segunda-feira, 23 de julho de 2018

"2666", de Roberto Bolaño - Parte 3


A Parte de Archimboldi

   Por fim, chegamos à parte relativa ao esquivo escritor alemão que tanta paixão despertou nos críticos referidos na primeira parte deste monumental romance. Começamos por saber que o seu nome é Hans Reiter, nascido numa aldeia alemã no período entre guerras, filho de um ex-soldado prussiano e de uma mulher que apenas tinha um olho, chamados apenas por "o coxo" e "a zarolha". Também sabemos que tem uma irmã, de seu nome Lotte. Após uma pequena introdução à sua infância na sua pequena aldeia, acompanhamos a existência de Reiter na Segunda Guerra Mundial, enfileirado nas tropas alemãs. Terminando a guerra, Hans, após uma temporada num campo de prisioneiros, vai viver para Colónia com uma rapariga que conhecera ainda durante a guerra, Ingeborg. É então que Reiter adota o seu pseudónimo Benno von Archimboldi. Após o seu primeiro contacto com um editor de Hamburgo, o senhor Bubis, não só este consegue uma editora para todas as suas obras como reencontra alguém do seu passado, que é a esposa do editor. Após mais deambulações de Archimboldi, chegamos à vez da história de Lotte, que vivera a sua vida paralela à do irmão, até o reencontrar muitos anos depois, não sem antes ter casado e produzido um filho. Este jovem, fruto da irmã de Archimboldi, é a ligação entre a história anterior e esta. Entre todos estes momentos-chave, conhecemos variadíssimos personagens que compõem, mais do que a história de Archimboldi, a história da devastação que a guerra causa e do seu rescaldo. 
   Também nesta parte se nota o estilo particular do autor, com as descrições a roçar o inverosímil das personagens e do ambiente que as rodeia. O que mais nos marca nesta parte é as experiências diversas do personagem principal que, juntas, contribuem para a sua história pessoal e literária. As vivências que acompanhamos nesta parte do romance versam sobre a devastação e a reconstrução, e a impotência do ser humano perante isto tudo. Nota-se, mais do que nunca, o caráter inacabado da obra, nota-se demasiado, infelizmente, o caminho que ficou por percorrer, algo que não afeta, no entanto, a solidez do romance.
   E assim terminou a monumental obra que é 2666. Com o fecho do círculo que iniciou, sem se deixar abater pela sua imensidão. As partes que abriram alguma linha vieram todas dar ao ponto que queriam, e as que ficaram por atar decididamente foi devido à morte do autor e à inevitável interrupção que tal provoca. 

Citações:
"A quarta dimensão, dizia, é a riqueza absoluta dos sentidos e do Espírito (com maiúscula), é o olho (com maiúscula), isto é, o Olho, que se abre e anula os olhos, que comparados com o Olho são apenas uns pobres orifícios de lodo, fixos na contemplação ou na equação nascimento-aprendizagem-trabalho-morte, enquanto o Olho sobe pelo rio da filosofia, pelo rio da existência, pelo rio (rápido) do destino. (...) A quarta dimensão, dizia, só era exprimível através da música. Bach, Mozart, Beethoven."
"(...) quando é bem sabido, pensou Archimboldi, que a História, que é uma puta simples, não tem momentos determinantes, mas é sim uma proliferação de instantes, de brevidades que rivalizam entre si em monstruosidade."

Pontuação d' A Parte de Archimboldi: 1.9/2


Apreciação geral de 2666

   Que leitura! Sinto-me diferente após a leitura de uma obra tão extensa e exigente. Mas sinto-me satisfeito com a leitura da obra e, principalmente, da marca pessoal de 1025 páginas lidas. Foi tão extensa que tive de a fasear ao longo de um ano, com receio de me aborrecer e perder o interesse na monumental leitura que acabei de efetuar. Dito isto, pontos a considerar quanto a esta obra de Roberto Bolaño:
   - Por um lado, é uma pena que a obra esteja inacabada, pois deixa um sabor agridoce ver o evoluir da narração para terminar numa nota tão claramente incompleta. Por outro, talvez não fosse o que é se tivesse sido acabada. Nunca se sabe que caminhos teriam sido tomados em vez de outros que o foram efetivamente caso a história desembocasse num final diferente. 
   - Nunca saberemos, também, que caminho teria tomado Bolaño com o final deste monumento literário, mas sabemos, graças a uma nota editorial, que o autor tinha algo grande em mente, um final que, se tivesse sido concretizado, seria a catarse perfeita para uma obra tão extensa e exigente. 
   - Foi uma leitura de altos e baixos, umas vezes viciante, outras vezes aborrecida, marcas de uma obra ainda em construção, ainda em busca da sua estrutura elementar. 
   - Sem sombra de dúvida que é um enorme testemunho sobre a humanidade, naquilo que nos distingue uns dos outros, mas mais, talvez, naquilo que nos aproxima. Também é uma obra que versa sobre a loucura, o medo, a destruição e a reconstrução. 
   Uma obra prima, no fundo. E se merece ser lida... caberá aos curiosos (e corajosos) descobrir por si mesmos.

Citação final:
   "A resposta de Archimboldi surpreendeu Bubis. Nela dizia-lhe que Sísifo, uma vez morto, fugira do Inferno através de um estratagema de ordem legal. Antes que Zeus libertasse Tânato, e sabendo Sísifo que a primeira coisa que a morte faria seria ir à procura dele, pediu à sua mulher que não cumprisse os requisitos fúnebres estabelecidos. Assim, ao chegar aos Infernos, Hades censurou-o por isso e todas as potestades infernais clamaram, como é normal, aos céus ou na abóbada do Inferno e arrancaram cabelos e sentiram-se ofendidas. Sísifo, não obstante, disse que a culpa não era sua, mas sim da sua mulher e pediu, digamos, uma autorização penal para subir à terra e castigá-la.
   Hades pensou: a proposta de Sísifo era razoável e foi-lhe concedida a liberdade sob fiança, válida unicamente para três ou quatro jornadas, as suficientes para proceder à justa vingança e pôr em marcha, nem que fosse um pouco tarde, os requisitos fúnebres oficiais. Claro que Sísifo não esperou que lhe dissessem duas vezes e voltou à terra, onde viveu de forma feliz até ser muito velho, não era em vão que era o homem mais astuto da terra, e só regressou aos Infernos quando o seu corpo não deu mais de si. 
   Segundo alguns, o castigo da rocha só tinha uma finalidade: a de manter Sísifo ocupado e não permitir que a sua mente inventasse novas argúcias. Mas no dia em que Sísifo menos pensar vai-lhe acontecer alguma coisa e vai voltar a subir à terra, concluía Archimboldi na sua carta."


Pontuação de 2666: 7.5/10


Gonçalo Martins de Matos

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