Foi com relativa solidez que José Gardeazabal se introduziu no mundo literário português, com as sua premiada obra poética história do século vinte (obra vencedora do Prémio INCM/Vasco Graça Moura 2015) e, em 2018, com o seu primeiro romance, Meio homem, metade baleia. A melhor máquina viva é o seu segundo romance e o primeiro da Trilogia dos Pares.
Anders Kopf é um aspirante a escritor que decide viver na pobreza durante um ano, de forma a poder escapar a um passado doloroso e, pelo caminho, melhorar a sua literatura. Eeva Wiseman é uma jovem e bela capitalista, herdeira do matadouro da sua família. Ambos são órfãos e ambos conhecem, nos seus passados, a dor. As linhas que unem os dois protagonistas são comuns e paralelas. Kopf recorda o seu passado, com toda a dor e todo o crime, enquanto sobrevive na pobreza do presente, partilhando roubos, injustiças e escassas refeições com a galeria de pobres que o acompanha. Por sua vez, Eeva recorda igualmente o seu passado, enquanto tenta lidar com a presença da dor de então na vida do presente. Pelo meio, pensa na modernidade e no que significa ser-se órfã, capitalista e mulher num mundo cada vez mais modernizado e global. Das peripécias de Kopf, das reflexões de Eeva e do desfiar das linhas do passado, quer de Kopf pelas suas palavras, quer de Eeva, pelas suas questões, resultará uma reflexão conjunta sobre o passado e o presente, sobre o nosso papel real na grande mecânica dos eventos e também sobre o significado da pobreza num século pós-moderno.
Expondo desde logo o aspeto menos positivo do romance, o ritmo e a cadência são, a certa altura, entediantes, com as sucessões de frases fragmentárias a não saberem resolver ou simplesmente atrapalhando-se umas às outras. Curiosamente, tal leva a que um dos aspetos fortes deste romance corresponda a um dos seus aspetos menos positivos. Ainda neste ponto, esta arritmia levou a que pairasse, por vezes, uma capa de pedantismo sobre a narrativa, o que também contribuiu negativamente para o romance no todo. Ultrapassadas estas questões, passemos aos aspetos positivos. A linguagem de José Gardeazabal é fragmentária e reflexiva, imperando o fluxo de consciência. Não é exageradamente descritivo nem desmesuradamente cru, equilibra-se num ponto periclitante entre a frieza científica e a emotividade literária (à semelhança de autores como Gonçalo M. Tavares - de quem Gardeazabal é irmão, curiosamente). A reflexividade poética que distingue a poesia de Gardeazabal nota-se na linguagem empregue na narração, nomeadamente no enfoque na influência do século XX nas vidas contemporâneas. Anders e Eeva são símbolos desta temática, um representando o passado e a sua influência constante no presenta, a outra representando a inevitabilidade do avanço do tempo sobre o passado.
Trata-se este de uma leitura pós-modernista interessante.
Citações:
"Pobreza: navio lento, emigração para um continente novo, por motivos materiais. Chora, Kopf!, pensava Kopf, mas as lágrimas não vinham. Pobreza: ânimo, sentimento, modo de vida, com o tempo uma técnica. Aqueles eram os pobres que ficam. As crises iam e vinham, financeiras, mas aqueles não eram pobres financeiros, eram os pobres bíblicos, os constantes. Pobres permanentes."
"Aproveitar cada minuto livre para escrever às escondidas. Porque dizemos cada minuto livre e não cada hora, cada segundo, quando falamos de escrever às escondidas? Kopf queria fazer ouvir a sua voz de autor. Finalizar um livro sobre toda a humanidade, curto, e outro sobre o interminável sofrimento humano, dois livros curtos. Aceitar a contaminação do real, ouvira isto."
"O tempo das fábricas passou, o tempo da moral laica, das mortandades. Passou a fé elétrica na energia, nos melhoramentos, a fé dos matadouros. A televisão, os livros infantis, coloridos, os fins cinematográficos, as viagens e os roubos intercontinentais, todos passaram. Os nossos movimentos resumem-se agora a uma festa violenta onde os melhores animais se aniquilam organizados por tribos, na floresta, ferozmente desanimados pelo desaparecimento dos antigos deuses."
Pontuação: 6.7/10
Gonçalo Martins de Matos
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