quinta-feira, 24 de setembro de 2020

"Correria dos Pássaros Presos", de Ana Gil Campos

   Eis o regresso de Ana Gil Campos ao romance, três anos depois da publicação do seu terceiro livro. Desta vez em edição de autor, Ana Gil Campos cimenta a sua qualidade literária com um romance exemplarmente escrito e pertinente. 
    Cândida, após uma profunda reflexão sobre a presença social das redes sociais e da sua prevalência sobre as formas humanas de interação, decide tomar uma decisão radical e desligar-se das redes sociais. Tal ato abre-lhe as portas a percecionar os efeitos adversos que a presença das enormes quantidades de informação nas vidas das pessoas causa. Após tentativas frustradas de se habituar a uma realidade sem presença humana concreta, decide ir mais longe e, numa estadia na Capital, ouve falar de uma aldeia onde o Presidente afastou a internet através de inibidores de sinais, levando a que a aldeia se foque mais em si mesma e nas suas pessoas. De imediato toma a decisão de arrendar uma casa nessa aldeia. Na aldeia, Cândida contacta com uma realidade esquecida, de interações humanas, de empatia e de serenidade, sem a ânsia e a inquietação causadas pelo ritmo de vida da cidade. Paralelamente, vai-se espalhando pelo mundo uma pandemia, cujos sintomas consistem, entre outros, na perda da capacidade de expressão de emoções, na apatia severa e no alongamento dos polegares, efeitos adversos que são causados pelo uso excessivo de tecnologias. Até ao final da sua estadia, Cândida irá redescobrir na partilha com os habitantes da aldeia, na empatia e no sossego o fundamental da interação e da emotividade humana, refletindo profundamente sobre os malefícios emocionais do ritmo de vida exacerbado das cidades. 
   O romance é uma metáfora com toques futuristas sobre não só o estado da sociedade humana atualmente, mas também sobre a evolução, ou retrocesso, possível com esse estado atual. A escrita da autora é um deleite descritivo. As descrições que emprega são vívidas e equilibradamente sensoriais, saltando-nos das páginas para os olhos com uma força notável. O tema abordado pela autora é pertinente e acutilante, fazendo da sociedade ficcionada um eco da nossa sociedade real e atual. Os pormenores das aplicações para as pessoas se lembrarem umas das outras, dos chipes de identificação e partilha de dados, dos relógios e telemóveis inteligentes que se prendem a nós e nos hipnotizam constroem esse tal reflexo da evolução possível da sociedade na qual vivemos. Longe de ser uma distopia, a realidade que a autora nos expõe tem contornos distópicos, contornos esses que já começamos a notar nos dias de hoje. O romance divide-se em quatro partes que correspondem aos três espaços que a protagonista habita. A pandemia de incapacidade expressiva que se propaga pelo mundo é mais um pormenor muito interessante desta narrativa, sendo que a sociedade atual atravessa, de facto, uma pandemia, mas ignora a pandemia que nos assola há já alguns anos, cujos sintomas se vão intensificando cada vez mais. Os personagens que povoam esta história atingem um ponto das suas vidas em que se apercebem do que de facto está errado na realidade que conhecem, mas, tirando a protagonista e um ou outro personagem, acabam por recair na utilidade prática que o excesso de informação apresenta. 
   É um sólido romance que Ana Gil Campos nos apresenta, e que merece definitivamente a sua leitura.

Citações:
"Mas os seus olhos tão cobertos de luz fazem com que pareça cega, e a cegueira branca perante a sua própria lucidez faz com que se inquiete com esta ignorância de uma cegueira que não é sua. Sente sem saber sentir que algo não está bem, com ela, com os outros, não sabe, sente apenas uma leve irritação permanente."
"Perto dos passos distraídos da jovem, o mar galga feroz em ondas, em fúria por vidas dormentes, liberta brados sucessivos, obstinados, estendendo-se longa e velozmente até ao muro entre a praia e o passeio, em avanços e recuos, uma e outra vez, um gesto que repetirá durante dias até serenar."
"A aniversariante começa por dizer estar muito emocionada, exibindo uma folha com uma expressão de pequena lágrima a cair do olho, que não contava que os pais tivessem convidado tantas pessoas de quem ela gosta, exibindo duas folhas, uma expressão de boca aberta de admiração e outra expressão de sorriso feliz, e espera que todos se estejam a divertir tanto como ela, exibindo duas folhas, uma expressão de gargalhada e outra expressão animada com óculos de sol. Tudo isto dito sem qualquer expressão no próprio rosto, com a cara que usa sempre como uma máscara."
 
 
Pontuação: 9.6/10
 
 
Gonçalo Martins de Matos

domingo, 20 de setembro de 2020

"Maria dos Canos Serrados", de Ricardo Adolfo

   É difícil não elevar as nossas expetativas quando o autor que vamos ler vem altamente recomendado por figuras como Valter Hugo Mãe ("A nova literatura portuguesa passa obrigatoriamente por aqui") ou António Lobo Antunes ("Uma maneira de falar completamente nova na literatura portuguesa"). O resultado final é que efetivamente encontramos uma maneira nova de falar na literatura portuguesa e que, apesar de não ir propriamente de encontro às altas expetativas que tinha criado, estas não foram goradas. 
   Maria, uma jovem desbocada e "de má rês", bipolarizada no afeto e no ódio que sente pelo seu namorado gigolô, chamado de Velho, dá por si numa situação de despedimento devido ao efeito esmagador da crise e das falcatruas da chefe na empresa onde trabalhava. Assim empurrada para uma defesa surreal dos seus direitos e posto de trabalho, juntamente com os seus colegas, liderados pelo "grande líder" do sindicato, Maria dá por si a ver escapar-se-lhe qualquer hipótese de se fazer pagar das dívidas salariais devidas pela empresa. Entre as suas inquietações pela falta que o seu "Velhinho" lhe faz, as mirabolantes peripécias para resgatar a empresa e as suas próprias reflexões sobre a condição em que se encontra, Maria dá por si cada vez mais a despegar-se dos últimos resquícios do seu enquadramento numa sociedade dita organizada e decide meter mãos à obra e cobrar o que lhe é devido, a bem ou a mal. 
   Este romance é narrado na primeira pessoa, por Maria. Os capítulos são estruturados de uma forma proto-epistolar, com todos a começar com Maria dirigindo-se ao seu "Velhinho", quase sempre variando a forma como lhe dirige palavra, conforme o seu estado de espírito. São também capítulos breves, quase telegráficos por vezes, contendo as indagações da narradora ou relatando as peripécias da sua vida. Sendo narrados na primeira pessoa por uma mulher desbocada, a utilização da oralidade corriqueira e não poucas vezes grosseira é uma característica muito forte neste romance. A linguagem totalmente oral e corriqueira é brilhantemente utilizada por Ricardo Adolfo; cria mesmo a sensação de ouvirmos estes pensamentos a ser expressados pela narradora ao nosso lado. Não faltam o jargão popular, os palavrões e os neologismos aportuguesados para compor com mestria uma fala completamente livre e verosímil. Ainda nesta tendência oralizante, Ricardo Adolfo leva o sonho de Saramago em reproduzir literáriamente a fala ainda mais longe, imprimindo nos diálogos uma escrita quase fonética. Como exemplos desta forma curiosa de escrever o discurso direto podemos invocar: "sim, quem é cavia de ser?"; "vá, mostra lá, mas olha queu não tenho nada pra mostrar"; "tá ma contratar" ou "atão, comé que passa?"; isto para citar alguns exemplos desta oralização fonética. Além disto, o discurso direto é introduzido sem travessão e sem maiúsculas, apenas sem empregando estas quando se trata de nomes próprios. Esta linguagem original, corriqueira e fortemente oral que Ricardo Adolfo emprega com bastante desenvoltura são, a meu ver, os pontos mais fortes deste romance peculiar. A narrativa é feita de peripécias quase surreais que nos põem um sorriso nos lábios, quer pela sua natureza, quer pela interpretação dos factos pela própria narradora. A protagonista, outro ponto bastante fulcral deste romance, é quase completamente atípica na literatura portuguesa. Trata-se Maria de uma anti-heroína cujas ideias e conclusões se afastam daquilo que podemos considerar como uma atitude ética positiva, mas que nos deixa empáticos com a sua situação, dando por nós a apoiar, inclusive, algumas das suas decisões e atitudes, reprováveis aos olhos da moral comunitária. 
   Efetivamente, uma nova forma de falar na literatura portuguesa, a que não podemos ficar indiferentes. 
 
Citações:
"Só para dar razão àqueles que acreditam que tudo o que sobe tem mesmo de se estatelar, para nossa desgraça aterrámos no Grande Festival Está Tudo Fodido dos Cornos, organizado pela nossa caríssima doutora, com direito a variedades e palhaços famosos. Sendo que o papel de palhaço-mor foi atribuído a nous. Voilà. Cabra." 
"Mais um génio da gestão incompreendido neste país. Mais uma empresa nacional que não vai conquistar a Europa, a Ásia e o ciberespaço porque os pobres que aqui trabalham não são capazes de acompanhar a genialidade de quem quer liderar a empresa até aos quatro cantos da falência."
"A primeira coisa que fizemos assim que chegámos ao local de desemprego foi googlar se a falta prolongada de orgasmos pode ter efeitos nocivos. A lista de maleitas é infinita. Isto está a tornar-se um caso clínico crónico. Tem de haver uma droga legal para este tipo de doença. Se não há, o que é que as farmacêuticas andam a investigar? Imagina tomares uma pastilha e a seguir começares a orgasmar. É a ideia do milénio, só pode.
   Devíamos ter ido para Farmácia, devíamos não ter chumbado a Físico-Química por faltas, devíamos ter sido avisadas de que quem se balda à escola ou vai para ministro ou então está fodido."
 
 
Pontuação: 8.9/10
 
 
Gonçalo Martins de Matos

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

"A Mulher de Trinta Anos", de Honoré de Balzac

   Honoré de Balzac é considerado o pai do Realismo na literatura e é conhecido pelas suas reflexões psicológicas acutilantes. A sua obra maior, a Comédia Humana, é composta pelo conjunto dos seus romances, que constituem uma extensa análise dos diversos aspetos da sociedade francesa oitocentista. Sabendo isto de antemão, a leitura deste romance de Balzac revelou-se uma profunda desilusão. 
   A história prende-se com Julie de Chastillon, jovem mulher apaixonada pelo seu futuro marido, Victor d'Aiglemont, um homem banalmente medíocre. O pai de Julie avisa-a contra a sua tolice, mas ela não lhe liga, uma vez que apenas o seu romance lhe interessa. Algum tempo de um casamento falhado e da descoberta da fatal verdade de que o seu pai lhe avisara, Julie desenvolve um amor platónico por Lord Arthur Grenville. Saltando novamente uns anos, vemos uma Julie de trinta anos, completamente desiludida e desamparada na sua vida, apenas os seus deveres de mãe e a pressão da sociedade a impedindo de terminar com a sua vida. Conhece nesta altura da sua vida Charles de Vandenesse, jovem diplomata com quem estabelece uma relação de confidência. Saltando ainda mais um pedaço de tempo, agora observamos histórias fatalistas que assombram a existência já miserável de Julie, para além das vidas dos restantes membros da família d'Aiglemont. Por fim, no final da sua vida, Julie reflete sobre a sua vida marcada pela dor e sobre o papel da mulher na sociedade e, acima de tudo, no casamento. 
   Pende sobre a narrativa um exacerbado fatalismo. Um dos piores aspetos do romance prende-se com este dramatismo fatalista que sufoca a ação dos personagens. Nenhum personagem neste romance é natural, todos agem condicionados pela fatalidade, o que confere à narrativa um desgaste prematuro. A estrutura do romance é ainda outro ponto negativo. O romance trata-se de uma manta de retalhos de episódios de si já disparatados  cosidos uns aos outros para formarem o volume de um livro. Neste aspeto, os estudiosos da obra balzaquiana são unânimes, com Pierre Barbéri, escritor e crítico literário francês, catalogando este romance como "um dos pior construídos, mais indesejáveis e pior escritos" do autor, acrescentando o professor e tradutor húngaro-brasileiro Paulo Rónai que "esse conjunto de seis episódios disparatados, mal reunidos entre si e rematados por uma conclusão melodramática, é mais apropriado a enfastiar o leitor do que a fazê-lo procurar outras obras do romancista." Não são credenciais muito lisonjeiras para um romance. Não deixa de ser uma decisão no mínimo estranha a da coleção "Ler Faz Bem" de selecionar este de todos os outros de Balzac, claramente bem melhores para dar a conhecer o autor. Mesmo um dos pontos mais fortes de Balzac, que são as suas observações psicológicas, não se revelam neste romance, as poucas que há sendo superficiais e demasiado melodramáticas. Não é de todo um bom romance para se conhecer um autor que é descrito como um grande escritor. Fica a esperança de que obras futuras de Balzac se elevem bem acima deste nível, e que A Mulher de Trinta Anos tenha constituído uma necessidade do autor em forçar a sua publicação, mais do que vontade sua. Mas também nos deixa desconfiados das próximas obras do autor, porque Balzac historicamente viveu em constantes problemas financeiros, pelo que qualquer outra pode ter sido publicada como necessidade também. É uma péssima experiência de leitura. É deste romance que surge o termo balzaquiano associado à beleza da mulher madura, que é um pormenor insignificante mas que não deixa de ser curioso. Nem a crítica que o autor deseja fazer à imposição da sociedade à mulher de uma ditadura matrimonial inevitável consegue vingar, perdendo-se no meio da confusão fatalista da narrativa. 
   Portanto, uma péssima experiência de leitura que não recomendaria a ninguém. No entanto, não desistirei para já de Balzac, uma vez que ser apelidado de pai do realismo e de acutilante observador psicológico promete boas experiências de leitura nos seus pontos mais altos.

Citações:
"Desde que regressara de Touraine, a sua saúde debilitara-se cada vez mais e a vida parecia ser-lhe marcada pelo sofrimento; sofrimento elegante de resto, doença quase voluptuosa na aparência, e que podia passar aos olhos de pessoas superficiais por uma fantasia de mulher afetada."
"Uma tarde os dois enamorados estavam sós, sentados perto um do outro, contemplando uma das mais belas fases do firmamento, um destes céus puros em que os últimos raios do sol lançam cores ténues de ouro e púpura. Neste momento do dia as lentas diminuições da luz parecem despertar suaves sentimentos, as nossas paixões vibram ternamente e saboreamos as perturbações de não sei que violência depois da calma."
"A cor carregada da abóbada chegava, por insensíveis graduações, a confundir-se com a das águas azuladas, marcando o ponto de encontro por uma linha cuja claridade cintilava tão vivamente como a das estrelas."


Pontuação: 3.7/10


Gonçalo Martins de Matos