segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

"os transparentes", de Ondjaki

    Abrir as portas do universo literário lusófono é entrar num universo multilicultural pleno de histórias, filosofias e modos de viver diferentes e variados, todos conectados pela maravilhosa força da nossa língua comum. Quanto mais descobrimos os autores de expressão lusófona, mais se abre a nossa visão e a nossa empatia. É com estas impressões em mente que tenho encetado na descoberta destes autores lusófonos. Em os transparentes mergulhamos nesse universo de infinitas diversidades que se ramificam do tronco da língua portuguesa. 
   Num prédio em Luanda habita um grupo de pessoas cujas histórias particulares se confundem com a sua vivência comum nos corredores do seu prédio. Na entrada deste prédio existe uma fonte de águas frescas, reparadoras e acolhedoras, que ninguém sabe muito bem de onde vêm, mas que já fazem parte das suas vidas. Habita neste prédio um leque muito colorido de personagens, de quem conhecemos as suas frustrações e ambições. Odonato, personagem que ocupa bastante espaço narrativo, é um indivíduo comum, mas que é acometido de uma estranha doença: está, aos poucos, a ficar transparente. Mas a sua maleita não lhe ocupa muito do seu espaço emocional, uma vez que todos os que o rodeiam merecem mais a sua atenção. Com Odonato vivem a sua mulher, Xilisbaba, a mãe desta, AvóKunjikise, e a sua filha Amarelinha. O filho de Odonato e de Xilisbaba, CienteDoGrã, não habita na mesma casa, uma vez que vive a sua vida cometendo furtos, modo de vida que os seus pais não aprovam. No prédio conhecemos ainda outros personagens como JoãoDevagar, Paizinho, Edú e a sua esposa Nelucha, MariaComForça, o CamaradaMudo, entre outros que vivem os seus quotidianos entrelaçados com o de Odonato e a sua família. De fora do prédio conhecemos ainda outros personagens, com as suas batalhas mundanas e os seus problemas comuns. Conhecemos o VendedorDeConchas e o seu amigo Cego, conhecemos PauloPausado, jornalista, e a sua mulher Clara, Raago e DavideAirosa, dois cientistas, um americano e o outro angolano, ou o Carteiro, empenhado em que o Governo lhe dê uma mota para que melhor possa cumprir a sua missão. Também conhecemos aqueles a quem a vida parece mais facilitada, os próprios membros do Governo, como o Assessor ou o Ministro, o grande empresário DomCristalino, e os dois fiscais DestaVez e DaOutra. Mais personagens ainda compõem esta colorida galeria de intervenientes da vida luandense, todos interligando-se a certo ponto na teia de relações que é tecida pela vida simultaneamente pacata e difícil em Luanda. 
    Neste romance não existem personagens principais. Ninguém tem mais relevância que o próximo, apenas ocupam mais ou menos espaço da narrativa. Ondjaki afirma diversas vezes que o personagem principal dos seus romances é Luanda, e neste nota-se bem essa característica. Seja qual for a vida que acompanhamos, Luanda é sempre o elemento comum, sempre presente, seja em que situação for. Existe uma batalha simbólica que percorre o romance, que é a frescura, a água, e o calor, o fogo. Por vezes esta batalha é evidente, como quando as pessoas se banham nas águas do prédio para combater o calor; outras vezes, esta batalha é subtil, como o nome do café BarDoNoé e a sua promessa de frescura contra o calor luandense. Um dos aspetos mais fascinantes deste romance é o seu uso da linguagem corrente angolana, a mistura entre o português e o kimbundu, um dialeto típico angolano. O romance faz-se acompanhar de um pequeno glossário no final, no qual se apresentam algumas das palavras em kimbundu para que possamos apreciar ainda melhor essa experiência de ouvir a Luanda de hoje. É também muito curiosa a forma como o autor utiliza e quebra os parágrafos. Ondjaki escreve os seus parágrafos todos em minúsculas, quebrando-os sem pontos finais, o que gera uma fluidez de escrita equiparável à fluidez do pensamento, sem que estejamos a falar exatamente da técnica de fluxo de consciência. Os únicos pontos finais são encontrados apenas no final de cada capítulo. Os capítulos em si estão divididos por uma ou duas páginas pintadas de preto, na qual estão escritas a letras brancas algumas frases ou pensamentos do autor ou dos personagens, que podem ou não relacionar-se com o que se desenvolveu até aí. Existe uma nota de bom humor no romance, quer na forma como os personagens se relacionam e vivem as suas vidas, quer na própria narração. A escrita do autor é tão humana como é criativa, as histórias mais inverosímeis que habitam as páginas deste romance são, igualmente, as mais verdadeiras. É uma escrita verdadeiramente poética na sua força emotiva e na sua amplitude semântica.
   Não resta mais do que recomendar vivamente a leitura deste romance. 
 
Citações:
"as línguas e as labaredas do inferno distendido numa caminhada visceral de animal cansado, redondo e resoluto, fugindo ao caçador na vontade renovada de ir mais longe, de queimar mais, de causar mais ardor e, exausto, buscar a queima de corpos em perda de ritmia humana, harmonia respirada, mãos que acariciavam cabelos e crânios alegres numa cidade onde, durante séculos, o amor tinha descoberto, entre brumas de brutalidade,
   um ou outro coração para habitar"
"comprar pão, sabia-se no prédio, podia querer dizer muita coisa, até porque, pão mesmo, desse de se fazer à noite com o forno e sal, havia em toda a parte, ir buscar pão era outra coisa, matéria de profunda filosofia, ocupação de teor ocioso e criativo, justificação tanto profissional quanto humana para erráticas movimentações urbanas"
"o que nalguns países é um lar, composto por uma determinada combinação de objetos e possibilidades, em outro pode não ser bem assim, uma vez que, humanamente, nos mais variados continentes, é a força do hábito que dita as circunstâncias que cada cidadão acata como aceitáveis, coletivamente insuportáveis ou democraticamente justas"
 
 
Pontuação: 9.3/10
 
 
Gonçalo Martins de Matos

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