É difícil não elevar as nossas expetativas quando o autor que vamos ler vem altamente recomendado por figuras como Valter Hugo Mãe ("A nova literatura portuguesa passa obrigatoriamente por aqui") ou António Lobo Antunes ("Uma maneira de falar completamente nova na literatura portuguesa"). O resultado final é que efetivamente encontramos uma maneira nova de falar na literatura portuguesa e que, apesar de não ir propriamente de encontro às altas expetativas que tinha criado, estas não foram goradas.
Maria, uma jovem desbocada e "de má rês", bipolarizada no afeto e no ódio que sente pelo seu namorado gigolô, chamado de Velho, dá por si numa situação de despedimento devido ao efeito esmagador da crise e das falcatruas da chefe na empresa onde trabalhava. Assim empurrada para uma defesa surreal dos seus direitos e posto de trabalho, juntamente com os seus colegas, liderados pelo "grande líder" do sindicato, Maria dá por si a ver escapar-se-lhe qualquer hipótese de se fazer pagar das dívidas salariais devidas pela empresa. Entre as suas inquietações pela falta que o seu "Velhinho" lhe faz, as mirabolantes peripécias para resgatar a empresa e as suas próprias reflexões sobre a condição em que se encontra, Maria dá por si cada vez mais a despegar-se dos últimos resquícios do seu enquadramento numa sociedade dita organizada e decide meter mãos à obra e cobrar o que lhe é devido, a bem ou a mal.
Este romance é narrado na primeira pessoa, por Maria. Os capítulos são estruturados de uma forma proto-epistolar, com todos a começar com Maria dirigindo-se ao seu "Velhinho", quase sempre variando a forma como lhe dirige palavra, conforme o seu estado de espírito. São também capítulos breves, quase telegráficos por vezes, contendo as indagações da narradora ou relatando as peripécias da sua vida. Sendo narrados na primeira pessoa por uma mulher desbocada, a utilização da oralidade corriqueira e não poucas vezes grosseira é uma característica muito forte neste romance. A linguagem totalmente oral e corriqueira é brilhantemente utilizada por Ricardo Adolfo; cria mesmo a sensação de ouvirmos estes pensamentos a ser expressados pela narradora ao nosso lado. Não faltam o jargão popular, os palavrões e os neologismos aportuguesados para compor com mestria uma fala completamente livre e verosímil. Ainda nesta tendência oralizante, Ricardo Adolfo leva o sonho de Saramago em reproduzir literáriamente a fala ainda mais longe, imprimindo nos diálogos uma escrita quase fonética. Como exemplos desta forma curiosa de escrever o discurso direto podemos invocar: "sim, quem é cavia de ser?"; "vá, mostra lá, mas olha queu não tenho nada pra mostrar"; "tá ma contratar" ou "atão, comé que passa?"; isto para citar alguns exemplos desta oralização fonética. Além disto, o discurso direto é introduzido sem travessão e sem maiúsculas, apenas sem empregando estas quando se trata de nomes próprios. Esta linguagem original, corriqueira e fortemente oral que Ricardo Adolfo emprega com bastante desenvoltura são, a meu ver, os pontos mais fortes deste romance peculiar. A narrativa é feita de peripécias quase surreais que nos põem um sorriso nos lábios, quer pela sua natureza, quer pela interpretação dos factos pela própria narradora. A protagonista, outro ponto bastante fulcral deste romance, é quase completamente atípica na literatura portuguesa. Trata-se Maria de uma anti-heroína cujas ideias e conclusões se afastam daquilo que podemos considerar como uma atitude ética positiva, mas que nos deixa empáticos com a sua situação, dando por nós a apoiar, inclusive, algumas das suas decisões e atitudes, reprováveis aos olhos da moral comunitária.
Efetivamente, uma nova forma de falar na literatura portuguesa, a que não podemos ficar indiferentes.
Citações:
"Só para dar razão àqueles que acreditam que tudo o que sobe tem mesmo de se estatelar, para nossa desgraça aterrámos no Grande Festival Está Tudo Fodido dos Cornos, organizado pela nossa caríssima doutora, com direito a variedades e palhaços famosos. Sendo que o papel de palhaço-mor foi atribuído a nous. Voilà. Cabra."
"Mais um génio da gestão incompreendido neste país. Mais uma empresa nacional que não vai conquistar a Europa, a Ásia e o ciberespaço porque os pobres que aqui trabalham não são capazes de acompanhar a genialidade de quem quer liderar a empresa até aos quatro cantos da falência."
"A primeira coisa que fizemos assim que chegámos ao local de desemprego foi googlar se a falta prolongada de orgasmos pode ter efeitos nocivos. A lista de maleitas é infinita. Isto está a tornar-se um caso clínico crónico. Tem de haver uma droga legal para este tipo de doença. Se não há, o que é que as farmacêuticas andam a investigar? Imagina tomares uma pastilha e a seguir começares a orgasmar. É a ideia do milénio, só pode.
Devíamos ter ido para Farmácia, devíamos não ter chumbado a Físico-Química por faltas, devíamos ter sido avisadas de que quem se balda à escola ou vai para ministro ou então está fodido."
Pontuação: 8.9/10
Gonçalo Martins de Matos
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