sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

"Nenhum Olhar", de José Luís Peixoto

   Nenhum Olhar mais que me satisfez, por ter-se revelado como um vício desde a primeira página até à última. Poucos livros conseguem atingir tamanha perfeição tanto a nível da estrutura como a nível da narrativa. Eu já antes tinha lido Livro, do mesmo autor, e desse livro não fiquei com uma experiência muito boa (uma leitura agradável, não obstante). Por isso, fui apanhado desprevenido quando decidi dar uma segunda oportunidade ao autor e li este livro. E devo confessar-me boquiaberto, assombrado e maravilhado. Boquiaberto com a incrível maturidade da escrita de José Luís Peixoto, tendo em conta que este foi o seu primeiro romance "a sério"; assombrado com o desenrolar e final da história narrada; e maravilhado com a magnífica experiência de leitura que o autor me providenciou com esta obra. 
   Este livro é um poema. Não no seu sentido literal, trata-se de uma história narrada em prosa. Mas ao longo da sua leitura, fiquei com a sensação de ler um poema, belo, simples, soberbo, singular. Louvo a criatividade das palavras nesta obra inscritas e a mestria com que José Luís Peixoto conduz a narração, nunca perdendo o controlo, mas dando-lhe toda a liberdade que consegue. Admiro essa capacidade num narrador. Dividido em dois "Livros", é uma história triste, mas ao mesmo tempo, alegre, nas palavras de José Eduardo Agualusa, «Livro luminoso, e ao mesmo tempo, tristíssimo». No Livro I é-nos narrada a história de alguns personagens singulares, como por exemplo, José e a sua mulher, o velho Gabriel, Elias e Moisés, gémeos siameses, uma cozinheira e a cadela de Moisés. As suas histórias cruzam-se, mas sempre em direção ao precipício. No Livro II, somos apresentados à "segunda geração", constituída por José, filho do primeiro José, e a sua mulher, Salomão, primo de José, e a sua mulher, filha da cozinheira, o velho Gabriel ainda, a prostituta cega e o mestre Rafael. Também as suas histórias nos são apresentadas entrelaçando-se umas com as outras, sempre em direção espiral ao abismo final. No fundo, é para onde caminham todas as vidas humanas. Em direção ao fim, ao abismo final, à escuridão solitária. A este fabuloso elenco são acrescentadas personagens inusitadas e ambíguas, como por exemplo, um gigante, um "homem que está fechado dentro de um quarto sem janelas a escrever", uma "voz que está fechada dentro de uma arca" e o diabo, com o seu eterno e constante sorriso (leu bem, o diabo). Estes elementos fantásticos e a narração bela e singular do autor conduzem-nos a um final tão arrebatador como surpreendente. E pelo seu conteúdo, pode-se compreender o título atribuído ao livro na sua edição inglesa: The Implacable Order of Things, «a implacável ordem das coisas». De facto, essa ideia está bem patente ao longo da obra. 
   O estilo narrativo pode apanhar os mais distraídos de surpresa. É escrito com a técnica de fluxo de consciência (ou seja, repetições e intromissões de pensamentos diferentes a meio de uma frase), dando voz não só ao narrador, mas às personagens. É preciso ler com atenção, porque se estiver a ler só por ler, será apanhado desprevenido e perder-se-á.
   Nada mais tenho a dizer. Ah, bem, falta referir que foi esta a obra de José Luís Peixoto que venceu o Prémio José Saramago de 2001 e que mais vendeu até hoje. Bem e que recomendo vivamente a sua leitura. Mais, diria que é leitura obrigatória para qualquer amante de boa literatura. 

Citações:
"Penso: talvez o céu seja um mar grande de água doce e talvez a gente não ande debaixo do céu, mas em cima dele"
"Hoje, morro eu. E eu morrer não é nada na ordem implacável do mundo."
"Atrás de mim, estava o demónio. Senti nas minhas costas o seu calor, o seu sorriso." ou "Como se soubesse que ele ia abrir ali uma janela, como se o esperasse. O demónio estava na rua, a um palmo da parede, a olhá-lo, a sorrir."


Pontuação: 10/10


Alegres leituras,
Gonçalo M. Matos

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