quais joga. Deixo também uma nota de admiração pelas revelações que esta faz dos personagens e das situações.  
   Cingindo-me à generalidade, neste último volume vemos Carla desesperada com o rumo que a sua vida está a tomar e decide agira, sempre acompanhada do anjo Caael. E, no meio do sobrenatural e do obscuro, tudo o que pensava ser uma coisa é afinal o contrário e todas estas reviravoltas se unem num único sentido: o porquê de ser tão especial para todas estas criaturas. 
   Tiro especialmente o chapéu às autora pela forma como conseguiu deixar-nos confortáveis só para nos tirar o tapete logo a seguir. E de como consegue que as páginas não se sobrecarreguem e se tornem maçudas. Dito isto, e em conclusão desta soberba "trilogia Soberba", qualquer leitor que procure uma boa coleção para poder ler e adorar, deve ler esta trilogia. Andreia Ferreira está apenas a revelar-se. E pelo que já escreveu até agora, só posso esperar dela outras obras igualmente interessantes e de qualidade. 


Citações de Soberba Ilusão:
"A mãe entrou pelo quarto e viu-o sentado na cama a transpirar como se tivesse acabado de percorrer a maratona. Aproximou-se dele e sentiu logo o calor que emanava do seu corpo. Nem precisava de lhe tocar na testa para perceber que ardia em febre."
"A Marília tinha razão, eu era tóxica para todos à minha volta."


Pontuação: 8.7/10


Soberbas leituras,
Gonçalo M. Matos

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

"Nenhum Olhar", de José Luís Peixoto

   Nenhum Olhar mais que me satisfez, por ter-se revelado como um vício desde a primeira página até à última. Poucos livros conseguem atingir tamanha perfeição tanto a nível da estrutura como a nível da narrativa. Eu já antes tinha lido Livro, do mesmo autor, e desse livro não fiquei com uma experiência muito boa (uma leitura agradável, não obstante). Por isso, fui apanhado desprevenido quando decidi dar uma segunda oportunidade ao autor e li este livro. E devo confessar-me boquiaberto, assombrado e maravilhado. Boquiaberto com a incrível maturidade da escrita de José Luís Peixoto, tendo em conta que este foi o seu primeiro romance "a sério"; assombrado com o desenrolar e final da história narrada; e maravilhado com a magnífica experiência de leitura que o autor me providenciou com esta obra. 
   Este livro é um poema. Não no seu sentido literal, trata-se de uma história narrada em prosa. Mas ao longo da sua leitura, fiquei com a sensação de ler um poema, belo, simples, soberbo, singular. Louvo a criatividade das palavras nesta obra inscritas e a mestria com que José Luís Peixoto conduz a narração, nunca perdendo o controlo, mas dando-lhe toda a liberdade que consegue. Admiro essa capacidade num narrador. Dividido em dois "Livros", é uma história triste, mas ao mesmo tempo, alegre, nas palavras de José Eduardo Agualusa, «Livro luminoso, e ao mesmo tempo, tristíssimo». No Livro I é-nos narrada a história de alguns personagens singulares, como por exemplo, José e a sua mulher, o velho Gabriel, Elias e Moisés, gémeos siameses, uma cozinheira e a cadela de Moisés. As suas histórias cruzam-se, mas sempre em direção ao precipício. No Livro II, somos apresentados à "segunda geração", constituída por José, filho do primeiro José, e a sua mulher, Salomão, primo de José, e a sua mulher, filha da cozinheira, o velho Gabriel ainda, a prostituta cega e o mestre Rafael. Também as suas histórias nos são apresentadas entrelaçando-se umas com as outras, sempre em direção espiral ao abismo final. No fundo, é para onde caminham todas as vidas humanas. Em direção ao fim, ao abismo final, à escuridão solitária. A este fabuloso elenco são acrescentadas personagens inusitadas e ambíguas, como por exemplo, um gigante, um "homem que está fechado dentro de um quarto sem janelas a escrever", uma "voz que está fechada dentro de uma arca" e o diabo, com o seu eterno e constante sorriso (leu bem, o diabo). Estes elementos fantásticos e a narração bela e singular do autor conduzem-nos a um final tão arrebatador como surpreendente. E pelo seu conteúdo, pode-se compreender o título atribuído ao livro na sua edição inglesa: The Implacable Order of Things, «a implacável ordem das coisas». De facto, essa ideia está bem patente ao longo da obra. 
   O estilo narrativo pode apanhar os mais distraídos de surpresa. É escrito com a técnica de fluxo de consciência (ou seja, repetições e intromissões de pensamentos diferentes a meio de uma frase), dando voz não só ao narrador, mas às personagens. É preciso ler com atenção, porque se estiver a ler só por ler, será apanhado desprevenido e perder-se-á.
   Nada mais tenho a dizer. Ah, bem, falta referir que foi esta a obra de José Luís Peixoto que venceu o Prémio José Saramago de 2001 e que mais vendeu até hoje. Bem e que recomendo vivamente a sua leitura. Mais, diria que é leitura obrigatória para qualquer amante de boa literatura. 

Citações:
"Penso: talvez o céu seja um mar grande de água doce e talvez a gente não ande debaixo do céu, mas em cima dele"
"Hoje, morro eu. E eu morrer não é nada na ordem implacável do mundo."
"Atrás de mim, estava o demónio. Senti nas minhas costas o seu calor, o seu sorriso." ou "Como se soubesse que ele ia abrir ali uma janela, como se o esperasse. O demónio estava na rua, a um palmo da parede, a olhá-lo, a sorrir."


Pontuação: 10/10


Alegres leituras,
Gonçalo M. Matos

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

"A Segunda Pele da Acácia Mimosa", de Ana Gil Campos

   A Segunda Pele da Acácia Mimosa. Que posso dizer sobre a primeira obra de uma autora ainda por descobrir? Posso, mais que dizer, elogiar muito. Em primeiro lugar, posso admirar o incrível talento que permitiu a autora entrar no mundo da literatura já com uma obra bastante madura. Em segundo lugar, elogio a escrita fluída, simples e profunda que nos cola a cada página. Normalmente, apenas de vez em quando somos surpreendidos por um autor que revele já muito talento na primeira publicação. A última vez que tal aconteceu (na minha opinião e baseado nas minhas leituras) foi com João Tordo. 
   É, mais do que tudo, uma obra de autodescoberta. Dividido em quatro capítulos, o romance é narrado na primeira pessoa. A protagonista da história tem uma irmã gémea que, um dia lhe pede para a substituir na sua vida. Não voltará a ser referida na obra. A protagonista constrói a sua personagem com base no diário que a sua irmã mantinha e que é a chave para analisar profundamente a vida dela. No princípio leva uma vida calma, com os dias divididos entre o trabalho, o marido e as reuniões na sua loja maçónica. Corre bem até ao momento em que descobre que está envolvida com uma ministra do Governo num caso de corrupção. A partir de esse ponto, todo o seu mundo se vê em ruínas, piorado pela situação do "seu" casamento. É aí que a protagonista parte para Barcelona onde fará uma profunda reflexão e acabará por se descobrir. 
   Uma obra de profundidade já bastante madura para primeiro trabalho de uma jovem autora, é um deleite de leitura. Lê-se de um fôlego, mas é compensado pela maneira como nos faz sentir depois. Faz-nos refeltir sobre nós próprios e sobre os outros. Leva-nos a uma autognose. Pelo menos, senti-me dessa maneira. 
   Sinto que nada mais tenho a dizer a não ser que recomendo e insisto a leitura deste romance.

Citações:
"Lembro-me do seu calor humano e, neste abraço, reconheço a saudade genuína que guardava dela."
"A corrupção usa sempre uma máscara e a sua força não é mais do que a nossa fraqueza."
"Recolho-me  num canto da livraria Cultura e perco-me nas suas horas, nas suas histórias. Cumprimento Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Morais, Fernando Pessoa."


Pontuação: 8.9/10


Excelentes leituras,
Gonçalo M. Matos