O luto de Elias Gro é o primeiro romance da denominada "trilogia" dos lugares sem nome, série de três livros de João Tordo que exploram temas íntimos da alma humana. Sem ligação sequencial entre os três, estes abrem um novo capítulo na escrita do autor (ou será que encerram? mais para a frente analisaremos melhor este ponto).
A história começa com o narrador a contar-nos a vez em que habitou um farol numa ilha, de modo a fugir por momentos da sua vida. Este narrador, lúgubre e melancólico, dependente do álcool para atenuar a sua dor, apresenta-nos de início como conheceu um alemão que lhe arrendou um farol numa ilha para poder viver longe da sua anterior existência, descrevendo-nos a ilha e os seus habitantes. Após a primeira apresentação que nos é feita da Casa das Águas, uma casa vitoriana que tinha sido habitada por um escritor, Lars Drosler, e que fora engolida pelo mar, o narrador descreve-nos a breve rotina que levou nos primeiros tempos na ilha. Rotina que mudou quando, distraído, o narrador atropelou, de bicicleta, Cecilia, uma pequena rapariga espirituosa e perita em anatomia, e Alma, uma mulher muito carinhosa com quem Cecilia passava grande parte do seu tempo livre. Num dos dias subsequentes, o narrador conhece Elias Gro, um padre anglicano, pai de Cecilia, que lhe pede o favor de acompanhar a partir de aí a sua filha até à escola, que era no continente. Estranhando tal pedido, mas aquiescendo de forma a compensar o remorso que sentia em ter atropelado Cecilia, o narrador assim o faz. E é assim que eles começam a passar muito tempo juntos e a trocar as suas ideias e pensamentos. A certa altura, Elias Gro expressa os seus desejos em recuperar a Casa das Águas, recuperando tudo o que pudesse ser dos restos afundados da casa. É assim que o narrador e Cecilia têm acesso aos escritos de Lars Drosler, e encetam numa análise dos mesmos. A parte final da história revela-nos como o narrador vai aos poucos aprendendo a lidar com a sua dor, e como o luto não é algo que pertence a cada um individualmente, mas é um sentimento partilhado por todos nós. O narrador apercebe-se disso quando fica a conhecer os lutos de Alma e, especialmente, de Elias Gro. É com esta renovada perceção que a história avança para uma conclusão inconclusiva, na qual a dor e a renovação se enlaçam e aproximam.
A história começa pelo final. É uma afirmação curiosa e é o eufemismo perfeito para descrever a analepse inicial deste romance. O narrador, como muitos outros antes na obra de João Tordo, é um personagem melancólico, perseguido pelos seu passado e pelos seus demónios, procurando uma fuga e uma expiação dos mesmos. É assim que o narrador decide, primeiro, escrever a sua peculiar história, como terapia, e, em segundo, viajar para a ilha e morar num farol. O farol é um símbolo universal de isolamento mas de esperança, metáfora ideal para a melancolia, a dor e a esperança amalgamadas num mesmo sentimento, numa mesma torre de ferro, fria e distante, mas cuja luz orienta os barcos perdidos no mar. A Casa das Águas também tem a sua função metafórica, quer a que se afundou, quer a que Elias Gro sonhou reconstruir. O luto, como esta casa, consome e afunda, sem nunca conseguirmos recuperar totalmente. Mas isso não quer dizer que não seja possível iludir essa dor. João Tordo é um autor que se apoia em imagens metafóricas de uma forma muito bem conseguida, e este livro é talvez aquele que, até agora, mais evidenciou essa sua capacidade. Todos os personagens fulcrais deste romance, o narrador, Elias Gro, Cecilia, Alma, Lars Drosler, e François Xavier (o faroleiro que habitava no farol), exprimem as suas formas de dor e as suas maneiras de lidar com a dor, de fazer o seu luto e de aprender a, aos poucos, recuperar dela. O final do romance é deixado em aberto, na opinião deste que vos escreve, precisamente para exprimir essa ideia de inconclusão que a dor nos destina. Os temas da expiação, da inquietude, da melancolia e da tristeza são temas recorrentes na obra de João Tordo, aqui encontrando uma espécie de súmula, precisamente porque, pelo menos é dado a entender, nesta obra (e talvez na "trilogia") o autor procura um encerramento temático, e, em simultâneo, um início.
Portanto, remato este texto com a habitual recomendação desta obra. Trata-se de uma leitura que se funde com os nossos demónios, estejam eles ocultos ou não, e que nos ajuda, também, a orientar a dor e o luto que tão inerentes são a todos nós. Um livro que vale a pena ser lido.
Citações:
"O isolamento é uma doença dos nossos dias, disse ele. E tanto é uma doença que, como em todos os estados patológicos, só encontramos alívio quando nos apercebemos de que, sem darmos por isso, perpetuámos essa condição porque é mais doloroso sair dela do que permanecer doente. A sanidade tem um preço."
"Por alguma razão Noé construiu uma arca em forma de um barco. Deus disse-lhe para a construir de boa madeira resinosa e com betume por dentro e por fora. (...) Já nesses tempos se sabia que a água, que é vida por dentro quando a bebemos, corrói tudo por fora. Pense nas marés. A erosão consome ilhas inteiras e, se for preciso, continentes. Contra a água não há nada a fazer. O fogo? A água apaga-o. O ar? A água consome-o. A terra? A água inunda-a. Não é por acaso que o Senhor decretou um dilúvio em vez de um incêndio."
"E os milagres são hiperbólicos porque o verdadeiro milagre passa despercebido. Cristo teve de ressuscitar os mortos e curar os leprosos para que nós percebêssemos que até as coisas mais simples são divinas. Se Cristo se limitasse a construir uma casa, diríamos: Mas isso posso eu fazer. A hipérbole é a fundação de toda a religião. Sim, é isso mesmo: temos de ser confrontados com as coisas que estão fora do nosso alcance para darmos valor àquelas que nos são permitidas."
Pontuação: 8.5/10
Gonçalo Martins de Matos
A história começa com o narrador a contar-nos a vez em que habitou um farol numa ilha, de modo a fugir por momentos da sua vida. Este narrador, lúgubre e melancólico, dependente do álcool para atenuar a sua dor, apresenta-nos de início como conheceu um alemão que lhe arrendou um farol numa ilha para poder viver longe da sua anterior existência, descrevendo-nos a ilha e os seus habitantes. Após a primeira apresentação que nos é feita da Casa das Águas, uma casa vitoriana que tinha sido habitada por um escritor, Lars Drosler, e que fora engolida pelo mar, o narrador descreve-nos a breve rotina que levou nos primeiros tempos na ilha. Rotina que mudou quando, distraído, o narrador atropelou, de bicicleta, Cecilia, uma pequena rapariga espirituosa e perita em anatomia, e Alma, uma mulher muito carinhosa com quem Cecilia passava grande parte do seu tempo livre. Num dos dias subsequentes, o narrador conhece Elias Gro, um padre anglicano, pai de Cecilia, que lhe pede o favor de acompanhar a partir de aí a sua filha até à escola, que era no continente. Estranhando tal pedido, mas aquiescendo de forma a compensar o remorso que sentia em ter atropelado Cecilia, o narrador assim o faz. E é assim que eles começam a passar muito tempo juntos e a trocar as suas ideias e pensamentos. A certa altura, Elias Gro expressa os seus desejos em recuperar a Casa das Águas, recuperando tudo o que pudesse ser dos restos afundados da casa. É assim que o narrador e Cecilia têm acesso aos escritos de Lars Drosler, e encetam numa análise dos mesmos. A parte final da história revela-nos como o narrador vai aos poucos aprendendo a lidar com a sua dor, e como o luto não é algo que pertence a cada um individualmente, mas é um sentimento partilhado por todos nós. O narrador apercebe-se disso quando fica a conhecer os lutos de Alma e, especialmente, de Elias Gro. É com esta renovada perceção que a história avança para uma conclusão inconclusiva, na qual a dor e a renovação se enlaçam e aproximam.
A história começa pelo final. É uma afirmação curiosa e é o eufemismo perfeito para descrever a analepse inicial deste romance. O narrador, como muitos outros antes na obra de João Tordo, é um personagem melancólico, perseguido pelos seu passado e pelos seus demónios, procurando uma fuga e uma expiação dos mesmos. É assim que o narrador decide, primeiro, escrever a sua peculiar história, como terapia, e, em segundo, viajar para a ilha e morar num farol. O farol é um símbolo universal de isolamento mas de esperança, metáfora ideal para a melancolia, a dor e a esperança amalgamadas num mesmo sentimento, numa mesma torre de ferro, fria e distante, mas cuja luz orienta os barcos perdidos no mar. A Casa das Águas também tem a sua função metafórica, quer a que se afundou, quer a que Elias Gro sonhou reconstruir. O luto, como esta casa, consome e afunda, sem nunca conseguirmos recuperar totalmente. Mas isso não quer dizer que não seja possível iludir essa dor. João Tordo é um autor que se apoia em imagens metafóricas de uma forma muito bem conseguida, e este livro é talvez aquele que, até agora, mais evidenciou essa sua capacidade. Todos os personagens fulcrais deste romance, o narrador, Elias Gro, Cecilia, Alma, Lars Drosler, e François Xavier (o faroleiro que habitava no farol), exprimem as suas formas de dor e as suas maneiras de lidar com a dor, de fazer o seu luto e de aprender a, aos poucos, recuperar dela. O final do romance é deixado em aberto, na opinião deste que vos escreve, precisamente para exprimir essa ideia de inconclusão que a dor nos destina. Os temas da expiação, da inquietude, da melancolia e da tristeza são temas recorrentes na obra de João Tordo, aqui encontrando uma espécie de súmula, precisamente porque, pelo menos é dado a entender, nesta obra (e talvez na "trilogia") o autor procura um encerramento temático, e, em simultâneo, um início.
Portanto, remato este texto com a habitual recomendação desta obra. Trata-se de uma leitura que se funde com os nossos demónios, estejam eles ocultos ou não, e que nos ajuda, também, a orientar a dor e o luto que tão inerentes são a todos nós. Um livro que vale a pena ser lido.
Citações:
"O isolamento é uma doença dos nossos dias, disse ele. E tanto é uma doença que, como em todos os estados patológicos, só encontramos alívio quando nos apercebemos de que, sem darmos por isso, perpetuámos essa condição porque é mais doloroso sair dela do que permanecer doente. A sanidade tem um preço."
"Por alguma razão Noé construiu uma arca em forma de um barco. Deus disse-lhe para a construir de boa madeira resinosa e com betume por dentro e por fora. (...) Já nesses tempos se sabia que a água, que é vida por dentro quando a bebemos, corrói tudo por fora. Pense nas marés. A erosão consome ilhas inteiras e, se for preciso, continentes. Contra a água não há nada a fazer. O fogo? A água apaga-o. O ar? A água consome-o. A terra? A água inunda-a. Não é por acaso que o Senhor decretou um dilúvio em vez de um incêndio."
"E os milagres são hiperbólicos porque o verdadeiro milagre passa despercebido. Cristo teve de ressuscitar os mortos e curar os leprosos para que nós percebêssemos que até as coisas mais simples são divinas. Se Cristo se limitasse a construir uma casa, diríamos: Mas isso posso eu fazer. A hipérbole é a fundação de toda a religião. Sim, é isso mesmo: temos de ser confrontados com as coisas que estão fora do nosso alcance para darmos valor àquelas que nos são permitidas."
Pontuação: 8.5/10
Gonçalo Martins de Matos
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