domingo, 1 de setembro de 2019

"Um beijo dado mais tarde", de Maria Gabriela Llansol

   A obra de Maria Gabriela Llansol é ainda relativamente desconhecida do grande público, mas nos meios literários, é considerada uma das autoras mais criativas da literatura portuguesa contemporânea. Muitos são os trabalhos académicos e os artigos que se versam sobre um obra singular de uma autora sem par como esta. Um beijo dado mais tarde foi galardoado em 1990 com o Grande Prémio de Romance e Novela APE/IPLB.
   A história deste romance prende-se com a indagação psicológica da narradora pelas imagens e cenas da sua infância à luz das suas vivências e dos seus receios atuais. Como ponto de partida, a narradora enceta nessa navegação após a morte da sua tia Assafora, percorrendo os corredores e as memórias da casa onde habitou, e recordando as impressões, sentimentos e receios que sentiu na sua infância, acompanhada das diversas peças e objetos que recheiam a casa, testemunhas desses momentos do crescimento da narradora. A história é marcante no plano formal, do qual já falarei, sendo que o seu espírito, o seu âmago (pelo menos, assim parece) é descrever a desfragmentação familiar que o tempo opera, para além do crescimento que esse mesmo tempo nos oferece. 
   Conforme disse, é nos aspetos formais que a obra de Maria Gabriela Llansol se distingue. Desde logo, pela forma como a história é apresentada. A autora apresenta-nos uma fusão de estilos e de géneros, sem que cheguemos a conclusão se estaremos perante um diário, um romance, uma novela, ou mesmo se estamos perante um livro de prosa, de poesia ou de outro género. Já no que toca à história, esta não é linear na forma como vai sendo discorrida. Nesse campo, encontramos a resposta na própria obra da autora. Llansol refere-se aos fragmentos que povoam a sua obra como cenas-fulgor, fragmentos impressionistas que espelham o teor geral da narração. Estas cenas-fulgor povoam-se de figuras, que tanto podem corresponder a pessoas reais como a imaginárias, animais, objetos e mesmo frases ou conceitos abstratos. E nesta obra nota-se bem essa característica única. Em cenas breves sabemos os pensamentos da autora através de figuras como "Témia, a rapariga que temia a impostura da língua", Aossê, a estátua de Myriam ensinando Ana a ler, a Nuvem Pairando, Bach, entre muitas outras. É através desta neblina de cenas e de figuras que o leitor vai percorrendo a narrativa e absorvendo as impressões e os sentimentos conexos ao espírito geral da obra. Quanto à forma da escrita, também somos apanhados por uma estrutura muito pouco convencional, plena de quebras de parágrafo, de espaços entre palavras, de sublinhados vazios e até de palavras destacadas a negrito. Todos estes aspetos gráficos servem para reforçar o caráter fragmentário do texto. 
   Não recomendo a leitura de Maria Gabriela Llansol para os leitores de ocasião. Mas recomendo muito a leitura desta autora peculiar aos leitores mais preparados para uma experiência literária diferente de tudo o que já leram. 

Citações:
"Minha tia Assafora está com grilhões deitada na cama, e uma melodia cantada por Johann desce no quarto porque ela comigo entra em toda a parte; ela tem um volume mínimo, à mercê dos ventos. Seus olhos vêem ainda menos do que dantes, e traço intimamente, sobre eles, o sinal da música"
"1  dias de dores terríveis               sentei-me, com meu barro, junto de Johann; há muito tempo que ele não é músico               e a música,     quem me chama? Debaixo do seu peito pesado está a resposta a esta pergunta; mas eu não vejo em visão o seu corpo, não o determino; ele tornou-se agora um objeto, um grande ser móvel, que se define pelo esplendor que eu dou à sua presença."
"O antiquário deu-lhes uma pancada seca com o dedo, e verificou que eram de cristal. O som cria o ouvido, o ouvido faz o cérebro, o cérebro concebe a existência do homem só vulto que passou por aqui hoje. E levou Témia, dizendo-me: «téme-a»."


Pontuação: 8.5/10


Gonçalo Martins de Matos