quinta-feira, 17 de julho de 2014

"O Delfim", de José Cardoso Pires

   O Delfim pode ser considerado muitas coisas. Mas a principal é ser uma das obras mais marcantes da segunda metade do século XX português. Trata-se de um caso raro nas letras portuguesas, uma vez que apresenta uma influência estrangeira, mas sem deixar de ser absolutamente português e que se trata de uma mistura bem conseguida de géneros. Se nos pedirem para catalogar O Delfim, ficamos na dúvida. Será um policial? Será uma alegoria? Será uma reflexão? A resposta é sim. E sim. E sim. 
   A história é a imagem de um país à beira da mudança, evidenciado nos seus personagens e na intriga que se desenvolve. A ação da obra passa-se na fictícia aldeia da Gafeira, onde se localiza uma grande lagoa que serve de sustento aos habitantes. No centro da ação, um crime. Praticamente todos os habitantes da aldeia têm a sua versão do que poderá ter acontecido, mas nenhum deles tem razão (ou terá?). O narrador da história recorda as conversas que teve com o engenheiro Tomás Manuel da Palma Bravo (o delfim ao qual alude o título do livro), dono da lagoa, latifundiário proprietário de terras. O crime é a morte da sua mulher e do seu criado, Maria das Mercês e Domingos, respetivamente. O narrador vagueia pela aldeia, ouvindo os relatos e as histórias dos habitantes, mas também tentando destrinçar o mistério. No final do livro, este perderá o interesse no crime, que ficará por resolver. 
   Esta obra foi composta durante os tempos do Estado Novo e da censura prévia. Por estes motivos, José Cardoso Pires fê-lo deliberadamente subjetivo. Tudo na obra tem um duplo sentido, o que dificulta um pouco a sua leitura. O autor faz muito o uso da colagem. Trata de um certo tema e muda para outro, para outro tema, para outro tempo. Essa mudança verifica-se quando, entre um parágrafo e o outro, se encontra um espaço em branco. O que também torna difícil a localização temporal se não se tiver atenção na leitura. A história em si é uma alegoria ao país. Cada personagem representa alguém ou algum evento. O desaparecimento de Tomás Manuel mais para o final do livro poder ser visto como o desaparecimento de Salazar, o que se viria a verificar anos mais tarde. Resta apenas dizer que o autor foi muito inspirado pelos romances policiais americanos e que esta obra foi adaptada para o cinema por Fernando Lopes. Recomendo vivamente a sua leitura. Mas cuidado. Não leia levianamente. Trata-se de uma leitura que requer muita atenção.

Citações:
"O largo. (Aqui me apareceu pela primeira vez o Engenheiro, anunciado por dois cães.) O largo:"
"Os cães. (Entram dois no café, levados por uma jovem de calças de amazona.) «Os cães são a memória dos donos.»"
"Lagoa, para a gente daqui, quer dizer coração, refúgio da abundância. Odre. Ilha. Ilha de água cercada de terra por todos os lados e por espingardas de lei."


Pontuação: 8.6/10


Felizes leituras,
Gonçalo M. Matos