quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

"Ensaio sobre a Lucidez", de José Saramago

   Tenho notado que tenho lido os romances de José Saramago em altos e baixos, ora encontrando uma obra-prima sublime, ora encontrando um romance menos satisfatório. Aparentemente, consagra-se esta ideia, porque, se o último romance do nosso Nobel da Literatura me deixou um tanto desapontado, Ensaio sobre a Lucidez dardeja-me novamente com a experiência ímpar que é ler este grande romancista. E que ótima leitura para os 100 anos de José Saramago.
     Na anónima capital de um país sem nome, mas que nos é já familiar (mais para a frente explicamos), é dia de eleições, e se, à primeira vista, o temporal que se fazia sentir parecia prender os eleitores a suas casas, o romper do sol trouxe consigo todos os eleitores em massa. Contados os votos, é em choque que as instituições do país constatam que 83% dos votos expressos estavam em branco. Tal acontecimento gera uma reação rápida por parte do governo, que impõe um estado de sítio na capital, isolando-a do resto do país, e estabelecendo os órgãos de governo da nação fora desta, sendo-lhe retirado o estatuto de capital deste país sem nome. Nas suas inquietações sobre a situação da capital, o governo, em conluio com o presidente da república, vai aos poucos sitiando de facto a cidade, com o intuito de esmagar a rebelião brancosa que se havia manifestado. Quando uma carta dirigida aos líderes políticos traz consigo revelações sobre um caso passado, que pode estar relacionado com o caso presente, a um comissário, a um inspetor e a um agente da polícia é dada a missão de investigar as alegações desta. E é assim que damos por nós a acompanhar estas investigações, que nos vão revelando aos poucos que o país é o mesmo onde, quatro anos antes, uma estranha epidemia de cegueira branca flagelou os habitantes, para além de a suspeita recair sobre uma mulher desconhecida, que fora a única a não ficar cega. Por fim, mesmo ao estilo saramaguiano, somos conduzidos com paciência e mestria pelos meandros da entropia humana face a acontecimentos inexplicáveis até a um destino final avassalador.
   Deixamos de lado um dos "mistérios" que levantámos: Ensaio sobre a Lucidez é uma sequela de Ensaio sobre a Cegueira, repetindo-se os símbolos e os tons que marcaram este romance. O branco é a cor predominante, e a cegueira e a visão são um binómio constante ao longo da narrativa. Se em Ensaio sobre a Cegueira Saramago jogou com a polissemia da palavra "cegueira", como falta de visão ou falta de lucidez, neste romance é bastante mais perentório nos seus significados: há quatro anos, as pessoas desta cidade estiveram cegas, agora viam verdadeiramente. O voto em branco nada mais é que a verdadeira inteligibilidade, a lucidez que faltava aos habitantes deste país. Seguindo o seu modus operandi, Saramago começa por narrar, numa primeira parte, o acontecimento em si e os seus contornos sociais, descrevendo as reações das instâncias governativas à subversão de que eram alvo e a reação da população às medidas do governo. O elemento de sequela deste romance surge na segunda parte, quando o governo compara esta nova forma de cegueira branca com a de há quatro anos atrás e quando reaparecem na narrativa os protagonistas do primeiro Ensaio, com especial foco na mulher do médico. Esta segunda parte trata também da micronarrativa da investigação levada a cabo pelo comissário e pelos seus subalternos. José Saramago não se detém nas suas críticas, analisando com grande lucidez as hipocrisias e os autoritarismos que se escondem nos gestos humanos, principalmente na atuação do governo quando se vê a braços com o poder executivo reforçado. 
   A classe política e as pessoas são antónimos neste romance, com o governo e os militantes partidários a representarem um conjunto de interesses individuais e as pessoas a representarem um interesse comum. Mesmo a antonímia dentro do próprio governo, entre os ministros da cultura e da justiça e os ministros da defesa e do interior, representa uma duplicidade inerente à nossa alma humana, para além de estabelecer uma oposição perentória entre a reflexão crítica e o pragmatismo bacoco que muitas vezes os líderes políticos cultivam como qualidade. Um aspeto muito divertido desta obra é a identificação dos partidos existentes - o partido da direita, o partido do meio e o partido da esquerda - com os seus equivalentes reais, numa irónica comparação implícita. Uma história alicerçada sobre uma epidemia de votos em branco surgiu numa altura em que a vida real convida a que se reflita lúcida e ponderadamente sobre aquilo que julgamos estar certo ou garantido, sejam os nossos sistemas partidários, sejam os nossos direitos inalienáveis. Num mundo pós-covid, já parece quase alienígena, ou estranhamente familiar, o isolamento profilático de uma cidade inteira e a suspensão dos direitos e liberdades - e consequente aumento do poder governativo - à conta de uma declaração de estado de sítio, o que não deixa de ser uma curiosidade: quem tiver lido este livro antes da infame pandemia esteve longe de imaginar que um dia pudessemos mesmo ter passado por algo semelhante. Aliás, Ensaio sobre a Cegueira coloca a mesma questão e suscita a mesma curiosidade. Quanto à brilhante oralidade da escrita saramaguiana, continua como já a conhecemos, pelo que não há nada mais a acrescentar. A caligrafia da capa deste livro pertence a Dulce Maria Cardoso. 
   Trata-se de um romance que convida à reflexão, à boa maneira de Saramago, e que nos delicia com a brilhante lucidez do nosso Nobel da Literatura. 

Citações: 

"Quem desta maneira argumente esquece que o universo não só tem lá as suas leis, todas elas estranhas aos contraditórios sonhos e desejos da humanidade, e na formulação das quais não metemos mais prego e mais estopa que as palavras com que malamente as nomeamos, como também tudo nos vem convencendo de que as usa para objetivos que transcendem e sempre transcenderam a nossa capacidade de entendimento"

"Os direitos não são abstrações, respondeu o ministro da defesa secamente, os direitos merecem-se ou não se merecem, e eles não os mereceram, e o resto é conversa fiada, Tem toda a razão, disse o ministro da cultura, de facto os direitos não são abstrações, têm existência até mesmo quando não são respeitados, Ora, ora, filosofias, Tem alguma coisa contra a filosofia, senhor ministro da defesa, As únicas filosofias que me interessam são as militares, e ainda assim com a condição de que nos conduzam à vitória, eu, caros senhores, sou um pragmático de caserna, a minha linguagem, gostem dela ou não gostem, é pão pão, queijo queijo"

"As rádios insistiam, Interrompemos uma vez mais a emissão para informar que o ministro do interior fará às seis horas uma comunicação ao país, repetimos, às seis horas o ministro do interior fará uma comunicação ao país, repetimos, fará ao país uma comunicação o ministro do interior, uma comunicação ao país fará às seis horas o ministro do interior, a ambiguidade desta última fórmula não passou despercebida ao primeiro-ministro, que, durante uns quantos segundos, sorrindo aos seus pensamentos, se entreteve a imaginar como diabo conseguiria uma comunicação fazer um ministro do interior."


Pontuação: 9.8/10


Gonçalo Martins de Matos

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

"Fado Alexandrino", de António Lobo Antunes

  Como se mais certezas fossem precisas, António Lobo Antunes é, a par de José Saramago, um gigante da literatura lusófona. Em cada romance de Lobo Antunes tenho encontrado autênticos tesouros de linguagem tão geniais como viscerais.
    Cinco ex-combatentes da guerra colonial encontram-se numa noite de copofonia, ao longo da qual entram em diversas reminiscências sobre a própria guerra, sobre as suas vidas no regresso a Portugal no período pré-revolucionário e sobre como as suas vidas deram as mais variadas voltas com a Revolução e com o pós-revolução. Abílio, o soldado, recorda principalmente o acolhimento por parte do seu tio na sua empresa e em sua casa, onde conhece Odete, por quem teve uma paixão. Jorge, o alferes, rememora sobre as tensões com a família de classe alta da sua ex-mulher e sobre o processo de divórcio, quer com a sua mulher quer com a sua filha. Artur, o tenente-coronel, rumina a sua viuvez ao regressar a Portugal, a par com o progresso da sua carreira rumo ao generalato durante as convulsões pós-revolução. Celestino, o oficial de transmissões, recorda os seus tempos de militância comunista no regresso à pátria e a sua prisão e libertação no período revolucionário, assim como a sua paixão por Dália, sua camarada. O Capitão, o quinto elemento da noite dos militares, não tem participação ativa, ouvindo as queixas e as frustrações dos seus camaradas, servindo esporadicamente de narrador. A noitada dos cinco segue também ela um percurso caricato, terminando, como as próprias aspirações portuguesas pós-revolucionárias, num final tão inverosímil como tragicómico. 
   O paralelismo que Lobo Antunes opera entre as vidas e os infortúnios dos cinco militares e o percurso de Portugal entre o fim da ditadura e a consagração democrática é de um delicioso pessimismo. Este autor nunca escondeu, nas suas obras, uma visão mais pessimista da oposição entre as promessas da mudança e o conformismo português. Nenhuma das quatro vidas que nos são relatadas tem alguma hipótese de felicidade. E, no entanto, a esperança continua lá. A melancolia é uma constante na nossa autoavaliação histórica, e este romance captura essa visão de mundo tão peculiar de uma forma magistral. António Lobo Antunes é um dos mestres da língua e da linguagem portuguesas. As suas obras estão repletas de puro vernáculo, que dá sempre um imenso gosto de ler. O domínio da linguagem expressa-se no uso imaginativo que faz de certos recursos estilísticos que se tornaram apanágio de Lobo Antunes, como as descrições metonímicas com enfoque na sinédoque, as sinestesias e as personificações, ou a prosa polissindética. O romance está dividido em três partes, "antes da revolução", "a revolução" e "depois da revolução", que marca os períodos aos quais se prendem as recordações de cada um, e cada parte subdivide-se em 12 capítulos. Os quatro primeiros capítulos de cada parte correspondem aos quatro distintos narradores, aglomerando-se e confundindo-se as vozes com a progressão dos restantes capítulos. A única exceção é o capítulo 11 da terceira parte, que corresponde a uma personagem que não participa na ação, mas que tem um papel fundamental enquanto súmula da mensagem que Lobo Antunes redige, e que constitui um momento de prosa sublime no panorama da literatura portuguesa. O tempo do romance funciona de uma forma bastante antuniana; existe o tempo da ação, que ocorre na noitada, e os tempos psicológicos, onde a ação decorre nos períodos relatados, mas nas cabeças dos ex-combatentes. Devido a esse facto, durante os relatos de cada um deles, o tempo ziguezagueia entre a noitada e o tempo narrado, o que gera intromissões e comentários por parte dos restantes presentes, assim como fluxos de consciência do personagem sobre quem incide o foco. Em alguns capítulos, o autor dá-se a pequenos momentos de plasticidade estrutural, iniciando parágrafos com minúsculas, isolando certas sequências de ideias do resto do parágrafo ou acompanhando o movimento descrito com a redação das palavras que o descrevem.
   Fado Alexandrino é um grade romance de um autor fenomenal, e deve ser lido e apreciado em toda a sua brilhante originalidade. 
 
"Saiu a arrastar a mala, misturado com os colegas, do edifício desbotado do quartel, e distinguiu logo, do outro lado das grades, no passeio, uma espécie de monstro marinho de caras, de corpos e de mãos, que se agitava, aguardando-os, no meio-dia cinzento da Encarnação, em que os semáforos boiavam ao acaso, suspenso na neblina como frutos de luz."
 
"O telefone tocou e momentos depois o braço do tenente-coronel movia-se no escuro, às cegas, tacteando a pele grumosa da alcatifa à procura do auscultador: os dedos tropeçaram num chinelo, numa espiral de fios, num livro caído, aberto como uma ferida nas trevas, sangrando letras"
 
"O oficial de transmissões virou à direita e à esquerda nas ruelas varicosas do Bairro Alto, nos aneurismas dos becos, nos inchaços das escadinhas, enquanto os reformados, lá em cima, vogavam de chapéu e gravata por cima dos algerozes e das cornijas dos telhados: Quais são os reformados, perguntou-se ele, e quais são os pombos se todos se alimentam das migalhas do vento?"
 
 
Pontuação: 9.8/10
 
 
Gonçalo Martins de Matos

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

"Vamos Comprar um Poeta", de Afonso Cruz

     Afonso Cruz é uma das grandes revelações do século. Detentor já de vários prémios e títulos, torna todas as suas histórias dignas de uma profunda interpretação, pelos ensinamentos que transportam. “Vamos Comprar um Poeta” não fica atrás; é uma prosa simples, sem muitos enredos, mas que retrata no seu todo uma sociedade com ausência de cultura. Uma prosa que nos faz sem dúvida repensar duas vezes o valor que damos às coisas, às pessoas e àquilo que elas fazem.
 
    Num mundo distópico, onde a própria identidade é descartada, um agregado familiar de quatro pessoas leva a sua vida descrita como normal, sob o lema “Crescimento e prosperidade”. Um casal, composto pela típica e formatada mulher e por um homem de negócios, um próspero economista, e dois filhos, possivelmente na adolescência, uma rapariga focada no mundo que a rodeia, e um irmão visto como um não contribuinte, porque se apaixona muito facilmente e está, no geral, alheio ao seu dever de gerar lucro. 
    Ter um artista em casa era um sinal de uma boa economia familiar, e havia, claro está, várias categorias – escultores, pintores, poetas. Poetas eram os que menos sujavam, só precisavam de uma cama, comida, papel e caneta, e contribuíam para a produtividade dos agregados em que se encontravam. Mais produtividade, mais crescimento, mais prosperidade.  
    Com a aquisição do poeta, a vida familiar começa a enfrentar algumas dificuldades. Há janelas que não passam de um verso numa parede, e versos que fazem ecoar dúvidas na mente das personagens. Há tráfico de versos para levar a uma amada, e ainda ensinamentos intemporais: afinal, porque é que usamos metáforas? A relação da rapariga e do poeta estreita-se pela curiosidade de ver coisas onde elas não estão, e há uma aprendizagem significante. Ao mesmo tempo, há dificuldades que surgem, empresas que ameaçam falir, e palavras que se tornam obscenas – “bancarrota”. 
    Perante uma maré de dificuldade, a presença desta aquisição poética torna-se indesejada, um problema a ser cortado pela raiz. Então, faz-se como se faz, infelizmente, a um animal…. Leva-se para um sítio longe de casa, e abandona-se. A crueldade do ato descrito chega-nos, porém, retratada de uma forma leve e desinteressada, é algo já comum neste mundo de algarismos, mas não deixa de interferir com o decorrer normal das coisas, e não deixa de lembrar ao leitor o horror do abandono. Ter um poeta, afinal, era só mais um gasto, agora já insuportável: se para uns foi apenas uma boca que comia e lançava para o ar comentários incompreensíveis e desagradáveis, para outros, foi o verdadeiro entendimento do que é crescimento e prosperidade. 
    Toda a obra é um chamar de atenção à descredibilização da cultura, quer por aspetos informais, como o seu conteúdo e o desenlace das várias personagens, quer por aspetos formais presentes na escrita do autor. A ausência de pontuação conjugada com o entusiasmo excessivamente teatral de frases e falas de exclamação. Tendo escrito a obra coberto de uma ironia característica dos que reconhecem a essencialidade da arte, Afonso Cruz faz-nos entender que não estamos longe de um mundo cinzento e desinteressante, mas que ao mesmo tempo temos nas mãos o necessário para lhe devolver cor. Através de diálogos curtos e um tanto simples, mas com uma profundidade imensurável, o texto torna-se uma viagem acerca dos valores que nos caracterizam. É sobretudo uma prosa para reflexão acerca do que somos e daquilo que precisamos. Talvez seja somente preciso um aquecedor para cada um de nós, ou um verso que nos faça ver o mar.

Citações:

“O pai não é alto, e eu tampouco, aliás, é por isso que me chamam de ordenado mínimo, que é algo que já existiu em tempos, mas que felizmente foi extinto, porque, dizem, era um entrave à competitividade mais elementar.”

“Sensação estranha. Enquanto caminhávamos, o poeta deu-me a mão. Quando via borboletas ficava a olhar para elas. Aconteceu dua vezes durante o trajeto.”

Hhhjxhsjjjsjjjsjjsjkkkk, disse o poeta, ou seja, o dromedário leva às costas o horizonte e uma pequena montanha.”

“Por acaso, o poeta acha eu os vegetais e frutas são o mais importante da pirâmide das necessidades?
Evidentemente que não.
É o quê, então?
É a liberdade.

Francamente…”

 
 
Carla Sofia Eiras

sábado, 23 de julho de 2022

"Uma Viagem à Índia", de Gonçalo M. Tavares

   Uma Viagem à Índia é das obras de Gonçalo M. Tavares mais estudadas, elogiadas e lidas. O que a torna tão especial? Nas próximas linhas tentaremos responder a esta questão, partindo do pressuposto principal: estamos, efetivamente, perante uma obra profundamente brilhante de um autor absolutamente genial. 
   Em Uma Viagem à Índia, seguimos os passos de Bloom, o herói desta "epopeia", numa viagem que o próprio encetou até à Índia em busca de conhecimento e de paz. Bloom parte de Lisboa e pára em Londres, Paris, Viena e na Índia. Pelo caminho, trava conhecimento com amigos e inimigos, todos interessados na sua demanda, mas de formas diferentes. Bloom leva consigo apenas uma mala e um fardo pesado sobre os seus ombros, materializado pelo rádio avariado do seu pai. Esperam na Viagem de Bloom obstáculos, revelações, questões, angústias e certezas, e o final traz revelações tão inesperadas como certas. Esta é a descrição fundamental da viagem de Bloom, porque, como sabemos, o que releva em autores como Gonçalo M. Tavares é a reflexão impressa em todas as frases que descrevem a viagem quer física, quer metafísica de Bloom. 
   Uma Viagem à Índia é uma obra absolutamente arrebatadora. Trata-se de uma brilhante desconstrução pós-modernista dos conceitos de epopeia e de romance, e de todos os aspetos subjacentes. Nem sei muito bem por onde começar, que um simples texto num blogue não faz justiça à grandeza deste livro, que merece (e tem) estudos a si dedicados. Mas, por uma questão de arrumação, comecemos pela forma, passemos depois ao texto e ao metatexto. Uma Viagem à Índia estrutura-se como reflexo de Os Lusíadas, dividindo-se em dez Cantos, cada um composto por um diferente número de estrofes, todos narrando as peripécias do protagonista. Apesar de se encontrar redigido por estrofes, esta obra é um romance ao estilo tavariano, o que leva a outro dos aspetos mais originais da obra deste Autor, que é a desconstrução do género literário. Uma Viagem à Índia não é um romance sendo-o, e também não é uma epopeia sendo-o, para não falar do facto de ser transversalmente um ensaio, como qualquer outra obra do Autor. As estrofes não têm número fixo, e o número de versos que as compõem é igualmente variável. No final do livro, é-nos oferecido "um itinerário" apelidado de Melancolia contemporânea, que se trata de um diagrama composto por palavras e ideias que ocorrem em certas estrofes da obra, organizados por uma barra horizontal numérica e uma barra vertical alfabética. Este toque particular lembra um capítulo de Ulisses, de James Joyce (outra grande obra que serve de inspiração a Tavares), no qual o autor irlandês dispõe no início do capítulo as palavras e ideias que serão encontradas ao longo do mesmo. Aproveito este diagrama para fazer ponte com o conteúdo, uma vez que este itinerário acaba por ser forma e conteúdo mesclados. 
   As reflexões de Gonçalo M. Tavares são de uma genialidade sóbria, quase científica. Quase como se a metafísica fosse mais um ramo das ciências ditas objetivas. As imagens e as ideias que Tavares consegue convocar com o seu particular uso da língua portuguesa são maravilhosas, e densificam as palavras com novos significados potenciais que surgem das suas combinações. Como dissemos em cima, Uma Viagem à Índia opera uma desconstrução pós-modernista. Com este termo pretendemos dizer que Tavares continua os trabalhos de repensamento iniciados com as grandes obras modernistas. É bem patente a intertextualidade entre esta obra e Ulisses, nesse aspeto. Basta olhar para o protagonista de Uma Viagem à Índia, Bloom. Este é o apelido do "herói" do romance irlandês, Leopold Bloom, um protagonista mundano e neutro. O Bloom de Tavares pega nessa desconstrução do herói clássico e dá-lhe a roupagem do século XXI: Bloom é uma personagem complexa a nível moral, não sendo herói nem vilão, não possuindo mais bondade do que maldade mas integrando-se perfeitamente nos ambientes em que se movimenta. As reflexões de Tavares sobre o mundo da técnica e sobre a sociedade contemporâneas revestem-se de uma lucidez filosófica tão poderosa que dá ainda para olhar para este grande romance como um tratado filosófico, característica que também consegue descrever na perfeição toda a obra deste enorme autor português. No que toca aos ecos d'Os Lusíadas neste grande romance, nota-se uma distorção de alguns episódios da obra camoniana, como um Adamastor transversal (o fardo que Bloom carrega, ou o Tempo), ou a inclusão perfeitamente simétrica da Ilha dos Amores (no Canto IX, como na epopeia de Camões); o próprio mote, uma viagem à Índia, é um eco desse momento fundamental na alma portuguesa, que é a descoberta do caminho marítimo para a Índia, por Vasco da Gama. Saramago vaticinou-lhe o Nobel, em tempos, e Uma Viagem à Índia, creio, demonstra que tal previsão não é assim tão rebuscada como parece. Quem sabe um dia...
   Muito mais poderia ser dito desta obra maravilhosa e fundamental da literatura portuguesa (e europeia, como muito bem lembra Saramago). Uma obra que deve ser lida, estudada e admirada por todos!
 
Citações:

"Mas o Destino foi (ultimamente) aperfeiçoado.
Agora o barco e o avião chegam a chão seguro
por força da bússola mecânica, que normalmente
funciona, ao contrário do Destino
que, por ser invenção antiga,
já vai evidenciando cansaço
e até incompetência."
 
"Diga-se que cada língua poderá ser definida como
um modo especializado de interromper o silêncio. E sendo
o silêncio de Paris, de uma forma geral,
igual ao silêncio de Londres ou Viena,
já o modo como esse silêncio é interrompido varia brutalmente,
mesmo tendo em conta as pequenas distâncias 
europeias. A esta brutalidade, mais ou menos organizada 
                                                                         [em sintaxe,
ortografia e palavreado que interrompe de modo civilizado 
o oxigénio e o nevoeiro, a isso chamamos língua.
E em Paris o alfabeto é francês."
 
"Os homens e as suas indústrias poluem os rios,
o mar, o ar que já escurece por cima das cidades 
e a terra, as montanhas, a grande floresta.
Dos quatro elementos antigos - não sei se já reparou -,
o homem só é incapaz de poluir o fogo.
O fogo terá um mistério, certamente."
 
"O rio Ganges é a mais importante biblioteca 
da cidade e o mais importante arquivo.
Não há verdade fora do rio, nem há mentira de qualidade,
ficção ou mitologia, exterior às suas águas sujas. Mas as
águas não são sujas, realmente tal expressão
é um erro - corrige Anish. São águas complexas,
o que é diferente.
Aqui a água não é um elemento de visita ao mundo dos homens, 
são os homens que estão de visita
à água - e na Índia toda a gente o sabe." 


Pontuação: 10/10


Gonçalo Martins de Matos
 

quinta-feira, 30 de junho de 2022

"Pão de Açúcar", de Afonso Reis Cabral

   Afonso Reis Cabral é o mais recente detentor do Prémio José Saramago, tendo-o recebido em 2019. A leitura de um dos "herdeiros de Saramago" tem comigo sempre uma sensação de calma que antecede a tempestade. E que tempestade se preparava.
   Rafael, Samuel e Nélson são três amigos, acolhidos pela Oficina São José, que gostam de visitar zonas abandonadas da cidade do Porto em conjunto. Samuel é muito diferente dos seus dois amigos, pois é dotado da sensibilidade do artista, tendo muito jeito para o desenho. Rafael e Nélson, por seu lado, são dois estereótipos de pré-adolescente oriundo de famílias problemáticas, sem qualquer característica que os distinga dos demais habitantes da instituição que os acolhe. Um dia, em que Rafael procurava por uma nova "zona suja" (o termo que os três usavam para descrever os sítios que visitavam) quando decidiu aventurar-se pelas obras inacabadas de um edifício que serviria para acolher um mercado "Pão de Açúcar". É na cave deste projeto de edifício que Rafael trava conhecimento com Gi, uma mulher transexual a morar num barraco improvisado. Durante alguns dias, Rafael visitou Gi, levando-lhe alimento, enquanto tratava da recuperação de uma bicicleta que encontrara. Certo dia, decide apresentar Gi aos seus amigos, que passam a acompanhá-lo no cuidado com a sem-abrigo. É quando o mais delinquente da Oficina, Fábio, descobre que se precipitam os acontecimentos que se seguiram e que foram alvo de notícias e reportagens que abalaram o país nos meses subsequentes.
  A base do romance é uma série de acontecimentos reais: Gisberta, uma transexual brasileira que vivia nas obras de um prédio inacabado no Porto, foi encontrada morta na cave desse prédio, depois de vários dias a ser espancada e torturada por 13 jovens. Estes acontecimentos foram acompanhados pelos meios de comunicação portugueses, tendo os rapazes sido submetidos a medidas tutelares demasiado benevolentes para a gravidade do caso. Propositadamente, o protagonista não gera empatia. Rafael é um miúdo como tantos outros oriundos de famílias disfuncionais: agressivo, tóxico, bruto. Nem a empatia que acaba por criar com Gisberta o redime. Afonso Reis Cabral é brilhante na forma como consegue manter alguma ambiguidade na caracterização de Rafael, gerando sempre a possibilidade de alguma empatia, que tanto pode funcionar como, no meu caso, não funcionar. Samuel representa a inocência infantil, pelo que é dos personagens que gera mais empatia: um rapaz preso a um universo de idiotas abrutalhados que serão os criminosos do futuro. Os restantes rapazes da Oficina servem de lembrança que o mundo que estes jovens delinquentes conhecem é um mundo de violência e miséria, o que gera também algum desconforto, mas que mais uma vez resulta do talento do autor. Neste romance, o autor mistura facto com ficção para criar o meio de uma história ainda hoje mal contada, apenas com princípio e fim. A linguagem é marcadamente oral, uma vez que o romance é narrado por Rafael, sendo utilizadas frases simples e diretas, quase cruas, com recurso ao calão portuense típico, não sem algumas imagens e pensamentos mais literários. Ao romance acrescem ainda duas fotografias do local principal da ação e alguns recortes de imprensa selecionados pelo autor. 
   Trata-se, sem dúvida, de um romance de difícil digestão, mas de uma leitura viciante e fluída. 
 
"O meu quotidiano era habitado por gajos como o Fábio, que batem, e como o Leandro e o Grilo, que obedecem, os que abusam e os que se deixam abusar, mas também por amigos que falavam sem freio como o Nélson e por amigos como o Samuel, cujo silêncio dizia mais. Tudo único, nosso, mas repetido por centenas de outros lugares [...]. E isso acalmava como ver de fora, porque não éramos únicos: só peças no mecanismo geral das coisas."
 
"As vizinhas esfregavam as peças de roupa nos tanques com tal violência que eu sentia pena do sabão macaco assim mexido, assim tratado com vingança. O excesso de limpeza até parecia falta de higiene, impregnava-nos o cheiro a pobre."
 
"No último lanço já se ouvia melhor o ruído da cidade, os carros a apitar, os autocarros a travar com estampido hidráulico, as gruas a girar, mas também o vento no cimento e os estorninhos em voo rumo ao Douro."
 
 
Pontuação: 7.5/10
 
 
Gonçalo Martins de Matos

sábado, 11 de junho de 2022

"A Sociedade dos Sonhadores Involuntários", de José Eduardo Agualusa

   A sinopse na contracapa deste romance de José Eduardo Agualusa está escrita de uma forma tão promissora que dá logo asas à imaginação do potencial leitor. Infelizmente, a história deste romance não assume os contornos que a minha imaginação logo criou. Felizmente, contudo, não deixa de ser uma história maravilhosa. 
   Daniel Benchimol é um jornalista angolano da oposição, divorciado de Lucrécia (filha de um homem do regime angolano), e tem a particularidade de sonhar com lugares e pessoas que não conhece (ou ainda não conheceu). É um habitual frequentador do Hotel Arco-Íris, de Hossi Apolónio Kaley, antigo guerrilheiro que afirma que morreu duas vezes, para além de, aparentemente, conseguir participar nos sonhos dos outros. Quando encontra uma câmara fotográfica, no rolo da qual encontra uma mulher que lhe tem aparecido em sonhos, Daniel viaja até à África do Sul para conhecer Moira Fernandes, artista plástica moçambicana que encena os seus próprios sonhos. Enquanto Daniel e Moira passeavam pela montanha, travaram conhecimento com Hélio de Castro, neurocientista brasileiro que afirma ter inventado uma máquina de filmar sonhos. Entretanto, um grupo de revolucionários, encabeçado pela filha de Daniel e de Lucrécia, Karinguiri, e entre os quais se encontra o sobrinho de Hossi, são presos por se manifestarem contra o presidente angolano. À medida que as histórias dos quatro sonhadores se vão cruzando e desenvolvendo, a história da greve de fome dos jovens revolucionários, e dos seus efeitos nacionais e internacionais, acontece simultaneamente. 
   O romance é narrado por Daniel Benchimol, com a exceção de alguns capítulos, nos quais temos acesso a passagens dos diários de Hossi e a alguma correspondência de Moira. Um dos aspetos temáticos mais interessantes deste romance é a polissemia da palavra sonho: o sonho corresponde tanto à fantasia imaginada durante o sono, como ao objetivo, à finalidade. Os sonhadores a que alude o título dividem-se entre estas duas categorias: há os sonhadores na cabeça, como Benchimol, Hossi e Moira, e os sonhadores de uma sociedade livre e justa, como os jovens revolucionários, Armando Carlos - um ator, amigo de Benchimol - e outros breves personagens. A batalha entre o realismo e o conformismo, por um lado, e o sonho e a esperança, por outro, atravessa as páginas desta narrativa. O realismo é representado por Daniel e Hossi no início do romance, do conformismo que acaba por se instalar em almas lutadoras cansadas. Mas a chama do sonho que Karinguiri e os revolucionários corporizam abala as raízes do realismo, e levam a que todos possam sonhar. Aliás, tentando não fazer uma grande revelação do enredo, o sonho - na sua polissemia - é o que acaba por dominar no final. O romance tem um tom satírico subjacente, e algumas das situações mais inusitadas ou dos alívios cómicos revelam precisamente o tom humorístico da narrativa. Como sempre que lemos romances de autores de expressão lusófona, o romance encontra-se pontilhado também de expressões e vocábulos específicos às línguas das respetivas regiões, o que adiciona sempre à potencialidade da escrita.
   Trata-se de um belo romance sobre o poder do sonho na vida de todos nós. 

Citações:

"A figueira contorcia-se na tarde como se o vento lhe fizesse cócegas. Gostei logo dela. A árvore gargalhava debruçada sobre o muro. Um corvo, ou talvez não fosse um corvo, era, em todo o caso, uma ave maciça e escura como um corvo, caiu de entre as folhas e olhou para mim como um corvo olharia a curiosa figura de um homem - depois ladrou."

"Lá fora chovia, como há de chover no final dos tempos. Uma água pesada castigava o asfalto, espancava os carros e as vidraças. O ruído da chuva a cair sobrepunha-se ao roncar dos geradores, às buzinas furiosas dos candongueiros, aos gritos das zunqueiras, abrigadas sobre os amplos vãos dos prédios."

"Os antigos gregos, como os chineses e os hebreus, não tinham uma palavra destinada a designar a cor azul. Para todos eles o mar era verde, acastanhado ou cor de vinho. Eventualmente, negro. [...] Também o céu não era azul. Poetas descreviam-no como rosado, ao amanhecer; incendiado, ao lusco-fusco; leitoso, nas melancólicas manhãs de inverno."


Pontuação: 9.3/10


Gonçalo Martins de Matos

terça-feira, 29 de março de 2022

"O Bom Inverno", de João Tordo

   O Bom Inverno não se trata de uma leitura nova, já o tinha lido há muitos anos, antes ainda de escrever neste blogue. Este ano, surgiu uma vontade de reler esta obra de João Tordo, que se tinha revelado já na altura como uma descoberta literária. Anos depois, é com felicidade que nos parecem intocadas as nossas primeiras impressões. 
   Somos de início apresentados ao narrador, que vive frustrado e em auto-reclusão após a publicação do seu terceiro livro, refém da sensação de fecho de ciclo trazida por este. Não contribui para o seu estado mental o facto de, ao cair das escadas, este ter ficcionado um problema qualquer na perna que o impedia de caminhar sem o apoio de uma bengala, apesar de os médicos lhe dizerem que se tratava de um delírio seu. É num estado de pessimismo e de amargura que o narrador é confrontado com um convite para um evento literário em Budapeste, cidade onde conhece Vincenzo, escritor, Olivia, sua namorada, e Nina, agente de um outro escritor, McGill. É lá que o narrador se deixa levar pela fome de aventura de Vincezo, que aceita o convite de acompanhar Nina e McGill à casa de um misterioso e excêntrico produtor de cinema, Don Metzger, um sítio isolado num bosque ermo de Sabaudia, em Itália. Lá, os quatro são apresentados a personagens tão peculiares quanto mirabolantes, como uma atriz conhecida chamada Elsa Gorski ou um catalão imponente chamado Bosco. Todos os personagens presentes na casa são surpreendidos pela morte de Don Metzger, o que leva Bosco a sequestrá-los na casa de Don até o culpado se revelar. É numa espiral descendente em catadupa para o abismo que o resto da narrativa se processa, com revelações sempre cada vez mais surpreendentes que as anteriores, até a um final simultaneamente trágico e aliviado, verdadeiramente melancólico como é apanágio deste grande autor português. 
   O narrador é autodiegético e, como em grande parte dos romances de João Tordo, nota-se a autoprojeção do autor no seu narrador. O facto curioso deste romance é que se trata do primeiro depois de o autor ter recebido o Prémio Literário José Saramago, que estabeleceu de facto uma fasquia psicológica a João Tordo, que já descreveu como se sentiu refém das expectativas, entrando numa espiral muito próxima com a do narrador de O Bom Inverno. Por estes lados costumamos afirmar que a literatura também é expiação, e neste romance, mais do que noutros, nota-se bem essa necessidade expiatória. Talvez seja a característica que mais nos marcou na primeira leitura e que continuou a marcar-nos nesta segunda: a possibilidade terapêutica da literatura. Mas já falamos demasiado de aspetos exógenos; olhemos agora para o romance em si. A narrativa tem ecos de Agatha Christie aliados a Edgar Allan Poe: o ambiente remete para As Dez Figuras Negras e o thriller psicológico é uma constante a cada novo passo dado pelos protagonistas. O romance é igualmente povoado pela ideia da fuga do abismo negro, nomeadamente através da simbologia do balão de ar quente. Don Metzeger gostava de os ver levantar voo, juntamente com Bosco, ambos cativados pela fuga potencial representada por esse voo. No final, a fuga do cativeiro dá-se por um balão de ar quente, símbolo do sucesso do narrador na sua fuga e do sucesso do próprio autor na superação da sua inquietação. A misteriosa e imponente figura de Bosco também parece servir um propósito simbólico, o de uma força sem nome, invisível e omnipresente, opressivamente espreitando pelas suas vítimas: parece-nos que Bosco representa igualmente algum aspeto da inquietação que acomete o nosso narrador-autor. 
   Muito mais poderia ser dito sobre este magnífico romance, aquele a que nos atrevemos de qualificar como "o melhor" do autor: o melhor no sentido de ter conseguido rasgar com um teto auto-imposto e de ter alcançado mais longe. Sem dúvida, tal como já tínhamos considerado na altura, O Bom Inverno é o romance mais bem conseguido de João Tordo. 
 
Citações:
 
"«Se pensares bem, o que é que os médicos, no fundo, sabem sobre a nossa dor? Só têm números, tabelas, as malditas radiografias... Sabes que a primeira pessoa que foi submetida a raios X, no final do século dezanove, comentou, ao ver o negativo, que tinha a impressão de estar a olhar para a própria morte?"

"O lago, a quinze ou vinte metros da entrada, despertou-me imediatamente a atenção. A sua superfície imóvel reflectia a brancura da Lua; embora as águas fossem plácidas, aquela calma de morte parecia não ser mais do que um compasso de espera até que as águas se abrissem e revelassem uma coisa monstruosa: um navio pirata, um monstro marinho."
 
"As nuvens tinham mudado de posição e tornado a descobrir a Lua, transformando a superfície do lago num espelho de fantasmas, revelando os contornos dos rostos húmidos; os quatro rostos naquele lugar estranho e remoto, como se o mundo tivesse cancelado o seu infindável progresso rumo à destruição."
 
 
 
Pontuação: 9.9/10

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

"Uma Casa na Escuridão", de José Luís Peixoto

   Afirmo-o constantemente, e esta vez não é exceção: José Luís Peixoto é um narrador sem comparação no panorama literário português contemporâneo, e Uma Casa na Escuridão apenas confirma o seu enorme talento. 
   O narrador, que é escritor, vive na casa dos seus pais, um casarão com vista para uma montanha, acompanhado pela sua mãe, já algo envelhecida e apática, e pela escrava miriam, empregada pessoal da família, e filha da anterior escrava, que é quem trata dos assuntos da casa. Num final de verão, este é arrebatado pelo surgimento de uma mulher, que ele considera ser o amor da sua vida. Mas este acontecimento dá-se de uma forma insólita: a mulher que o arrebata apenas existe dentro dele, e estes apenas interagem quando o narrador a escreve nas suas páginas em branco. Depois de umas noites de escrita febril, o narrador visita o seu editor na prisão, apresentando-lhe aquele que poderá ser o seu próximo livro. No entanto, é surpreendido pelos seus próprios sentimentos próximos do ciúme quando o editor lê aquela que está dentro de si. Então, decide não partilhar mais com o editor as suas palavras. Após o regresso do seu melhor amigo, o príncipe de calicatri, a quem confidencia os seus novos sentimentos, um senhor violinista apresenta-se em casa do narrador para dar a conhecer aos habitantes da casa a música. A música leva a que a mãe do narrador desperte da sua letargia, e esta convida o violinista a ficar com eles na casa, proposta que ele aceita. O narrador experimenta alguns momentos de felicidade, com os seus sentimentos por aquela que está dentro de si e com a sua mãe novamente desperta. No entanto, três trágicos acontecimentos, simultaneamente inesperados e inevitáveis, levam todos os habitantes e o narrador a serem sugados por uma espiral de melancolia e apatia que apenas poderia culminar num final tão lúgubre quanto arrebatador. 
   José Luís Peixoto é um simbolista exímio. Todo o livro tem uma tonalidade associada, criada e reforçada pelas imagens e descrições que o autor faz, tanto do tempo como dos objetos. Tudo, desde a trama central até aos acontecimentos que movimentam a narrativa, é uma expiação simbólica de sentimentos inexprimíveis por palavras que não as escritas. Isto é bem patente na autoidentificação do narrador com o autor através das parecenças biográficas elementares (a orfandade paterna, a publicação de um livro, etc.). Ao estilo saramaguiano, o romance é, igualmente, uma densa parábola, uma alegoria sobre a barbárie e a redenção associadas à civilização. O tom e os símbolos que enquadram a narrativa servem brilhantemente esta intenção alegórica, com imagens de brutalidade e inocência simultâneas, gerando no leitor sentimentos antitéticos de profunda beleza e de sombria tristeza, num equilíbrio delicado que poucos conseguem atingir como José Luís Peixoto. A metatextualidade característica da obra deste autor não é tão vincada neste romance como em outros, mas não deixa de estar presente, nomeadamente na sua subtil autoidentificação com o protagonista. A técnica de escrita, como é apanágio de José Luís Peixoto, é o fluxo de consciência, não havendo qualquer distinção formal entre a narração e o discurso direto dos personagens. Regressando agora ao simbolismo, aplicado aos percursos dos personagens, há dois símbolos que nos chamam a atenção. O primeiro é a omnipresença de uma multidão de gatos pretos na casa, desde a primeira página do romance, evidenciando o tom sombrio que marcará a narrativa através da simbologia corrente do gato preto. O segundo é uma revelação de enredo, mas julgamos conseguir expô-lo sem revelações substanciais. Aquando das invasões (o símbolo da barbárie), os protagonistas são mutilados e desapossados das suas faculdades distintivas, símbolo da destruição da identidade. O narrador sofre particularmente com a sua mutilação, tornando-se para sempre um ser incompleto, já desapossado daquela que está dentro dele, apenas encontrando algum consolo ou alento na inocência redentora da infância (simbolizada por crianças). Mais uma vez cremos estar perante uma metáfora de caráter geral sobre a civilização recolhida do âmago mais profundo do autor, baseando-nos na autoidentificação do autor com o seu protagonista. Não se trata de um romance de consumo fácil. Nós mesmos lemos este romance com um vagar mais exigente. Mas reemergimos da profundidade iluminados, e com a sensação de termos lido um autor no pico da sua criatividade literária. O que não deixa de ser curioso, visto que este é apenas o segundo romance publicado por José Luís Peixoto, sendo o primeiro uma obra prima em igual medida, como já referimos neste blog.
   Em suma, mais uma obra arrebatadoramente brilhante de um autor ímpar na literatura portuguesa contemporânea.  
 
Citações:
 
"Isto é o que se vê quando fechamos os olhos e continuamos a ver: a cor negra e os pequenos seres de luz que a habitam. E não se consegue olhar fixamente nem para o negro, nem para a luz. Os pontos ou as linhas ou as figuras de luz fogem da atenção. O negro é tão absoluto, tão profundo e tão infinito que o olhar avança por ele sem encontrar um lugar onde possa deter-se. Mas, naquela noite, comecei a distinguir algo dentro desse negro."
 
"Do outro lado, árvores e, depois, o oceano: a distância infinita, porque não havia sequer horizonte, o oceano misturava-se com o céu e não se conseguia distinguir o oceano do céu, não se conseguia dizer ao certo se toda aquela distância era apenas o oceano, ou apenas o céu, ou apenas o vazio infinito a avançar na distância da morte."
 
"O céu negro como o meu interior. E o céu, negro, negro, negro, rasgou-se como se todo o céu e toda a sua escuridão fossem um pano negro sobre o mundo. O céu rasgou-se num ruído de rochas a afastarem-se depois de milhões de anos. E o céu gritou um trovão que era a voz do mundo e da escuridão, um trovão que era a voz de todo o sofrimento do mundo. Um grito de terror. O céu e o mundo a dizerem um grito negro que explodia dentro de mim."
 
 
 
Pontuação: 9.9/10
 
 

Gonçalo Martins de Matos