As Três Vidas. Por onde começar quando se fala de um dos melhores livros de um dos meus autores favoritos? Talvez começar por dizer que este livro é espantoso. É viciante a sua leitura. Acabamos um capítulo e desejamos avançar para o próximo, ansiamos por saber o desenlace de uma história misteriosa do princípio ao fim. Tem o seu toque de inevitabilidade, de negrume, de esperança, de desilusão, de amor, de obsessão, um livro à la João Tordo, podemos afirmar. Mais uma vez nos apresenta uma história inusitada, bizarra e misteriosa, mais uma vez nos vai colando às páginas, deixando em suspenso as descobertas e os desenvolvimentos, e mais uma vez nos tira o tapete debaixo dos pés num final tão melancólico como iluminado.
Agora, a história. O narrador, um jovem, é convidado por Artur Faria, um jardineiro, a trabalhar como secretário de um homem misterioso, chamado António Augusto Millhouse Pascal. Os trabalhos do narrador resumem-se a organizar os ficheiros dos clientes de Millhouse Pascal e de responder às cartas dos mesmos. Tudo parece normal até este ponto. Mas quando o narrador se apercebe que os clientes de MP não são aquilo a que se possa chamar de "normais", dúvidas lhe surgem quanto ao que será ao certo a atividade do seu patrão. A este mistério se juntam muitos outros, como os misteriosos encontros entre o jardineiro e um corcunda, a altas horas da madrugada, a diferença entre os clientes que chegam e os que partem, tudo intensificado pela sensação que o narrador sente de não pertencer àquele lugar e pela insónia causada por essa sensação. No entanto, luz ilumina essa sensação, sob a forma da neta mais velha de Millhouse Pascal, Camila, adepta e praticante de funambulismo, por quem o narrador desenvolve uma paixão. Após muitas reviravoltas tão surpreendentes como bizarras, tal como a descoberta do narrador sobre as atividades reais do seu patrão, que são a redenção dos pecados dos seus clientes obtidas com o auxílio de alucinógeneos e através da hipnose, Millhouse Pascal e o narrador acabam em Nova Iorque, à procura de Camila. A partir daí, e após o reencontro entre esta e o narrador, a vida deste transforma-se numa missão, a missão de juntar os cacos da sua vida e resolvê-los, resolver os mistérios. Mas essa missão revela-se morosa e inconclusiva.
É uma história que nos prende. Nunca quis pousar o livro para dormir, queria sempre avançar mais no mistério. Escrito soberbamente por um autor talentoso e genial, é um relato fantástico. Os eventos do século XX estão intrinsecamente ligados à vida de Millhouse Pascal, eventos sangrentos e monstruosos. No final, não chegamos a uma conclusão. No entanto, e aproveitando-me da metáfora do livro, a vida é como um funambulista sobre a sua corda bamba, nunca sabemos como irá acabar e a caminhada é perigosa e precária. As três vidas do título têm várias interpretações. No livro, são as três fases pelas quais o narrador passou, cada uma parecendo, aos seus olhos, uma vida completamente diferente. Pessoalmente, interpreto-as como sendo o passado, o presente e o futuro. O livro divide-se em quatro partes, sendo a primeira a mais longa destas.
Que mais posso acrescentar? Este foi o livro de João Tordo que lhe rendeu o Prémio José Saramago de 2009. É, sem dúvida, o melhor que li dele. Mas ainda há muitos para ler. E sei que João Tordo não me irá desapontar. Recomendo, recomendo e recomendo a leitura desta obra genial.
Citações:
"Ainda hoje, sempre que o mundo se apresenta como um espetáculo enfadonho e miserável, sou incapaz de resistir à tentação de relembrar o tempo em que, por força da necessidade, fui obrigado a aprender a difícil arte do funambumlismo."
"O segundo acontecimento foi de uma natureza mais sinistra. Mesmo agora, ao escrever estas palavras, sinto um calafrio ao invocar a memória daquela noite, a primeira de muito frio no Alentejo."
"Achei, naquela altura, que o meu patrão tinha poderes mágicos. Que, através da sua refinada arte, era mesmo capaz de invocar fantasmas, de nos fazer entrar numa dimensão alternativa por onde vagueavam os mortos."
Pontuação: 9.8/10
Requintadas leituras,
Gonçalo M. Matos
Agora, a história. O narrador, um jovem, é convidado por Artur Faria, um jardineiro, a trabalhar como secretário de um homem misterioso, chamado António Augusto Millhouse Pascal. Os trabalhos do narrador resumem-se a organizar os ficheiros dos clientes de Millhouse Pascal e de responder às cartas dos mesmos. Tudo parece normal até este ponto. Mas quando o narrador se apercebe que os clientes de MP não são aquilo a que se possa chamar de "normais", dúvidas lhe surgem quanto ao que será ao certo a atividade do seu patrão. A este mistério se juntam muitos outros, como os misteriosos encontros entre o jardineiro e um corcunda, a altas horas da madrugada, a diferença entre os clientes que chegam e os que partem, tudo intensificado pela sensação que o narrador sente de não pertencer àquele lugar e pela insónia causada por essa sensação. No entanto, luz ilumina essa sensação, sob a forma da neta mais velha de Millhouse Pascal, Camila, adepta e praticante de funambulismo, por quem o narrador desenvolve uma paixão. Após muitas reviravoltas tão surpreendentes como bizarras, tal como a descoberta do narrador sobre as atividades reais do seu patrão, que são a redenção dos pecados dos seus clientes obtidas com o auxílio de alucinógeneos e através da hipnose, Millhouse Pascal e o narrador acabam em Nova Iorque, à procura de Camila. A partir daí, e após o reencontro entre esta e o narrador, a vida deste transforma-se numa missão, a missão de juntar os cacos da sua vida e resolvê-los, resolver os mistérios. Mas essa missão revela-se morosa e inconclusiva.
É uma história que nos prende. Nunca quis pousar o livro para dormir, queria sempre avançar mais no mistério. Escrito soberbamente por um autor talentoso e genial, é um relato fantástico. Os eventos do século XX estão intrinsecamente ligados à vida de Millhouse Pascal, eventos sangrentos e monstruosos. No final, não chegamos a uma conclusão. No entanto, e aproveitando-me da metáfora do livro, a vida é como um funambulista sobre a sua corda bamba, nunca sabemos como irá acabar e a caminhada é perigosa e precária. As três vidas do título têm várias interpretações. No livro, são as três fases pelas quais o narrador passou, cada uma parecendo, aos seus olhos, uma vida completamente diferente. Pessoalmente, interpreto-as como sendo o passado, o presente e o futuro. O livro divide-se em quatro partes, sendo a primeira a mais longa destas.
Que mais posso acrescentar? Este foi o livro de João Tordo que lhe rendeu o Prémio José Saramago de 2009. É, sem dúvida, o melhor que li dele. Mas ainda há muitos para ler. E sei que João Tordo não me irá desapontar. Recomendo, recomendo e recomendo a leitura desta obra genial.
Citações:
"Ainda hoje, sempre que o mundo se apresenta como um espetáculo enfadonho e miserável, sou incapaz de resistir à tentação de relembrar o tempo em que, por força da necessidade, fui obrigado a aprender a difícil arte do funambumlismo."
"O segundo acontecimento foi de uma natureza mais sinistra. Mesmo agora, ao escrever estas palavras, sinto um calafrio ao invocar a memória daquela noite, a primeira de muito frio no Alentejo."
"Achei, naquela altura, que o meu patrão tinha poderes mágicos. Que, através da sua refinada arte, era mesmo capaz de invocar fantasmas, de nos fazer entrar numa dimensão alternativa por onde vagueavam os mortos."
Pontuação: 9.8/10
Requintadas leituras,
Gonçalo M. Matos