sábado, 24 de dezembro de 2016

"O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde", de Robert Louis Stevenson

   O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde é uma das histórias mais conhecidas e uma das minhas preferidas na literatura. Trata-se de um dos livros mais emblemáticos de um autor marcante na literatura de língua inglesa, sendo ainda nos dias de hoje admirado e estudado pela sua inovadora criatividade no tratamento de certos temas. Trata-se de um dos romances góticos mais conhecidos e é considerado por muitos (entre os quais, o mestre do romance gótico atual, Stephen King) como um dos clássicos do género. A sua influência foi tão vincada que a expressão "Jekyll and Hyde" faz parte da língua inglesa como designação precisamente da duplicidade moral de uma pessoa. 
   A história divide-se em três momentos. O primeiro, que é composto pela maior parte da obra, é o relato das indagações do advogado John Utterson sobre a relação sombria entre um terrível senhor chamado Edward Hyde e o seu amigo Henry Jekyll. O segundo momento consiste numa carta que o amigo de Utterson e Jekyll, Dr. Hastie Lanyon, a relatar a sua parte dos estranhos acontecimentos que rodeiam Jekyll e Hyde. O terceiro e último momento consiste na confissão de Henry Jekyll da sua ligação a essa criatura maligna que é Edward Hyde, ligação essa que, por ser tão famosa a história, todos sabemos tratar-se de uma fórmula que transforma quem a toma, trazendo ao de cima o seu lado mais maligno e os seus impulsos mais primitivos. Entre o primeiro e os restantes momentos, vários acontecimentos pontuais sucedem-se e são deixados por explicar de forma a que tudo seja elucidado mais para a frente, terminando a história num desenlace tenebroso e misterioso.
   Todo o romance transpira um ambiente sufocante e tenso, sempre pairando a ideia de nevoeiro, de enublado. Por todo o romance há pequenas insinuações à duplicidade, que passam despercebidas após uma primeira leitura. Referências ao dia e à noite, ou ao sol e ao nevoeiro. Até a casa onde habita Hyde se encontra nas traseiras da casa onde habita Jekyll, numa propositada alusão do autor à personalidade oculta do doutor. A razão principal que me leva a acarinhar esta história é o tema da duplicidade da alma humana, o lado bom e moralmente aceitável e o lado mau e primitivo nas suas ações. Essa multiplicidade de personalidades sempre me fascinou e a história que melhor retrata essa dualidade apenas podia ser muito apreciada por mim. O personagem que claramente mais me fascina é o Dr. Jekyll/Mr. Hyde. É ele o centro de todo o romance, é ele que movimenta o desenrolar do enredo. Henry Jekyll, um homem ético e austero nas suas emoções, crê ter desbloqueado a chave da alma humana, crê que a sua visão bipartida da alma humana é a correta, e decide fazer experiências para testar a sua tese. Dessas experiências nasce Edward Hyde, um homem de aspeto sombrio e que "passa uma a ideia de deformidade", que provoca calafrios em todos os que consigo contactam, imoral e composto apenas de pensamentos primitivos e eticamente malignos. E a pertir das primeiras experiências, Edward Hyde vai-se intrometendo aos poucos na vida de Jekyll até atingir um ponto sem retorno. A dualidade inerente da alma humana, a multiplicidade de personalidades, como disse, são temas que me fascinam profundamente, e esta visão peculiar dessa duplicidade não merece mais do que ser aplaudida e, mais importante, lida. 
   Portanto, trata-se de uma obra brilhante que deve ser lida e apreciada por todos os fascinados por boa literatura e pela questão da alma humana.

Citações:
"O homem levou o copo à boca e bebeu dum trago. Soltou um grito. Cambaleou, vacilou, agarrou-se à mesa, de olhos esgazeados, respirando com a boca escancarada. Mas, enquanto eu olhava, principiou..., assim me quis parecer..., a transformar-se, a inchar, a cara tornava-se negra, as feições como que dissolvendo-se e alterando-se." 
"Desde longa data, ainda antes que as minhas descobertas científicas começassem a sugerir-me a simples possibilidade de semelhante milagre, aprendi a admitir e a saborear, como uma fantasia deliciosa, o pensamento da separação daqueles dois elementos. Se cada um, dizia eu comigo, pudesse habitar numa entidade diferente, a vida libertar-se-ia de tudo o que é intolerável. O mau poderia seguir o seu destino, livre das aspirações e remorsos do seu irmão gémeo, o bom; e este caminharia resolutamente, cheio de segurança, na senda da virtude, fazendo o bem em que tanto se compraz, sem ficar exposto à desonra e à penitência engendradas pelo perverso."


Pontuação: 10/10


Gonçalo Martins de Matos

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

"A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça", de Washington Irving

   A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça é uma das histórias universalmente mais conhecidas pelos leitores, sendo o seu autor, Washington Irving, considerado, com esta história, como o introdutor do conto como um género literário próprio. Este conto consiste, precisamente, numa das mais importantes obras da literatura americana, sendo apreciada e estudada até aos dias de hoje. Washington Irving é tido como o primeiro grande escritor americano e foi graças a si que a literatura americana pôde afirmar-se perante o mundo. 
   O conto relata a história de Ichabod Crane, um mestre-escola que desempenhava a missão de instruir todas as crianças de Sleepy Hollow, sendo um professor rigoroso, mas justo e compreensivo. O enredo consiste na competição entre Ichabod Crane e Brom Bones pela mão de Katrina Van Tassel, filha única do rico fazendeiro Baltus Van Tassel. Uma noite, após um serão em casa dos Van Tassel, Crane, a caminho de casa, encontra-se com o Cavaleiro sem Cabeça, o fantasma de um cavaleiro hessiano da altura da Revolução Americana, que se dizia percorrer o Vale em busca da sua cabeça perdida. Crane tenta fugir, mas o Cavaleiro persegue-o, acabando por o apanhar na Ponte da Igreja de Sleepy Hollow, onde fica selado o destino infeliz de Ichabod Crane. No dia seguinte os habitantes procuram saber o que se terá passado com o mestre-escola, concluindo no final que o infeliz foi vítima do Cavaleiro. 
   Como se trata de uma história tão conhecida, desta vez não tive tantos cuidados com as revelações de enredo, mas esses cuidados são irrelevantes porque o que fascina os leitores nesta história é a escrita, as descrições das paisagens americanas oitocentistas e os seus personagens. Trata-se de uma história muitíssimo equilibrada, não exagerando nas descrições e sendo direta na narração. Para mim, as personagens mais fascinantes do conto são o protagonista e o antagonista, precisamente. Ichabod Crane é descrito como um homem alto, magro e educado, mas extremamente suscetível e supersticioso. A sua demanda para conquistar a mão de Katrina Van Tassel vê-se gorada, mas esse é o aspeto mais irrelevante de toda a construção do personagem, sendo o aspeto mais fascinante o seu empenho em instruir todas as crianças de Sleepy Hollow. O Cavaleiro sem Cabeça é para mim a personagem mais intrigante deste conto e uma das personagens sobrenaturais mais fascinantes da literatura. O Cavaleiro é um fantasma que assombra o campo de batalha onde pereceu, procurando incansavelmente a sua cabeça. A história deixa em aberto a natureza do fantasma, se seria realmente uma assombração ou se seria na realidade o rival de Crane, Brom Bones, disfarçando, sendo que a narrativa aponta mais para esta segunda opção.
   Em suma, trata-se de uma obra fascinante e realmente bem composta, sendo bastante inovadora na literatura americana da época, influenciando os autores que se seguiram, que deve ser lida e apreciada pelos amantes de uma boa história. 

Citações:
"Certo é que o lugar ainda continua sob a influência de algum poder mágico que lançou um feitiço sobre as mentes daquela boa gente, levando-os a andar num devaneio contínuo. São dados a todos os géneros de crenças maravilhosas; estão sujeitos a transes e visões, e é frequente verem coisas estranhas e ouvirem música e vozes no ar."
"Havia um contágio no próprio ar que soprava daquela região assombrada; soltava uma atmosfera de sonhos e fantasias que infetavam toda a terra."


Pontuação: 9.8/10


Gonçalo Martins de Matos

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

"O Livro dos Homens sem Luz", de João Tordo

   Quando nos preparamos para ler o primeiro livro de um escritor devemos sempre ter em conta que, por mais que gostemos do autor, o livro pode dececionar-nos ou deliciar-nos, uma vez que se trata da pedra sobre a qual o autor ergue o resto da sua carreira. Um autor nunca deve ser imediatamente julgado pelo seu primeiro livro porque o primeiro livro é sempre o ponto de partida para a sua evolução literária. No entanto, o primeiro romance de João Tordo não dececiona. O Livro dos Homens sem Luz é construído com precisão, minúcia e coerência interna, sendo composto por várias histórias que se ligam entre si e por personagens tão peculiares mas que apelam a tanta gente. Trata-se sem dúvida de uma obra já bastante madura, tendo em conta que é o primeiro romance do autor. As características principais que marcam os livros subsequentes de João Tordo encontram-se todas neste seu primeiro romance. 
   O romance passa-se maioritariamente em Londres e divide-se em quatro partes, em quatro histórias diferentes que se interligam e que caminham para um desenlace comum e inevitável. Muito brevemente exporei a história de cada parte. Na primeira parte seguimos o quotidiano do narrador, chamado David, cuja perceção do mundo que o rodeia passa de uma apatia imutável para a sensação de inevitabilidade e de que a sua vida não lhe pertence, de que não é comandada por si, após uma sequência inesperada e bizarra de acontecimentos. Na segunda parte conhecemos um casal, Joseph e Helena, que ficam soterrados na cave da sua casa após um ataque alemão a Londres. A narração expõe o que se passou na cave e de como Helena se tornou numa pessoa fria e Joseph numa besta, nem homem, nem animal, completamente desmoronado psicologicamente. A terceira parte relata a constante insónia e dificuldade de interpretação da realidade ou irrealidade do mundo que o rodeia de um estudante que trabalha como arrumador de livros em Londres. A quarta história relata o internamento e estudo de Joseph por parte do hospital de Brighton e do médico por este convidado, Robert Burke. As histórias partilham aspetos em comum que lhes atribui um caráter de veracidade e de realidade, apesar do seu teor insólito. Todas as narrativas são labirínticas e claustrofóbicas, damos por nós a interromper a leitura para respirar e certificar-nos de que ainda nos encontramos no espaço físico onde iniciamos a leitura.
   O autor faz um uso cuidado da língua e estica até aos limites a perceção que o leitor tem da realidade. Há, para mim, três aspetos fundamentais que ligam as histórias presentes no romance. O primeiro é a figura enigmática de Roy, que é mencionado em todas as histórias menos na de Joseph e Helena e que faz a sua aparição na história final. Roy começa e termina o romance como um personagem omnipresente, que controla a vida de todos os que consigo contactam. O segundo aspeto é a referência a três palavras-chave que atravessam o romance, insónia, fantasma e escuridão. Estas três palavras são sempre utilizadas pelos personagens quer a descrever as suas existências, quer a descrever a realidade onde se encontram inseridos. O terceiro é a presença de um cobertor laranja, que se encontra sempre presente no espaço físico das personagens. O narrador da primeira história é o dono do cobertor laranja, sendo que depois o passa para o jovem estudante, sendo-nos depois referido que o cobertor laranja era de Roy aquando da sua estadia no hospital. Cada história funciona como conclusão da anterior seguindo um esquema cruzado: a terceira conclui o que foi narrado na primeira e a quarta conclui o que foi narrado na segunda. A insónia e a escuridão oprimem a existência fantasmagórica dos personagens deste romance, sendo que aqui o nome fantasma representa não uma alma penada que vagueia a terra, mas uma pessoa real, de carne e osso, mas cuja existência passa despercebida e se processa de maneira monotonamente igual. 
   Concluo, portanto, afirmando de que me entretive imenso com este romance de João Tordo. Neste romance estão presentes as várias características que marcariam os romances seguintes, como as histórias insólitas, os personagens peculiares e a presença de personagens de umas histórias noutras histórias. Trata-se de boa literatura portuguesa e de um romance que aconselho que seja lido por todos os que apreciam uma narrativa com qualidade.

Citações:
"Escrevi as estórias daqueles que conheci durante os meus últimos tempos no mundo, e de outros que encontrei dentro de mim, escondidos, à espera de uma porta que se abrisse no escuro, estórias que irão ler nas páginas deste livro."
"Os sonhos começaram pouco tempo depois, regulares e intensos, como se um fantasma regressasse à casa que decidira assombrar, mas da qual fora expulso."
"Vi os sacos de lixo derrubados à porta de um prédio; e vi um bando de pássaros baterem as asas como livros folheados, fugindo à tempestade que se anunciava. A chuva começou a cair, oblíqua e indiferente, sobre toda a cidade, e um grupo de folhas ergueu-se no ar, conversando, murmurando segredos que nunca serão acessíveis aos homens."


Pontuação: 8.9/10


Gonçalo Martins de Matos

domingo, 20 de novembro de 2016

"As Naus", de António Lobo Antunes

   António Lobo Antunes sempre foi visto pela crítica literária como um escritor fora da caixa, um escritor que sempre seguiu uma via alternativa e pessoal face às correntes literárias portuguesas. Quando lemos um livro de Lobo Antunes sabemos que iremos encontrar uma visão única e pessoal sobre a sociedade e uma voz desafiadora das convenções e dogmas das letras portuguesas. Neste As Naus encontramos em grande medida essa visão única da sociedade portuguesa e essa voz desafiadora da corrente, quer pelos temas abordados, quer pela experimentação narrativa. Lobo Antunes e José Saramago são muitas vezes citados como os grandes prosadores portugueses do início do século XXI, e penso que essa classificação é justamente atribuída, visto que ambos fizeram esforços no sentido de renovar a literatura portuguesa, abrindo caminhos novos por onde a geração seguinte poderia (e fá-lo, efetivamente) explorar. 
   O romance, nos seus primeiros capítulos, faz como que uma espécie de introdução dos seus personagens e das suas peripécias passadas. Que personagens? Este é um dos aspetos mais interessantes do romance: os personagens são figuras bem conhecidas dos descobrimentos portugueses. Portanto, a narração incidirá sobre as peripécias passadas e inquietações presentes de Francisco Xavier, Pedro Álvares Cabral, Luís de Camões, Diogo Cão, Manoel de Sousa de Sepúlveda, Fernão Mendes Pinto, Vasco da Gama, Garcia de Orta e, entre outros, um casal anónimo. Continuando, o romance inicia-se com a apresentação dos personagens e dos seus regressos, quer no passado, quer no momento da narração, das colónias a Lisboa (grafada no romance como "Lixboa"). Percorrendo as inquietações dos seus personagens e as suas histórias pessoais atribuladas, fantásticas e nostálgicas, o romance não tem um rumo certo, não tem um fio condutor para o qual a história caminhe, sendo as descrições dos universos pessoais dos personagens o que acaba por criar a realidade da narração. Explorando a vida difícil e os caminhos obscuros que são obrigados a percorrer após o seu regresso ao país, este romance reescreve a história dessas grandes figuras portuguesas de um modo mais satírico e menos heróico, desafiando a história embelezada de Portugal com a crua realidade do país.
   Os tempos e as vozes confundem-se no romance. No momento da narração ocorrem simultaneamente a partida dos navegadores em busca do Mundo Novo e o regresso a Portugal dos retornados no pós-25 de abril. Os navegadores deambulam pelas ruas, abandonados pelo mesmo povo que os apelidou de heróis aquando dos seus grandes feitos. Essa é outra das características deste romance que me fascinou, a realidade nova que é criada pelo narrador quando mistura os problemas dos retornados e da sociedade portuguesa do século XX com os problemas dos navegadores e da sociedade portuguesa do século XV. O velho e o novo convivem numa harmonia desarmoniosa, o passado sempre a intrometer-se no presente e o futuro incerto que sempre pesa na atualidade, a metáfora de excelência para descrever Portugal. Outro aspeto que torna a leitura deste romance tão interessante como confusa se não se estiver atento é a confusão de vozes. A história é narrada na terceira pessoa, mas também é na primeira pessoa. Num parágrafo é ele, no seguinte é eu. Por vezes a frase muda de eles para nós a meio, o que pode parecer confuso mas na realidade é apenas diferente. Esta confusão de tempos e de vozes criam a atmosfera labiríntica que caracteriza os romances de Lobo Antunes.
   Sem nada mais a acrescentar, resta-me recomendar vivamente a leitura deste romance a qualquer apreciador de trabalho literário ousado, imaginativo e diferente.

Citações:
"Agora o casal do retrato tornara-se numa aguarela de iodo e nós em múmias sem préstimo espantadas diante das dezenas de garrafinhas do bar do apartamento, expostas em prateleiras de mogno na imobilidade inquietante das peças de xadrez."
"Às cinco e meia, quando a primeira claridade lutava com os candeeiros da rua e os vice-reis, derrubando copos, discutiam a estratégia de Trafalgar, o padre António Vieira, sempre de cachecol, expulso de todos os cabarés de Lixboa, procedia a uma entrada imponente discursando os seus sermões de ébrio, até tombar num sofá, entre duas negras, a guinchar as sentenças do profeta Elias numa veemência missionária."
"De modo que fui moendo episódios heróicos, parando a tomar notas nas retrosarias iluminadas, até desembocar na praça da minha estátua, mãe, com centenas de pombos adormecidos nas varandas em atitudes de loiça e cães que alçavam a pata no pedestal da minha glória"


Pontuação: 9.9/10


Desafiantes leituras,
Gonçalo M. Matos

sábado, 1 de outubro de 2016

"A Metamorfose", de Franz Kafka

   A Metamorfose consiste numa das grandes obras da literatura do século XX, e quando se trata de iniciar a leitura de grandes obras, é normal ficar-se expectante quanto ao que irá ser lido: será que vamos gostar? Esta obra é uma obra pequena, com pouco mais de 90 páginas, lê-se bem. Mas, felizmente, a qualidade não é determinada pela quantidade de frases que se escrevem, mas pelo conteúdo que cada parágrafo comporta. É o que torna esta pequena novela tão importante e marcante na literatura mundial. Não só é a primeira vez que um escritor recorre ao uso do absurdo como mecanismo literário como é um relato pleno de pensamento e conteúdo. 
   A novela começa numa manhã em que o protagonista acorda depois de uma noite mal dormida para descobrir que se transformara num gigantesco inseto. Este é um dos inícios mais famosos da literatura ocidental, e é interessante constatar que se trata de uma ideia até bastante simples mas que apenas poderia ter sido elaborada por Kafka. Normalmente verifico isto quando se trata de um autor modernista. Mas, prosseguindo com a história, que parte do ponto referido, é-nos narrada a angústia de Gregor Samsa, o protagonista, enquanto vai perdendo aos poucos as suas características humanas, e a reação da sua família. A história coloca uma questão interessante aos leitores, servindo-se do absurdo da situação: o que faríamos se nos acontecesse uma desgraça semelhante? Como reagiríamos se um membro da nossa família sofresse de uma desgraça parecida? São estas questões essenciais que atravessam esta obra. 
   Qual seria a nossa reação se nos apercebêssemos da nossa impotência perante o absurdo da vida? Esta última questão é uma constante transversal à obra de Kafka, uma vez que os seus escritos partem sempre de pontos de partida improváveis ou até impossíveis e daí evoluem filosoficamente para o absurdo de se estar vivo. Porque nada é mais absurdo do que a vida. Outra questão que esta obra levanta de forma pertinente é: o que será que faz de nós humanos? Será o nosso aspeto? O nosso comportamento? Os nossos gostos, a nossa sensibilidade? Esta novela tem um estilo de escrita muito acessível, contraposta à complexidade temática e filosófica da narrativa, o que resulta num equilíbrio literário muito bem conseguido, sem que o autor perca por um momento o domínio da prosa. A análise perspicaz que o autor faz ao comportamento humano é também muito bem conseguida, uma vez que seria exatamente assim que reagiriam os seres humanos se algum dia algo parecido se sucedesse. O medo é uma das forças motrizes principais do homem, que reage instintivamente a tudo que seja diferente do que está habituado. Talvez um dos pontos mais bem executados seja a lenta e gradual desumanização de Gregor Samsa à medida que o tempo avança. Gregor dá por si em certo ponto a questionar se continua a ser humano ou se a sua humanidade desapareceu com o seu aspeto humano. Ainda sobre humanidade, ou falta desta, A obra também se debruça sobre a mesquinhez de uma sociedade opressora que não se importa minimamente com os problemas dos outros, mesmo que esses problemas sejam gravíssimos com o é o caso dos Samsa. É famosa a história de como o amigo de Kafka, Max Brod, desrespeitou o último desejo deste de que destruíssem a sua obra após a sua morte. E, visto que Brod conseguiu trazer para a prosperidade obras como esta, valeu bem a pena o pequeno desrespeito que este teve de fazer. 
   Resta-me então recomendar fervorosamente a leitura desta novela tão bem pensada e executada, desta pérola da efabulação humana. 

Citações:
"Certa manhã, ao acordar após sonhos agitados, Gregor Samsa viu-se na sua cama, metamorfoseado num monstruoso inseto."
"Ali ficou a noite inteira, em parte passada num meio sono do qual a fome de vez em quando o fazia acordar, a par com a agitação que as preocupações e vagas esperanças lhe provocavam, mas que o levavam a concluir pela necessidade de provisoriamente se manter calmo e, através de paciência e de solicitude extremas, tornar suportáveis à sua família os contratempos que o seu estado atual lhes causava."
"Apesar de tudo, a irmã de Gregor tocava tão bem! Com a cabeça ligeiramente inclinada, para o lado, o seu olhar seguia a partitura com uma expressão triste. Gregor avançou um pouco mais, mantendo a cabeça rente ao chão a fim de eventualmente cruzar o seu olhar com o dela. Seria mesmo um animal, se a música o comovia àquele ponto?"


Pontuação: 9.9/10


Maravilhosas leituras,
Gonçalo M. Matos

sábado, 24 de setembro de 2016

"Balada da Praia dos Cães", de José Cardoso Pires

   Quando nos preparamos para ler José Cardoso Pires, ocorre-nos sempre o seguinte: que estaremos a ler uma obra diferente. José Cardoso Pires é dos autores do século XX que mais marcou a sua dissonância em relação à forma de escrever um romance, e parte da importância da sua obra no geral é essa demarcação que o autor faz da escrita vigente na sua época. Quando nos preparamos para ler um romance como Balada da Praia dos Cães, temos sempre consciência de que iremos ler algo diferente do que estamos habituados, o que pode resultar numa surpresa agradável ou desagradável, dependendo dos hábitos e gostos pessoais de leitura de cada um. No meu caso, nem me aqueceu nem me arrefeceu. Trata-se de uma grande obra de um grande autor, mas houve vários aspetos que me foram deixando um pouco de pé atrás em relação a este livro. Já lá iremos. 
   A história relata a investigação levada a cabo pela Polícia Judiciária após a descoberta de um cadáver na Praia do Mastro em abril de 1960, em plena ditadura salazarista. A história é basicamente esta. Qualquer acrescento que eu faça a este pequeno sumário será uma revelação do enredo, coisa que eu não desejo para os meus leitores. Posto isto, para não deixar simplesmente este mote no ar, revelo um pouco mais da trama. A primeira parte da história retrata simultaneamente a investigação que Elias vai fazendo ao longo dos seus dias, mentalmente, e o interrogatório a uma das suspeitas, Filomena, abreviada como Mena, sendo pormenores sobre o caso revelados ao longo desta primeira parte, em retrospetiva. A segunda parte da história dá conta da reconstituição da noite em que a vítima, major Dantas Castro, foi assassinada, já com todos os suspeitos sob custódia da PJ. 
   Como já referi, o livro está dividido em duas partes, a investigação e a reconstituição, sendo que a primeira se divide em seis capítulos. A história é narrada numa mistura peculiar de presente e de retrospetiva, uma vez que a narração dos eventos é interrompida de vez em quando para introduzir informações adicionais que são fornecidas pelos autos do processo, ou seja, pelos textos legais finais e definitivos, que não poderiam existir aquando da investigação. Esta indefinição temporal da narração é peculiar a José Cardoso Pires, uma vez que ele se revela um narrador-autor, o homem que escreve é também o homem que narra. Esta utilização específica de narração cria um efeito de ficção real, é como se o caso se tivesse passado realmente no nosso mundo, e não só nas páginas do romance. No entanto, esta forma de narração distraiu-me por vezes, e vi-me obrigado a ter de repetir alguns parágrafos para retomar balanço na leitura. Regressando à linha fina que separa a realidade da ficção, obviamente essa falta de fronteira é intencional, uma vez que o autor, com este romance, demonstra, a meu ver, duas intenções: a de narrar como era a vida em Portugal durante o regime salazarista e o de transmitir uma ideia de possibilidade dos eventos narrados. O autor quis transmitir que os eventos que narrou saíram da sua imaginação, mas isso não quer dizer que não tenham acontecido, com outros intervenientes. As duras críticas à PIDE não escapam ao leitor, também. O tipo de escrita é sóbrio e direto, sem grandes floreados e de teor oral, como se o autor estivesse verdadeiramente a falar connosco presencialmente.
   Concluindo, não foi uma leitura que eu possa dizer que tenha apreciado, mas não deixa de ser um romance inovador, focado e magistralmente composto, como são a generalidade das obras de José Cardoso Pires. Portanto, recomendo a leitura do romance, quer pelo estilo de escrita sóbrio, quer pela crítica inerente ao regime salazarista.

Citações:
"Contempla-o sentado à mesa, tendo à mão esquerda o lagarto Lizardo no seu deserto vidrado e à frente a noite em janela de infinito. Aprofunda a foto em silêncio."
"Tendo em vistas o advogado dos brilhos, salienta que o homo politicus é um animal lixado de trabalhar porque tem padrinhos no céu e afilhados no inferno, para não falarmos no purgatório que é onde se junta a maralha dos conspiradores em part-time."
"Depenou-a em poucas bicadas, foi fácil, trigo limpo, e agora, todo sozinho, soma as penas que ficaram a flutuar depois dela, é assim que a abrange melhor. A experiência diz-lhe que o investigar é como nos filmes, só depois do écran, só depois do contado e olhado, é que, repetindo e ligando, as fitas se veem no todo e por dentro."


Pontuação: 5.8/10


Agradáveis leituras,
Gonçalo M. Matos

domingo, 28 de agosto de 2016

"Jesusalém", de Mia Couto

   Ler Mia Couto é estar na presença de uma obra garantidamente bela, poética e intrigante. Este livro, considerado como um dos melhores do autor, não se desvia dessa beleza poética que tão bem caracteriza a sua obra. A escrita de Mia Couto é esteticamente sublime e os temas que aborda são deliciosamente poéticos. Ler uma obra deste autor moçambicano é enriquecedor e um verdadeiro deleite. O autor tem uma forma de escrever tão característica, sendo até a sua mais marcante contribuição para a língua portuguesa a criação de neologismos. Mas nesta obra não se nota essa característica, tirando um ou dois espalhados pelo livro. O que mais marca na leitura de Jesusalém, na minha opinião, é o seu desarmante lirismo. Desarmante porque estamos perante o que parece ser uma utopia, sítio onde não contamos encontrar algo de muito poético. Por essa razão, somos surpreendidos pela doce poesia em prosa que o autor escreve. Muitos são os autores que escrevem muito bem o português, que o levam aos seus limites, mas apenas um punhado destes consegue um tão grande lirismo e significado no que escreve recorrendo a um português simples e acessível.
   A história inicia-se com a apresentação do narrador, Mwanito, "afinador de silêncios", como ele próprio se introduz. A primeira parte do livro é a descrição de como era a vida numa coutada para onde se haviam mudado ele, o seu pai, Silvestre Vitalício, o seu irmão, Ntunzi, e o ajudante do seu pai, o militar Zacaria Kalash. Jesusalém é o nome da coutada onde estes habitam, porque certo dia, após a morte da sua mulher, Dordalma, Silvestre pegara nos seus filhos e mudara-se para um sítio onde não existia tempo nem humanidade, um sítio onde mais ninguém para além deles existia. Após a apresentação das personagens que habitam Jesusalém (a que o narrador denominou de humanidade), são-nos contados vários e pontuais eventos que trazem de volta a humanidade e o tempo a Jesusalém, a narração sempre evoluindo até atingir um ponto sem retorno, onde tudo muda, não podendo voltar ao que era. 
   O lirismo da escrita de Mia Couto é apaixonante. A sua escrita pega-nos às suas páginas, ficamos emocionalmente colados à sua poesia autêntica. É uma autêntica pérola de palavras, uma pedra preciosa de emoções. É assim que descrevo a escrita de Mia Couto, uma jóia. Neste livro não estão presentes os neologismos que caracterizam a obra de Mia Couto, e que lhe valeram o Prémio Camões pela inestimável contribuição para a língua portuguesa, aparte um ou outro pontualmente utilizados (o que me marcou mais foi a palavra "desconsegui"). As alianças improváveis que o autor faz entre um nome e um adjetivo para criar uma ideia de união e desunião simultânea, aliadas ao ocasional neologismo, deixavam-me sempre um sorriso na boca quando os detetava. É uma escrita lírica, poética, preciosa. A língua portuguesa deve muito a Mia Couto, mesmo que não utilizemos os neologismos por ele criados quotidianamente. Quanto mais não seja, deve-lhe o facto de evoluir, de se misturar o português tradicional com o dialeto moçambicano, criando uma língua lusófona, não só de Portugal, mas de todos os países da lusofonia. 
   Em suma, a leitura deste livro é essencial para quem quiser contactar com o que de melhor se escreve em língua portuguesa. É uma obra poética em prosa, para ser apreciada. 

Citações:
"Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez."
"Deslumbrar, como manda a palavra, deveria ser cegar, retirar a luz. E afinal era agora um ofuscamento que eu pretendia. Essa alucinação que uma vez sentira, eu sabia, era viciante como morfina. O amor é uma morfina. Podia ser comerciado em embalagens sob o nome: Amorfina."
"- Engraçado: eu esperava que Deus viesse a Jesusalém. Afinal, quem vai chegar são estrangeiros privados.
- É assim, o mundo...
- Quem sabe os estrangeiros privados são os novos deuses?
- Quem sabe?"


Pontuação: 10/10


Poéticas leituras,
Gonçalo M. Matos

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

"A Morte de Ivan Ilitch", de Liev Tolstoi

   Liev Tolstoi é um dos gigantes da literatura mundial, sendo autor de obras de peso nesta. Por isso, a melhor maneira de começar por um autor tão intemporal e universal como Tolstoi é com a sua pequena novela A Morte de Ivan Ilitch, considerada como a melhor novela da história da literatura, ou a melhor novela sobre a temática da morte. Uma obra-prima que reflete sobre a vida e a morte, e o papel do ser humano no meio destas, sobre as virtudes do ser humano e a grande mentira que é viver. 
   A história começa com a notícia da morte de Ivan Ilitch, o que nos transmite já a pouca importância que a narração tem, sendo a reflexão o que compõe maioritariamente a obra. Os seus amigos e familiares vão a casa deste prestar a sua homenagem. Após esta pequena introdução, o narrador descreve brevemente a vida de Ivan Ilitch, desde a infância à data do seu casamento. Após uma mudança de cidade, Ivan Ilitch vive feliz e realizado, mas por pouco tempo. Quando começa a sentir uma dor terrível e um sabor estranho na boca, não obstante os conselhos dos médicos e as palavras dos familiares, principalmente da sua mulher, Praskovia Fiodorovna, começa a entrar em depressão, atormentando-se se seriam as suas dores sinais da morte que se avizinha. Cada vez, mais deprimido e frágil, Ivan Ilitch apercebe-se de várias coisas sobre a vida e a morte, chegando a uma desconcertante conclusão sobre a vida que levou e sobre a vida que todos levam. 
   A novela é uma grande reflexão do protagonista sobre a justiça do que lhe aconteceu, sobre a sua vida, sobre as vidas dos outros e sobre a morte. É uma obra muito metafísica e existencialista, questionando sobre a morte, a vida e o papel do ser humano no meio destas, a sua fragilidade e impotência perante a grandiosidade da existência e a imprevisibilidade da existência. É uma obra que reflete sobre estes temas sem nos cansar, não somos sobrecarregados com filosofia em demasia nem nos desiludimos com a falta de história, tem ambos os elementos em equilíbrio. E leva-nos também a refletir sobre a nossa existência, criando-nos uma empatia com a aflição e o desespero do protagonista. 
   Portanto, aconselho que esta novela seja lida e apreciada. Todos nós já refletimos sobre a vida, a morte e as nossas vidas, e esta obra acrescenta-nos mais pontos de vista sobre os quais refletir. É uma novela intemporal por um génio universal.

Citações:
"Sim, a vida estava aí e vai-se embora, vai-se embora e não a posso segurar. Sim, para que me ando eu a enganar? Não é acaso bem evidente a todos, exceto a mim, que a morte mais dia menos dia me catrafila? A questão é só do número de semanas ou de dias que ainda faltam; não é verdade que posso morrer agora mesmo? Vivia na luz e eis-me envolto nas trevas."
"O exemplo de silogismo que lá ensinavam na lógica:«Caio é homem, os homens são mortais, logo Caio é mortal» sempre lhe parecera muito correto com relação a Caio, mas incorretíssimo com relação a si mesmo. Tratava-se de Caio, do homem em geral, e assim muito bem."
"Chorava pensando na sua impotência, na sua horrível soledade, na crueldade dos homens, na crueldade de Deus, na ausência de Deus."


Pontuação: 8/10


Metafísicas leituras,
Gonçalo M. Matos

domingo, 21 de agosto de 2016

"A Queda dum Anjo", de Camilo Castelo Branco

   Há muito tempo que era meu desejo ler este romance de Camilo Castelo Branco, por uma variada quantidade de razões, entre as quais a história. A história de A Queda dum Anjo é uma que é bem conhecida do público português. Camilo Castelo Branco, aprendemos nós nas aulas de português, foi o escritor mais prolífico do Romantismo português, e um grande defensor deste movimento literário. E as marcas que definem uma obra romântica encontram-se todas neste romance, com todos os seus tiques camilianos. Mas o que me leva a referir isto é o facto de aqui já se notar uma metamorfose na literatura e na forma de escrever do autor romântico, nota-se já a vontade que as letras portuguesas sentem de dar um salto em frente e evoluir. Há traços já de um pré-realismo que anseia por se revelar aos seus leitores, sem repudiar todos os seus ingredientes românticos. Sem mais demoras, analisemos a história.
   Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda. Este é o nome do protagonista deste romance, morgado mirandês que nos é apresentado como um exemplo de retidão e de seriedade, sendo um homem estudioso e fiel à sua esposa, D. Teodora de Figueiroa. É conservador e defensor da tradição e dos bons costumes portugueses. Logo no início do romance nos é descrita a sua vida familiar antes de nos informar que Calisto foi eleito pelo círculo de Miranda como deputado, razão pela qual este parte para Lisboa. Chegado à capital, Calisto é surpreendido pela diferença entre a Lisboa descrita pelos seus clássicos e a Lisboa oitocentista em final de século, fervilhando de ideias liberais. Daqui avança a história em crescendo, sempre narrando os dois aspetos basilares desta obra: as paixões e as ideias políticas de Calisto. Não é revelação abusiva do enredo referir que ambas sofrem uma metamorfose radical. O final é tão surpreendente e romântico quanto irónico e mordaz, como apenas Camilo Castelo Branco consegue escrever. 
   Como referi acima, este romance é vincadamente romântico, embora se notem umas pequenas luzes que antecipam a evolução pela qual a literatura portuguesa passaria mais tarde. Todas as características românticas e camilianas se encontram presentes, como os grandes protagonistas, a tragédia do Destino, os amores, o coração versus a cabeça, a metamorfose da alma, as atribulações do sentimento. Mas notam-se também algumas características realistas, como a crítica social e a paródia dos costumes, estas duas quase sempre presentes nas obras deste autor. Estas características realistas não são tanto consideradas pelos estudiosos, a meu ver, por serem marcas da personalidade do próprio autor. Camilo Castelo Branco foi muito irónico e mordaz durante a sua vida, características essas que sempre imprimiu nas suas obras, numas mais expressamente que noutras. Por todo o romance observamos uma crítica feroz aos políticos portugueses, à futilidade dos seus discursos e à prossecução apenas dos seus interesses. Camilo Castelo Branco é considerado justamente como um dos melhores escritores da língua portuguesa, e este romance relembrou-me as razões para tal. Camilo mexe-se pela língua portuguesa como um peixe na água, brinca com as palavras, tem um à-vontade na sua língua que lhe permite conjugar as palavras de maneiras tão brilhantes quanto esteticamente perfeitas. Ler Camilo Castelo Branco é aprender a escrever bom português decentemente. 
   Dito isto, recomendo fortemente que este romance seja lido. Camilo Castelo Branco é dos nossos melhores escritores, e este romance, como outros, confirma-o. É um livro para ser lido, apreciado e relembrado. 

Citações:
"Paupertas impulit audax. Isto que o Horácio faminto dizia de si, acomodam-no os regedores da coisa pública aos professores de primeiras letras; porém, outros muitos versos do Horácio farto, esses, tomam-nos eles para seu uso."
"Tenho aqui à minha beira o demónio da verdade, inseparável do historiador sincero, o demónio da verdade que não consentiu ao Sr. Alexandre Herculano dizer que Afonso Henriques viu coisas extraordinárias no céu do campo de Ourique, e a mim me não deixa dizer que Calisto Elói não adulterou em pensamento!"
"- Meu amigo, abra os olhos, que não há martirológio para as toupeiras. As ideias não se formam na cabeça do homem; voejam na atmosfera, respiram-se no ar, bebem-se na água, coam-se no sangue, entram nas moléculas, e refundem, reformam e renovam a compleição do homem."


Pontuação: 9.8/10


Deliciosas leituras,
Gonçalo M. Matos

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

"Memória de Elefante", de António Lobo Antunes

   Quando decidi ler este livro, estava de pé atrás. De pé atrás porque já o tinha tentado ler antes e fiquei na altura desiludido e desconfiado da escrita de Lobo Antunes. Mas o tempo é algo curioso. É a importância das segundas oportunidades, eu nunca achei nada de especial a obra de Lobo Antunes até decidir dar uma segunda olhadela, fazer uma segunda análise, desta vez com maior maturidade literária. E não fiquei desiludido desta vez. Compreendo agora o porquê de Lobo Antunes ser considerado um dos gigantes da literatura portuguesa contemporânea, a sua influência nos autores que o seguiram é notável. E, sendo este o primeiro romance publicado pelo autor, revelou uma incrível maturidade literária já nessa altura que apenas se desenvolveu. 
   A história deste livro narra o quotidiano aborrecido e desencantado do protagonista, um psiquiatra, que se limita a existir, a ir vivendo, uma vez que se separou da mulher. Verdadeiramente, a história pouco mais é que isto. Em todos os momentos do seu dia, o protagonista pensa na sua vida, em como a sua infância revelava já uma tendência para a "desgraça", como a sua personalidade sempre afastara os que o rodeavam, em como o seu casamento apenas descurou por falta de vontade sua, em como viveu dias terríveis na guerra do ultramar. Estes são os pensamentos-chave que acompanham o protagonista ao longo das suas atividades rotineiras. Movendo-se entre consultas, acompanhamento terapêutico e a negação dos seus problemas, o psiquiatra assim vais vivendo, sempre amargamente, sempre pensando na sua mulher e nas suas filhas, de quem desistiu por pura falta de vontade e cobardia, segundo as suas próprias conclusões.
   A história é narrada na terceira pessoa, o que pode indicar que este romance se trata de uma expiação das questões do próprio Lobo Antunes. Aliás, a presença do autor no romance é bastante explícita. Um psiquiatra recém-divorciado que sempre teve um gosto especial pelas letras é uma descrição que se poderia fazer do autor, tratando-se também da descrição do protagonista. É como se o autor dissesse a si próprio o que fez de mal, porque agiu como agiu, e se punisse pelas falhas que cometeu e poderia muito bem ter evitado. A estrutura deste romance apresenta já uma ou outra característica distintiva da obra de Lobo Antunes, como por exemplo o fluxo de consciência, o uso de uma ou outra palavra estrangeira, um ocasional neologismo, uns indícios de anacoluto, entre outras. O que torna a leitura de Lobo Antunes curiosa e interessante é as comparações e associações de ideias tão curiosas quanto ligeiramente aleatórias, ligando conceitos que aparentemente não se uniam, mas que resultam tão bem, uma vez associados. Já neste romance se observa a escrita labiríntica e densa que marca a obra deste autor.
   Recomendo, portanto, o livro. É uma obra que marca o início de uma renovação no romance português e que inspirou a geração que se seguiu. Apesar de exigir a nossa atenção, é um romance que se lê facilmente e que possui uma escrita acessível. Um livro de introdução ao autor que deve ser lido e apreciado.

Citações:
"O próprio rio vem suspirar no fundo das retretes a sua asma sem grandeza: dobrado o cabo Bojador o mar tornou-se irremediavelmente gordo e manso como os cães das porteiras, a roçarem-nos nos tornozelos a submissão irritante dos lombos de capados."
"num restaurante francês em que o preço dos pratos obrigava a consumir as pastilhas para a azia que a suavidade do filet mignon poupava."
"e o médico pensou com melancolia em como é difícil educar os adultos, tão pouco atentos à importância vital de uma pastilha elástica ou de uma caixa de plasticina, e tão preocupados com a ninharia idiota dos bons modos à mesa"


Pontuação: 8/10


Afortunadas releituras,
Gonçalo M. Matos

sexta-feira, 22 de julho de 2016

"Aparição", de Vergílio Ferreira

   Aparição é talvez o romance de Vergílio Ferreira no qual está presente toda a sua temática literária. A preocupação existencial da condição do homem é uma constante na obra do autor, sendo que é neste livro que se encontra mais aprofundada.
   A história que nos é apresentada neste romance é secundária, é uma mera desculpa do autor para poder anunciar os seus pensamentos, as suas dúvidas e as suas cogitações mais profundas sobre o lugar do ser humano na insondável grandeza da existência. A história segue o atribulado quotidiano do narrador, Alberto Soares, após a sua chegada a Évora para dar aulas no liceu. As suas divagações levam-no a travar conhecimento com o doutor Moura, um velho amigo do seu falecido pai, através do qual conhece os restantes protagonistas deste romance. Por sugestão de Moura, Alberto propõe-se a dar lições de latim a uma das filhas deste, Sofia. Após vários serões com esta e com a família do doutor Moura, o narrador parte de férias em busca de tranquilidade, passando esse Natal com a sua família. Mas essa almejada tranquilidade é interrompida no final das férias, e eis que o protagonista regressa a Évora para retomar as suas aulas. A partir deste ponto, a história vai ficando muito pouco desenvolvida, sendo que apenas são narrados os eventos-chave do quotidiano do narrador e dos restantes personagens.
   Mas a história é o que menos importa neste romance existencialista. Como já referi, a história neste livro não passa de uma desculpa quase que esfarrapada que o autor dá para poder escrever sobre as suas ideias e teorias sobre o lugar do homem no mundo. Todo o livro é percorrido de descrições magníficas dos diversos locais frequentados pelo narrador e por profundas meditações sobre a existência humana e a perceção que cada um tem sobre esta. O autor revela mais a sua faceta de ensaísta que de ficcionista neste romance, sendo que a obra não é mais que uma grande meditação sobre a vida e a existência humana mascarada de história. 
   Achei curioso esse aspeto da obra de Vergílio Ferreira, particularmente deste Aparição, o de que faz um esforço por agradar dois tipos de leitores. Tanto os leitores que preferirem um grande ensaio filosófico sobre o lugar do homem no mundo como os leitores que apreciarem uma história simples recheada de inquietações e de descrições maravilhosas da natureza encontram neste livro uma satisfação às suas preferências.
   Recomendo, portanto, a leitura deste livro. Mas aviso que pode tornar-se maçudo por vezes, para quem não estiver habituado a leituras mais "pesadas" ou para quem olhe apenas para a história, esquecendo a faceta filosófica. Mas que deve ser lido, deve.

Citações:
"Por enquanto sinto a evidência de que sou eu que me habito, de que vivo, de que sou uma entidade, uma presença total, uma necessidade do que existe, porque só há eu a existir, porque eu estou aqui, arre!, estou aqui, EU, este vulcão sem começo nem fim, só atividade, só estar sendo, EU, esta obscura e incandescente e fascinante e terrível presença que está atrás de tudo o que digo e faço e vejo - e onde se perde e esquece."
"- Bem... Não sei como explicar. É assim: mastigar as palavras.
- Mastigar as palavras?
- Bem... É assim: a gente diz, por exemplo, pedra, madeira, estrelas ou qualquer coisa assim. E repete: pedra, pedra, pedra. Muitas vezes. E depois, pedra já não quer dizer nada."
"Nós, os homens das contas complexas de quem aprendeu mais do que as quatro operações, das bibliotecas de catacumbas de quem ousou mais do que o á-bê-cê, de quem arriscou as ideias e as não gastou em palavras, sabemos que a discussão se não esgotou num simples voltar de costas, numa troça de desprezo, embora soberana e eficaz como a das crianças."


Pontuação: 6.9/10


Meditativas leituras,
Gonçalo M. Matos

quinta-feira, 7 de julho de 2016

"Para Onde vão os Guarda-chuvas", de Afonso Cruz

   Este Para Onde vão os Guarda-chuvas revelou-se como uma experiência incrível que confirmou Afonso Cruz como um dos melhores prosadores contemporâneos e como um dos meus autores perdiletos. É difícil, atrevo-me até a dizer impossível, não gostar de ler este livro nem ter a perfeita noção de que tudo, desde a belíssima prosa de Afonso Cruz aos personagens cativantes e às situações envolventes, se encaixa numa perfeita construção. Esta é classificada como uma das melhores obras escritas por Afonso Cruz, e eu estou inteiramente de acordo, quer com quem afirma tal, quer com quem afirma que este autor é um dos melhores que o nosso país tem. A descrição mais interessante deste romance que consigo reproduzir é a de António Mega Ferreira, que afirma que "tal como numa sinfonia de Mozart, não há nem uma nota a mais". Sim, Para Onde vão os Guarda-chuvas é uma obra de arte autêntica e Afonso Cruz é um génio artístico. Este romance é uma pintura, uma paisagem, não só espacial mas também do interior mais profundo da alma humana. É soberbo.
   O pano de fundo deste romance é um Oriente como julgamos, nós, ocidentais, que ele é, com todos os seus aspetos positivos e negativos. A história segue as vidas de Fazal Elahi, um homem modesto cuja maior ambição é passar despercebido, o seu primo Badini, um dervixe (monge errante) mudo, que fala com as mãos, sendo tudo o que diz a mais bela das poesias e a sua irmã Aminah, que berra muito e sonha casar um dia. Estes três personagens compõem a primeira parte do romance, juntamente com a mulher de Elahi, Bibi, e o filho deles, Salim. A segunda parte do romance conta com os mesmos três personagens, acompanhados agora por um indiano apaixonado, Nachiketa Mudaliar, e o filho adotivo de Elahi, Isa. Ao longo do romance vão aparecendo outros personagens que contribuem para o desenlace, como o general Ilia Vassilyevitch Krupin, o mulá Mossud e o jovem Dilawar Krupin. A história possui, do princípio ao fim, um teor de esperança mas de inevitável fatalismo, recheada de um cuidado humanismo na descrição e desenvolvimento dos personagens. 
   Agora, as características que acrescentam ao romance algo de artisticamente brilhante: imagens, fotografias e plasticidade textual. Afonso Cruz auxiliou-se de fotografias de um tabuleiro e das suas peças de xadrez que incluiu em páginas pontuais do romance, como ilustração da história que se desenvolvia. Estão também presentes algumas ilustrações do próprio autor. As páginas tinham por vezes plasticidades textuais, imagismos criados pela estruturação das frases e das palavras. Um exemplo que me ocorre agora, é uma página onde se lê a palavra "desculpa" várias vezes repetida, formando uma rua de um quarteirão de uma cidade. Outra característica, e desta gostei especialmente, foi o capítulo cujas páginas eram pretas e as letras brancas, que eu achei imensamente divertido e interessante do ponto de vista estético. Outro exemplo é um capítulo inteiro composto simplesmente pela repetição da mesma palavra três vezes: "Escarlatina, escarlatina, escarlatina", simplesmente. 
   É um romance brilhante de um autor genial que me deu um enorme prazer de leitura. Devo muito a este autor por me proporcionar momentos de verdadeiro prazer estético quando leio os seus escritos. E não vou parar por aqui. Irei ler tudo o resto de Afonso Cruz. Em suma, este romance é uma obra genial que deve ser lida. Afonso Cruz merece e deve ser lido. É maravilhoso.

Citações:
"   Sabes qual é a diferença entre um sábio
e um devoto como o mulá Mossud?
O devoto, num naufrágio,
salva o seu tapete de orações.
O sábio salva
o homem que se afoga."
"Já reparou que entre os animais é o líder que vai combater com o líder rival? Os animais não mandam os peões para debaixo dos cavalos. No reino animal, os líderes são os primeiros. Se nós fizéssemos o mesmo, os conflitos seriam substancialmente diferentes. E o mesmo princípio não seria aplicado apenas em casos de guerra, Sr. Elahi, mas também em todas as vertentes da sociedade."
"Para onde vão os guarda-chuvas? São como as luvas, são como uma das peúgas que formam um par. Desaparecem e ninguém sabe para onde. Nunca ninguém encontra guarda-chuvas, mas toda a gente os perde. Para onde vão as nossas memórias, a nossa infância, os nossos guarda-chuvas?"


Pontuação: 10/10


Brilhantes leituras, 
Gonçalo M. Matos

terça-feira, 21 de junho de 2016

"Quando Ruiu a Ponte sobre o Tamisa", de Ana Gil Campos

   Após a leitura desta obra, fico um bocado na dúvida. Fiquei não na dúvida quanto ao talento da escrita da autora, que é impecável, nem quanto aos temas, que são temas que atravessam a intemporalidade da literatura. Não, a dúvida que me foi deixada foi quanto à história que serve de base. Fiquei um bocado de pé atrás quanto à história, é da minha opinião que talvez a qualidade da escrita e a pertinência dos temas não se tenha bem enquadrado com a história deste livro. Posto isto, fico sem saber se é de mim ou se será do romance, mas não me satisfez a leitura deste Quando Ruiu a Ponte sobre o Tamisa tanto como o anterior livro desta autora.
   Dito isto, a história. Chandni é uma princesa indiana que, durante uma visita à sua família na Índia, encontra na rua uma rapariga em péssimo estado e decide ajudá-la, levando-a para a sua casa e tratando dela lá. Quando a rapariga, que diz chamar-se Paula, recupera, convida Chandni a viver uma aventura consigo, em Goa. Este evento marca o início do resto da narração. A partir de Goa, Chandni entra em contacto direto com a vida, um contacto que nunca sentira plenamente antes, devido à infância privilegiada que teve e à ingenuidade de quem pensa que tudo é perfeito (a sua vida era percecionada por si como sendo perfeita). Após um regresso a Londres, Chandni e o seu marido, Nadir, viajam para Portugal, ficando a viver no Palácio da Pena, em Sintra. Aqui, a vida e as certezas de Chandni serão todas abaladas, um evento irá motivar uma série de dúvidas, questões e inseguranças que a farão questionar o porquê e o como de tudo o que a rodeia. 
   Os aspetos negativos que atribuo ao romance são a confusão que causa a sua leitura. Há vários aspetos e pormenores que são deixados sem resposta ou que parecem inseridos onde estão só porque sim que confundem a leitura. Se a intenção da autora era criar mistérios e ambiguidades, tentou-o sem sucesso, uma vez que este tipo de temáticas não encaixa bem com as ambiguidades que a autora tentou introduzir.
   Ditos os aspetos negativos, passo aos positivos. Mais uma vez é revelado o enorme talento que a autora tem para as palavras. As descrições são imensamente belas e intensamente descritivas, têm vida, saltam das páginas. Podemos sentir com os sentidos todos as descrições que a autora faz. Há, dos elementos ambíguos que falei anteriormente, alguns que são muito bem aplicados. A existência, por exemplo, do seu confidente, que é nada mais que Gandhi, do seu protetor sempre vigilante, a coruja, e da sua alma representada fisicamente na figura do flamingo (isto, claro, de acordo com a interpretação subjetiva que fiz). Quero também mencionar e aplaudir a forma como a autora dividiu o livro. O livro está dividido em cinco partes, cada uma com uma especiaria específica atribuída a si, que representa um dos personagens descritos por Chandni, sendo que no início de cada parte está uma passagem que irá ser lida mais adiante nessa parte.
   Colmatando, é um livro que revela, como o anterior da autora, o seu incrível talento como escritora, não obstante os aspetos que me deixaram um bocado de pé atrás desta vez. Mas pode ter sido apenas impressão minha. Não somos todos iguais e claro que recomendo a sua leitura a outros que talvez vejam o que não vi, compreendam o que não compreendi. 

Citações:
 "A alma de Paula tem um aroma intenso que permanece mesmo quando ela não se encontra presente, da sua voz quente saem palavras acres e o seu olhar tem um toque adstringente. A alma de Paula é como o cravo-da-índia."
"Não vale a pena enganarmo-nos de que um inimigo poderá vir a tornar-se num verdadeiro amigo, uma amizade assim é alimentada por interesses e nunca será inteiramente pura e desinteressada. Mas a sociedade é feita de relações assim."
"Só porque a verdade de hoje é diferente da verdade de ontem, não significa que a verdade de ontem fosse menos verdadeira. Se nós e o nosso contexto mudam, como não mudará a verdade também?"


Pontuação: 7.2/10


Boas leituras, 
Gonçalo M. Matos

domingo, 22 de maio de 2016

"O Evangelho segundo Jesus Cristo", de José Saramago

   Se antes tive dúvidas sobre a importância e genialidade de José Saramago como escritor, estas foram completamente desfeitas por esta obra fenomenal, fruto de uma imaginação fértil como só Saramago sabe produzir. A sua acutilante visão sobre tudo é o que torna os seus livros cativantes, independentemente das formas de escrita diferentes do habitual e do uso peculiar que Saramago faz das regras ortográficas, que só não compreende quem não quer. O Evangelho segundo Jesus Cristo é o livro que causou a polémica que levou Saramago a exilar-se em Lanzarote, uma vez que o livro foi censurado de uma lista de candidatos a um prémio literário europeu pelo então subsecretário da cultura. 
   Como contar uma história que já foi contada mil vezes. Contá-la mais uma vez. A história narrada nesta obra é uma história com que toda a gente está familiarizada. José e Maria decidem um dia fazer um filho, ao qual dão o nem de Jesus, e desde o início o recém-nascido parece protegido por alguma providência divina, uma vez que se salva por sorte da morte certa, ordenada por Herodes, morte essa de que não tiveram a sorte de escapar todos os recém-nascidos de Belém. José, atormentado por pesadelos, dá o seu melhor para manter a sua família, composta de Maria, Jesus e mais nove filhos, mas a sua vida chega a um fim abrupto e inesperado, ficando Maria sozinha a cuidar dos seus filhos. Isto passa-se até Jesus sair de casa e ir fazer de pastor do maior rebanho do mundo, como ajudante de uma personagem que nos é apresentada simplesmente como Pastor. Após uns anos dessa vida, Jesus encontra Deus no deserto, que lhe apresenta um contrato que não pode ser debatido nem recusado. Regressado a casa, Jesus conhece Maria Madalena em Magdala, a quem promete regressar. Sendo desacreditado em sua própria casa, Jesus abandona a sua casa definitivamente e regressa a Maria Madalena, com quem passa o resto da sua vida. Jesus parte então pelas terras judias operando milagres de pouca envergadura, até que por força das circunstâncias se apercebe da sua real capacidade e começa a ajudar os menos afortunados. Após um diálogo com Deus num lago, Jesus sabe qual é a sua missão, e trata de a cumprir, contrariado, estes eventos todos resultando no desfecho que já nos é familiar.
   O que há de inovador nesta obra de Saramago não é a história. A história de Jesus já foi mil vezes contada. Nem o modo peculiar de usar a ortografia, que em Saramago é uma constante. Não, o que torna este livro único é o enfoque que Saramago dá ao lado mais humano de Jesus, aos seus relacionamentos com os outros e com a sua família. Os milagres são de pouquíssima relevância nesta obra, completamente secundários. O que não é secundário é a crítica à religião que atravessa a obra do início ao fim. Saramago começa logo a arrasar com a descrição de uma imagem da crucificação de Cristo, dissecando todos os aspetos e pormenores da imagem. E pelo livro fora há essa crítica á religião, a Deus e a todos os aspetos mais negros da religião e da fé. Desde um inverter de papéis entre Deus e o Diabo, que segundo o livro, Deus é mau porque quer e o diabo é mau porque o fizeram assim. A maior crítica a Deus encontra-se no episódio do diálogo entre Jesus e Deus no lago. Deus revela a Jesus o que o futuro o espera e Jesus questiona todos os eventos, como as guerras intermináveis em nome da religião, sendo a resposta de Deus a tudo: porque tem de ser. 
   A crítica que Saramago fez nesta obra valeu-lhe muita má fama entre o público católico, desamor que Saramago sempre ignorou como sendo fruto de uma cultura conformista sem vontade de pensar. Independentemente das críticas que Saramago recebeu, é e será um dos maiores escritores da literatura portuguesa, e O Evangelho segundo Jesus Cristo uma dádiva que não é justamente apreciada. Independentemente de se ser religioso ou não, esta obra é uma das mais brilhantes e inspiradas da língua portuguesa. Mais não me resta que recomendar, mais, impor a leitura deste brilhantíssimo romance.

Citações:
"Jesus poderá dizer ao seu progenitor, Pai, não tens de levar contigo toda a culpa, e, no segredo do seu coração, quiçá ouse perguntar, Quando chegará, Senhor, o dia em que virás a nós para reconheceres os teus erros perante os homens."
"Este homem, que traz em si uma promessa de Deus, não tem outro sítio aonde ir se não a casa de uma prostituta. Não pode regressar ao rebanho, Vai-te, disse-lhe Pastor, nem tornar à sua própria casa, Não te cremos, disse-lhe a família, e agora os seus passos hesitam, tem medo de ir, tem medo de chegar, é como se estivesse novamente no meio do deserto"
"Serás a colher que eu mergulharei na humanidade para a retirar cheia dos homens que acreditarão no deus novo em que me vou tornar, Cheia de homens, para os devorares, Não precisa que eu o devore, quem a si mesmo se devorará."


Pontuação: 10/10


Inteligentes leituras,
Gonçalo M. Matos

domingo, 20 de março de 2016

"As Cidades Invisíveis", de Italo Calvino

   Concluindo este romance fica uma incerteza. Várias, talvez, mas uma principal: este romance relata o relato de cidades que são ou o devaneio por cidades que podem ser? É provavelmente a dúvida mais pertinente que este romance de Italo Calvino nos deixa. Confesso que, quando me falaram desta obra, eu não conhecia Calvino, não sabia com o que contar. Mas todos os livros são assim, um mergulho no desconhecido. E foi o que fiz. Mergulhei neste romance e ressurgi iluminado e intrigado. Talvez esta seja a palavra que melhor caracteriza este livro: intrigante. É intrigante no sentido da história, do estilo, do conceito, do conteúdo. É um livro filosófico sem ser filosofia. É uma obra interessante e bem escrita, de um dos maiores escritores italianos do século XX. 
   A narrativa do livro parte de uma premissa interessante. A obra é o relato que Marco Polo faz ao grande Kublai Khan das cidades que visitou no vasto império deste. E é basicamente esta a narrativa. Quando falei da parte intrigante deste romance referia-me a isto mesmo. Não consigo alongar-me pela historia porque história em si não existe. No entanto, não deixa de haver um fio condutor do desenrolar do romance. Entre cada capítulo Marco Polo e Kublai Kahn refletem sobre o que Polo relatou e enveredam por conversas filosóficas no sentido de apurar o verdadeiro propósito do espaço de uma cidade. Marco Polo descreve um total de 55 cidades, cada uma diferente da outra. As descrições das cidades são feitas através de prosas curtas que chegam a lembrar poemas devido à sua profundidade. As cidades são divididas em 11 grupos temáticos, havendo cinco de cada grupo. As descrições das cidades vão para além do espaço físico da cidade, entrando pelo componente humano em cada cidade. As cidades descritas por Marco Polo a Kublai Kahn largam a sua função espacial e funcionam como meio de analisar o comportamento humano, cada uma das descrições recorrendo ao fantástico e ao surreal. Por vezes, o grande Kahn desconfia se Polo estará a dizer a verdade ou não, sendo que Polo responde sempre de forma ambígua, deixando o leitor na dúvida se estará realmente a relatar ou a imaginar. A imaginação é o tema que atravessa o livro, a efabulação é o mecanismo de narrar a história. Mas o autor consegue deixar ambiguamente a dúvida se a efabulação não será uma forma de relatar a realidade ou se a verdade não será apenas a representação física do devaneio. 
   Tanto a nível formal como material, esta obra é muito interessante. Intrigante do ponto de vista de não ser uma história no seu sentido convencional. Mas a geração de Calvino é assim mesmo. Os escritores da segunda metade do século XX representam isso mesmo: o romper com os cânones tradicionais da primeira metade do século com o seguir outras vias alternativas às vias alternativas. As Cidades Invisíveis são isso mesmo, uma inovação de uma inovação, um pegar na vanguarda do início do século e levá-la por um caminho alternativo, igualmente inovador. 
   Posto isto, não posso deixar de elogiar a obra e o autor. Este intrigante livro merece ser lido por qualquer apreciador de literatura alternativa de final do século passado. 

Citações:
"Marco Polo descreve uma ponte, pedra a pedra.
   Mas qual é a pedra que sustém a ponte? - pergunta Kublai Kan.
   A ponte não é sustida por esta ou por aquela pedra - responde Marco, - mas sim pela linha do arco que elas formam.
Kublai Kan permanece silencioso, refletindo. Depois acrescenta:    Porque me falas das pedras? É só o arco que me importa.
Polo responde:    Sem pedras não há arco."


Pontuação: 8.5/10


Intrigantes leituras,
Gonçalo M. Matos

sexta-feira, 11 de março de 2016

"Jesus Cristo bebia cerveja", de Afonso Cruz

   Já antes o disse, gosto muito de descobrir qualidade em autores contemporâneos. E descobri qualidade em Afonso Cruz. Jesus Cristo bebia cerveja revelou-se, para mim, uma agradável surpresa, um exceder das expetativas que eu tinha criado quanto ao autor. Ao contrário do que aconteceu com outros, fui criando expetativas à medida que se aproximava a altura de conhecer a escrita de Afonso Cruz que foram mais que correspondidas. Confesso-me rendido a este autor de pensamento profundo e escrita leve. Este livro foi considerado o melhor livro do ano pelos leitores do Público. Afonso Cruz é considerado por muitos críticos como uma das vozes mais poderosas e originais da literatura portuguesa contemporânea e eu concordo. Mais acrescento que é dos melhores autores da Nova Geração literária.
   A história segue o quotidiano de uma aldeia do Alentejo, mais especificamente, de alguns dos seus habitantes, com especial enfoque para Rosa e a sua avó, Antónia. Rosa é uma rapariga feita mulher recentemente e Antónia é uma mulher em final de vida, semi-impotente e enrugada pela vida. Ao longo do romance vamos tendo luz sobre alguns aspetos da vida de Antónia e de Rosa, especificamente do pai e da mãe de Rosa. O romance, segundo a minha perceção, pode ser dividido em duas partes: a primeira parte é composta pela apresentação dos variados personagens que compõem a história, dos seus presentes, passados, das suas inquietações e perversões. É-nos introduzido o professor Borja, um homem de ciência, descrente, o sargento Oliveira, cujo nome "lhe assenta que nem uma árvore", o padre Teves, um homem de Deus, pervertido e um tanto hipócrita (a hipocrisia da Igreja Católica, assim como o seu potencial a ser algo belo, é algo que atravessa o romance), a inglesa que comprou uma aldeia, o pastor Ari, que se apaixona por Rosa, entre outros mais personagens, coloridos ou não. A segunda parte é a narrativa que nos é prometida pela sinopse: os preparativos para que a aldeia da inglesa se transforme em Jerusalém. Nesta parte somos apresentados ao esforço e dedicação das pessoas para que seja feita uma reprodução fiel da Terra Santa. Antónia fica muito feliz por "cumprir" o seu desejo e essa felicidade contagia Rosa. E o romance parte daqui em crescendo até ao desenrolar final, simultaneamente trágico e revelador. No romance vão sendo feitas referências ao título do livro e ao "western" que acompanha este livro, o A Morte não Ouve o Pianista
   A história deste romance é um mimo. Um mimo humanístico. As suas personagens são tão humanas, com as suas complicações, as suas esquisitices e os seus passados complicados ou não. Ao longo da leitura deste romance, Afonso Cruz vai-nos deixando montes e montes de frases profundas e que nos deixam a pensar, de comparações muito engraçadas e de frases muito memoráveis. Inclusive, vai-nos apresentando pensamentos, quer do narrador, quer dos personagens, autênticas pérolas da efabulação literária. 
   Penso que é notório que gostei muito de ler este romance. E agora, tenho vontade de descobrir Afonso Cruz. Faço minhas as palavras de Valter Hugo Mãe: «Não vou descansar até que todos os leitores descubram o Afonso Cruz. Já prometi usar de violência física para obrigar um a um a ler a maravilha que ele escreve, e não estou a brincar.»

Citações:
"Há dois tipos de Deus: o que nasce da barriga vazia e o que nasce da barriga cheia. O primeiro é vazio, terroso, carnal, necessário para criar uma sensação de amparo e justiça num mundo em que não há nada disso. O segundo é um luxo, fruto de elucubrações. Não precisamos dele, mas ainda assim fazemo-lo existir."
"    O povo - diz Fartaria, enquanto limpa os cardos no adro da igreja - é como as solas dos sapatos, serve para pisar, serve para que não nos magoemos ao tocar no pó."
"Uma corda estica até ao seu comprimento, mas pode passar uma vida dobrada sobre si mesma, enrolada para dentro."


Pontuação: 9.8/10


Curiosas leituras,
Gonçalo M. Matos