Muita tinta correu já sobre Ulisses. E muita tinta pode, ainda correr. Alguma dessa tinta será minha, aqui. Muito bem, o problema principal quando se pretende escrever sobre esta obra é que é tão densa, tão monumental que não se sabe por onde começar. Mas darei o meu melhor. A obra que se apresenta sob o nome de Ulisses é um dos maiores monumentos à prosa do século XX, e sem dúvida uma das maiores produções literárias de toda a história da literatura. É uma leitura densa e arrebatadora, sem dúvida. Uma pessoa que não esteja habituada a ler não deve ler Ulisses, e mesmo estando habituado não o deve decidir ler de ânimo leve. Trata-se de uma obra ímpar, com personagens, eventos e detalhes tão complicados como espantosos.
Passemos então à história. Outro problema se levanta neste ponto. Que história? Aliás, como classificar ou descrever a história narrada em Ulisses? Pode ser simples, pode ser complexo. Começamos pelo simples. O esqueleto da história, o fio condutor é o quotidiano de Leopold Bloom em Dublin, prosseguindo com as suas atividades, tão comuns como particulares ao dia específico que se passa. Começa de manhã e termina de madrugada. Esta é a ação principal. A ação secundária divide-se em diversos episódios, cada um ilustrando um momento desse dia de Bloom, tudo para terminar na sua chegada, cansado, a casa. A obra é demasiado extensa para entrar em pormenores sobre os vários enredos secundários, mas fica aqui o aviso de que são vários e cada um com uma particularidade associada a si.
Agora que foi introduzida a história, irei falar daquilo que torna Ulisses tão único: a estrutura. E estrutura da obra é, maioritariamente, não ter estrutura. Ulisses é narrado em prosa, sendo o estilo da narração o fluxo de consciência. Os pensamentos do narrador e dos personagens narrados misturam-se muitas vezes, criando uma armadilha literária para os leitores mais incautos. Os capítulos de Ulisses têm cada um o seu estilo próprio, apropriando-se ou não ao evento que relatam. O capítulo 7 tem a estrutura de uma editora jornalística, tendo cada segmento de texto um título. A narração,no capítulo 15, é feita na forma de um texto dramático (este é também o capítulo mais extenso do livro, sendo que constitui 1/4 do livro). O capítulo 17 é composto por um conjunto de perguntas e respostas, sendo que as perguntas impulsionam a narração que se passa nas respostas (sendo este o meu favorito em termos de estilo). De muitos mais poderia eu falar, mas escolho falar do último capítulo, onde os críticos afirmam que Joyce atingiu o apogeu da sua arte narrativa. Neste 18.º capítulo, a narração é-nos feita pelo pensamento interior da esposa de Bloom, Molly, onde as ideias, por mais díspares que possam parecer, se juntam por uma associação que representa fielmente o próprio processo cognitivo. Por esta razão se louva tanto Joyce enquanto escritor. Foi o primeiro a conseguir reproduzir com tanta fidelidade o processo mental de recordação, associação e cognição por escrito.
Muitos críticos chamam a Ulisses uma anti-epopeia, uma vez que Joyce criou um paralelismo entre a sua obra e a Odisseia. Daí o nome escolhido para o título do seu livro. Os três personagens principais representam os três pontos de vista da Odisseia: Leopold Bloom é Ulisses, Molly Bloom é Penélope e Stephen Dedalus é Telémaco. Os episódios de Ulisses evocam sempre o episódio da Odisseia que representam. E assim processa-se o calhamaço de monumental literatura que é Ulisses.
Não escrevo mais porque esta obra de Joyce tem material suficiente para se escrever um livro. No entanto, pode-se recorrer ao intensivo estudo de Ulisses efetuado por Stuart Gilbert.
Não tendo mais do que falar, basta-me recomendar esta leitura a qualquer corajoso que deseje passar pela experiência de leitura mais intensa e espantosa que pode imaginar. Não recomendo aos que não estão habituados a ler, porque se trata de uma obra que requer paciência, experiência e, acima de tudo, um espírito literário muito aberto, aliado à paixão pela literatura.
Citações:
"Olhos de ostra. Não interessa. Senti-lo-á depois quando cair em si. Ter, desse modo, vantagens sobre ele.
Obrigado. Que grandes estamos esta manhã!"
"Fff! Uuu. Rrpr.
As nações da terra. Ninguém atrás. Ela já passou. Então e não até então. O elétrico cran, cran, cran. Boa oportu. Vem aí. Crancrancran. Tenho a certeza que é do borgonha. Sim. Um, dois. Deixai que o meu epitáfio seja. Craaa. Escrito. Tenho.
Pprrpffrrppfff.
Dito."
"Quais, reduzidas às suas formas recíprocas mais simples, eram os pensamentos de Bloom acerca dos pensamentos de Stephen sobre Bloom e os pensamentos de Bloom acerca dos pensamentos de Stephen sobre os pensamentos de Bloom acerca de Stephen?
Ele pensava que ele pensava que era judeu enquanto ele sabia que ele sabia que ele sabia que sabia que não era."
Pontuação: 10/10
Aventurosas leituras,
Gonçalo M. Matos
Passemos então à história. Outro problema se levanta neste ponto. Que história? Aliás, como classificar ou descrever a história narrada em Ulisses? Pode ser simples, pode ser complexo. Começamos pelo simples. O esqueleto da história, o fio condutor é o quotidiano de Leopold Bloom em Dublin, prosseguindo com as suas atividades, tão comuns como particulares ao dia específico que se passa. Começa de manhã e termina de madrugada. Esta é a ação principal. A ação secundária divide-se em diversos episódios, cada um ilustrando um momento desse dia de Bloom, tudo para terminar na sua chegada, cansado, a casa. A obra é demasiado extensa para entrar em pormenores sobre os vários enredos secundários, mas fica aqui o aviso de que são vários e cada um com uma particularidade associada a si.
Agora que foi introduzida a história, irei falar daquilo que torna Ulisses tão único: a estrutura. E estrutura da obra é, maioritariamente, não ter estrutura. Ulisses é narrado em prosa, sendo o estilo da narração o fluxo de consciência. Os pensamentos do narrador e dos personagens narrados misturam-se muitas vezes, criando uma armadilha literária para os leitores mais incautos. Os capítulos de Ulisses têm cada um o seu estilo próprio, apropriando-se ou não ao evento que relatam. O capítulo 7 tem a estrutura de uma editora jornalística, tendo cada segmento de texto um título. A narração,no capítulo 15, é feita na forma de um texto dramático (este é também o capítulo mais extenso do livro, sendo que constitui 1/4 do livro). O capítulo 17 é composto por um conjunto de perguntas e respostas, sendo que as perguntas impulsionam a narração que se passa nas respostas (sendo este o meu favorito em termos de estilo). De muitos mais poderia eu falar, mas escolho falar do último capítulo, onde os críticos afirmam que Joyce atingiu o apogeu da sua arte narrativa. Neste 18.º capítulo, a narração é-nos feita pelo pensamento interior da esposa de Bloom, Molly, onde as ideias, por mais díspares que possam parecer, se juntam por uma associação que representa fielmente o próprio processo cognitivo. Por esta razão se louva tanto Joyce enquanto escritor. Foi o primeiro a conseguir reproduzir com tanta fidelidade o processo mental de recordação, associação e cognição por escrito.
Muitos críticos chamam a Ulisses uma anti-epopeia, uma vez que Joyce criou um paralelismo entre a sua obra e a Odisseia. Daí o nome escolhido para o título do seu livro. Os três personagens principais representam os três pontos de vista da Odisseia: Leopold Bloom é Ulisses, Molly Bloom é Penélope e Stephen Dedalus é Telémaco. Os episódios de Ulisses evocam sempre o episódio da Odisseia que representam. E assim processa-se o calhamaço de monumental literatura que é Ulisses.
Não escrevo mais porque esta obra de Joyce tem material suficiente para se escrever um livro. No entanto, pode-se recorrer ao intensivo estudo de Ulisses efetuado por Stuart Gilbert.
Não tendo mais do que falar, basta-me recomendar esta leitura a qualquer corajoso que deseje passar pela experiência de leitura mais intensa e espantosa que pode imaginar. Não recomendo aos que não estão habituados a ler, porque se trata de uma obra que requer paciência, experiência e, acima de tudo, um espírito literário muito aberto, aliado à paixão pela literatura.
Citações:
"Olhos de ostra. Não interessa. Senti-lo-á depois quando cair em si. Ter, desse modo, vantagens sobre ele.
Obrigado. Que grandes estamos esta manhã!"
"Fff! Uuu. Rrpr.
As nações da terra. Ninguém atrás. Ela já passou. Então e não até então. O elétrico cran, cran, cran. Boa oportu. Vem aí. Crancrancran. Tenho a certeza que é do borgonha. Sim. Um, dois. Deixai que o meu epitáfio seja. Craaa. Escrito. Tenho.
Pprrpffrrppfff.
Dito."
"Quais, reduzidas às suas formas recíprocas mais simples, eram os pensamentos de Bloom acerca dos pensamentos de Stephen sobre Bloom e os pensamentos de Bloom acerca dos pensamentos de Stephen sobre os pensamentos de Bloom acerca de Stephen?
Ele pensava que ele pensava que era judeu enquanto ele sabia que ele sabia que ele sabia que sabia que não era."
Pontuação: 10/10
Aventurosas leituras,
Gonçalo M. Matos
Sem comentários:
Enviar um comentário