segunda-feira, 1 de julho de 2019

"Lunário", de Al Berto

   Al Berto é sem dúvida um dos nomes incontornáveis da poesia portuguesa do final do século XX. Como acontece com inúmeros outros poetas, a sua obra em prosa acaba por muitas vezes ser secundarizada face à sua obra poética. Esse pormenor costuma levar-me a indagar aquela. 
   Beno, o protagonista desta narrativa, recorda a vida errante e excessiva que o levou até ao momento em que começamos a história. Uma vida deambulatória, de excessos e noturna. Desde logo nos é dito que nos primeiros tempos, Beno não se apegava a nada, viajando de cidade em cidade e nunca ficando em nenhuma demasiado tempo. Uma noite, no café que frequentava, o Lura, é abordado por um homem que não lhe diz o seu nome, mas os dois começam a viver juntos, dando-lhe Beno o nome de Nému. E juntos viveram. Um dia são visitados por Alba, que sabemos ser amiga de ambos e mãe de um filho com Beno, para voltarem a sair à noite. Mais para frente conhecemos Kid e Zohía, ambos amigos de Beno, que no auge do romance serão peças fulcrais. Mais tarde ainda, conheceremos Alaíno, companheiro de Zohía. Todos estes personagens se movem nas suas vidas, errantes, sem saber com o que contar no dia seguinte, até que cada uma das histórias abertas se vai fechando até à conclusão final. 
   Antes de mais, este livro trata-se de um texto autobiográfico, desde logo se evidenciando com as semelhanças entre o nome do autor e o nome de Beno, passando pelo gosto pela escrita e pela pintura por que ambos são conhecidos. Sendo assim, todas as vidas e todas as histórias que encontramos nesta obra são reflexos do próprio autor, desdobrado em ambos, procurando alguma lógica na fragmentação diária da sua vida. Há, no caráter deambulatório da vida dos personagens, uma reflexão do próprio autor na sua própria deambulação. O livro é soberbamente escrito, denotando-se uma sensibilidade e uma inquietação fora do comum que, nunca é de mais repetir, sempre marcaram a vida de Al Berto, evidentes a quem conhecer a sua obra. A construção dos capítulos é fascinante. Cada capítulo é uma fase lunar (daí o nome do romance), sendo que no início e no fim temos o anoitecer e o amanhecer, o "Crepúsculo" e a "Umbria", culminando tudo num "Cântico" final. Tudo se desenvolve em crescendo até ao apogeu, à "Lua Cheia", decrescendo o ritmo e o passo a partir de aí. É toda a prosa, no fundo, um enorme poema. E que poema. É fascinante observar a desfragmentação do autor nas suas personas literárias, de modo a conseguir alguma fuga da inquietação que o assombra. Um outro aspeto, mais formal, que me fascinou neste livro foi a capa. Apesar do que diz o acertado ditado popular sobre as capas dos livros, a verdade é que esta capa faz parte da primeira atração que este livro provoca (esta edição da Assírio & Alvim, claro). Da capa deste livro fita-nos intensamente um jovem Al Berto, enigmático, convidando-nos a vir conhecê-lo. É uma capa muito bem pensada para o objetivo do livro (sendo até por isso mesmo que as edições desta chancela da Porto Editora colocam os seus poetas nas capas dos seus livros), uma complementaridade entre o conteúdo e a forma. E isso apenas contribuiu para o fascínio por esta obra.
   Resta portanto recomendar a leitura desta obra, especialmente se alguma inquietação incomodar o hipotético leitor; pode ser que assim encontre uma fuga para o que o assola.

Citações:
"Uma brisa noturna e carregada de sal desatou a soprar. O dia começava a morrer. A espuma das ondas tornara-se quase vermelha, a água ardia. Beno sentiu-se envolto numa espécie de torpor que o cegava. Olhava o mar, pressentia-o mais do que, na verdade, o via. E tudo o que via, afinal, não era senão uma mancha azulada estendendo-se a perder de vista, metalizada e ondulante, onde o crepúsculo derramava breves incêndios."
"Disseram um ao outro como se chamavam. Compraram cigarros e livros. Beberam café numa esplanada junto ao rio. Passearam-se até que o halo avermelhado do crepúsculo caiu sobre a cidade. A noite tornou-se densa, e os asfaltos refletiam a feérica luminosidade dos néons e dos semáforos."
" - Há tempos, aprisionei o tigre com olhos de rubi numa imagem de papel. Levei-o para dentro do meu sonho e passei noites inteiras a domá-lo, e agora ele anda à solta, muito manos, sedutor, por toda a casa. Já não sonho com ele, sonho com Beno. Mas o tigre só é verdadeiramente visível quando me dói alguma coisa e os espelhos me prendem o olhar. Pergunto-me sempre que estranho sonho me terá acordado..."


Pontuação: 8.9/10


Gonçalo Martins de Matos

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