terça-feira, 6 de novembro de 2018

"Uma Família Inglesa", de Júlio Dinis

   Uma Família Inglesa é uma das (se não a) mais conhecidas obras de Júlio Dinis. Trata-se de uma obra bastante acarinhada pelos leitores portugueses, situada a meio caminho entre o romantismo e o realismo. Por muitos apelidada como a obra-prima do autor, mais que uma história de amor, é um grande retrato da sociedade portuense na segunda metade do século XIX, e das idiossincrasias dominantes da época.
   Desde logo são-nos apresentados, numa "Espécie de prólogo em que se faz uma apresentação ao leitor", os personagens nucleares deste romance: Richard Whitestone, um comerciante inglês, Jenny Whitestone, sua generosa filha, e Carlos (Charles) Whitestone, seu leviano filho. Desde logo lhes são atribuídas estas características elementares, que os acompanharão ao longo do romance. Gravitando à volta destas três personagens situam-se as duas últimas personagens principais: Manuel Quintino, guarda-livros da firma Whitestone, e a sua filha, Cecília. Entre a atividade comercial de Mr. Whitestone, a vida doméstica da família inglesa (corporizada no "anjo doméstico" Jenny) e a existência desregrada de Carlos, vão-se sucedendo os dias até Carlos travar conhecimento com uma misteriosa mulher mascarada, na noite de Carnaval, que lhe fica remoendo na memória. Mais tarde vem a saber que essa mulher é Cecília, e, incapaz de deixar de pensar nela, começa a desenvolver-se por ela um sentimento forte. Por seu turno, Cecília já desde o Carnaval que pensava incessantemente no irmão da sua amiga Jenny, desenvolve com o passar do tempo uma paixão pelo jovem inglês. Mediada por Jenny, que escuta os desabafos, quer do seu irmão, quer da sua amiga, a paixão vai-se desenvolvendo à revelia dos restantes personagens, não obstante uma certa resistência inicial de Jenny. Posteriormente, Carlos e Jenny aproximam-se mais devido a um acontecimento mundano envolvendo o velho guarda-livros do comerciante inglês. No entanto, mais próximos do que nunca, surgem entraves atrás de entraves à felicidade de ambos. Por fim, após a transposição desses entraves, Carlos e Cecília podem ser felizes, sendo essa felicidade transmissível a todos os personagens principais apresentados.
   O estilo dinisiano é, como foi dito, um misto de romantismo com realismo-naturalismo. Este romance não é exceção. A história que serve de base ao romance encaixa no enredo romântico típico, mas a forma que assume apresenta já os traços do naturalismo que viria a surgir na década posterior à publicação do romance. As personagens trágicas e o fatalismo que assombra as suas vidas marca a maior parte do romance. Mas esse tipo de enredo é secundarizado em função da descrição da vida familiar, comercial e social portuense, já para não falar de um ou outro ocasional deslize para a crítica social (não tão marcada como em obras realistas posteriores). No entanto, o que mais se destaca é a toda a envolvência psicológica que rodeia os personagens, e a evolução que os acompanha do início para o final. Todos atravessam mudanças nas suas opiniões, ideias e personalidades, de uma forma natural, sem parecer fictícia ou forçada. Esta obra é soberba no seu espírito, pois a história mil vezes foi contada antes, sem deixar de ser, no entanto, cativante. Júlio Dinis é um exímio prosador. O vernáculo que emprega e as construções frásicas em que o inclui, sem perder nunca o seu domínio, são sem dúvida os pontos mais fortes do romance (num romance onde não existem per se pontos fracos).
   Nunca é de mais recomendar a leitura dos clássicos. E este é um daqueles clássicos de leitura obrigatória na literatura portuguesa. Pela sua qualidade e, acima de tudo, pela boa dose de português (mesmo sendo a história sobre uma família inglesa) que nos apresenta. 

Citações:
"- Ho Butterfly, good morning! How do you do sir? - exclamou Mr. Richard, saudando o seu cão perdileto, que lhe estendeu a pata como para um shake-hand. Havia nisto um requerimento para uma fatia de fiambre, o qual o inglês não indeferiu. 
"Parece que o tipo nacional é indigno de referência (...). A causa disto é o sermos nós uma nação pequena e pouco à moda, acanhada e bisonha nesta grande e luzidia sociedade europeia, onde por obséquio somos admitidos, dando-nos já por muito lisonjeados, quando os estrangeiros se deixam, benevolamente, admirar por nós."
"Mais uma vez se verificou a eterna luta entre a teoria e a prática; uma, com seus instintos de jovem, com seus hábitos de atividade, com seus amores pelo futuro e pelo progresso; outra, com a frieza da idade madura, com uma índole essencialmente prosaica e conservadora (...) enquanto o jovem letrado desenvolve teorias de ciência social, vistas transcendentes de filosofia de direito, o jurista, encanecido no foro, examina os artigos do código, esmiúça a letra da lei, aconselha as partes e despacha os autos."


Pontuação: 9.9/10


Gonçalo Martins de Matos

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

"A Boneca de Kokoschka", de Afonso Cruz

   Este é o terceiro livro de Afonso Cruz que leio e, apesar da sua inegável qualidade e novidade, faltou-lhe qualquer coisa que não o elevou ao nível de outros livros que li do autor. Não obstante, tratou-se de um prazer enorme de leitura como Afonso Cruz sabe bem proporcionar aos seus leitores. Compõe histórias como um pintor compõe uma tela, pincela, traça e adiciona camadas, e desse trabalho resulta um belo fresco que é difícil não admirar. 
   A história é dividida em três partes. Na primeira parte conhecemos aqueles que podem ser chamados os protagonistas principais da narrativa. São eles Isaac Dresner, um jovem rapaz, Bonifaz Vogel, dono de uma loja de pássaros, e Tsilia Kacev, aprendiz de pintora. Todos moram na cidade de Dresden aquando da Segunda Guerra Mundial, período em que a cidade alemã foi devastada pela queda de toneladas e toneladas de bombas. Esta parte foca-se na forma como os seus destinos aparentemente autónomos se cruzam. A segunda parte apresenta-nos Dresner, Tsilia e Vogel vivendo juntos em Paris, onde Dresner possui uma editora pequena chamada Eurídice! Eurídice! e uma livraria de seu nome Humilhados & Ofendidos, que apenas publica autores rejeitados. Um desses autores é Mathias Popa, autor de várias obras que não conheceram sucesso algum, que oferece a Dresner um último manuscrito para este publicar: A Boneca de Kokoschka. Por fim, a terceira parte apresenta-nos os protagonistas secundários, que são Miro Korda, um músico português, e Adele Varga, uma jovem que procura o amante perdido da sua avó moribunda. Todas as histórias se relacionam umas com as outras de forma a tecer um enredo de vidas que, numa aparente autonomia, dependem umas das outras. 
   Este é um livro sobre a importância do outro. As vidas e a forma como a diversidade de vidas é fulcral para que estas existam são uma constante ao longo da obra. O livro, como muitos de Afonso Cruz, é uma maravilha da plasticidade que uma obra literária pode ter, ou seja, é um excelente exemplo de como as diferentes formas de arte não são estanques. Para além do texto brilhantemente construído, o próprio livro é visualmente aliciante. Entre parágrafos mais curtos, fotografias e desenhos do próprio autor, as duas formas de arte presentes complementam-se. Ainda neste particular, o pormenor que mais me deleitou e que mais contribui para a referida plasticidade foi o facto de nos ser apresentado, no final da segunda parte, um livro dentro de um livro. O romance A Boneca de Kokoschka escrito por Mathias Popa é-nos dado a ler, incluído na narrativa. Neste, a numeração dos capítulos segue a sequência de Fibonacci (1, 1, 2, 3, 5, 8, 13...), o que foi um pormenor mesmo interessante que o autor acrescentou para enfatizar uma das mensagens principais que pretende transmitir. A construção dessas páginas que dão corpo ao livro de Popa assemelha-se mesmo a um livro, com uma página a servir de capa e uma de contracapa, com biografia do autor e resumo do livro incluídos. Outro pormenor interessante é o facto de alguns dos personagens (e até algumas das obras) referidos fazerem parte de um outro universo que Afonso Cruz constrói em paralelo, com a sua obra Enciclopédia da Estória Universal, o que cria uma sensação de realidade ao universo literário por si criado. 
   Trata-se de uma leitura interessante e emotiva sobre a importância do outro na construção de nós mesmos que merece indubitavelmente ser lida por todos os apreciadores de uma obra original e criativa. 

Citações:
"A sua relação com o mundo e com o tempo podia ser vivida de três maneiras: a) suava quando fazia calor, sem qualquer relação causal, mas apenas simultaneidade, ou b) suava porque fazia calor (que é, aliás, o sistema que costumamos usar para interpretar os fenómenos que acontecem à nossa volta, uma explicação causa/efeito), ou, ainda, c) porque suava, fazia calor(uma maneira de ver as coisas que Aristóteles não aprovaria)."
"Repare que o bigode do Hitler tinha muita piada no Charlot. E o bigode do Charlot era abominável num Hitler. Uma coisa igualzinha, se mudarmos o contexto, determina a nossa alegria ou a nossa tragédia. Duchamp é que tinha razão com aquilo do urinol: é o contexto que cria a arte e o drama e a desgraça e a felicidade."
"Todos dentro de nós para que nos seja fácil compreender aquelas diferenças e, eventualmente, encontrar uma paz no meio dessa tensão. As guerras têm mais dificuldade de existir quando as pessoas se compreendem umas às outras. As bombas caem menos, os prédios tendem a ficar de pé, os corpos não se despedaçam com a mesma frequência, os braços deixam de voar e é possível que as gaiolas deixem de existir, os campos de concentração passem a ser museus para a nossa memória."


Pontuação: 8.9/10


Gonçalo Martins de Matos

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

"Biografia involuntária dos amantes", de João Tordo

   Na carreira dos escritores, é muito frequente a mudança. Mudança de estilo, de escrita, de tema, de mensagem. Enquanto um escritor não encontra a sua voz, é frequente que experimente em busca dessa mesma voz. Ou pode acontecer também que se esgote o que uma certa voz tinha a dizer e seja necessário procurar novas vozes com novas mensagens a transmitir. Estou inclinado a encaixar nesta segunda categoria este romance de João Tordo, visto que neste este parece procurar, mais do que a expiação da sua inquietude (mais à frente será melhor analisado), uma nova voz. 
   A história começa com dois homens e um facto. O narrador, um professor universitário galego, e Saldaña Paris, poeta mexicano, atropelam um javali numa viajem que faziam entre Pontevedra e Compostela. Parte deste facto o narrador para nos introduzir o ambiente do romance. O narrador conta-nos, depois, como conheceu Saldaña Paris e como se criou entre eles uma improvável amizade. Algo no poeta mexicano marca o narrador: uma persistente melancolia. Após esse acidente numa estrada galega, Saldaña Paris pede ao narrador que leia um manuscrito deixado pela sua mulher, Teresa, morta de cancro. A leitura que o espera é a narração de uma vida inquieta e marcada pela dor. Após a leitura, o narrador não conta ao poeta o que leu, o que culmina num ataque de ansiedade que o deixa letárgico. Cabe ao narrador, enquanto o poeta se encontra nesse estado, deslindar o complexo passado de Teresa e conseguir alguma paz para Saldaña Paris e para si próprio. De revelação em revelação, o narrador vai compondo a razão da persistente melancolia de Saldaña Paris, em busca de redenção e alguma paz.
   O romance tem um tom obsessivo. No sentido em que há uma inquietação que remói a cabeça do narrador e este faz de tudo para encontrar algum consolo. As dúvidas e o desencanto assaltam-no e ele envereda numa procura que não sabe bem explicar porquê para amenizar a inquietação que o assola. A melancolia que embrenha o texto, atrevo-me a dizer, é a melancolia do próprio autor. Em muitas das suas intervenções, João Tordo fala do ato da escrita como a amenização de dúvidas e inquietações, como a procura por paz para a alma. E é bem patente neste romance essa inquietação, mais do que noutros do autor. A busca por uma resposta que acalme as dúvidas que o assaltam. Algo que também sobressai deste romance é a mudança que se anuncia no estilo do autor. Este foi o último romance que João Tordo publicou antes da sua famosa "Trilogia dos Lugares sem Nome", livros que são já uma fase diferente do escritor. Este romance tem muito desse desejo de mudança. É mais experimental, ensaia formas de escrever e pensar diferentes e varia entre estas ao longo da obra. Mais uma vez, João Tordo consegue transformar algum aspeto da sua vida (Saldaña Paris tem um correspondente na vida real) num romance de qualidade que nos prende até ao fim, sendo construído, como os anteriores, em crescendo, sendo desvelados aspetos nos momentos em que têm de o ser de forma a que tudo se encaixe a caminho do final. Final esse que deixa uma nota de esperança, após toda a angústia do resto da obra. Novamente, o autor revisita personagens de outros textos para criar a sensação de realidade de que falei anteriormente, dando a impressão que sim, tudo isto aconteceu, não é mentira. Um pormenor interessante é a transfiguração que o autor faz para um personagem seu, referido no texto, que será descoberto por quem o ler se estiver atento. Achei interessante o autor colocar-se dessa forma e da forma como é escrito, o que acaba por confirmar a minha suspeita da inquietação do autor. 
   Recomendo esta leitura. É um texto pesado e extremamente melancólico, mas é facilmente ultrapassável com a leitura das suas páginas e com a descoberta, pouco a pouco, de alguma luz nessa escuridão. 

Citações:
"Era a sua melancolia que me encantava, uma melancolia que ele não procurava abater; uma melancolia duradoura e persistente, que chegara para ficar. Essa condição insalubre que chama a si fantasmas e que abre brechas nas convicções mais empedernidas. (...) Saldaña Paris era verdadeiramente melancólico: um homem de outro tempo que vivia aprisionado neste"
"Nunca entendi esta espécie de maldade, Benxamín. Ou, pelo menos, não a entendia então. Que prazer poderiam ter eles em rir-se da incapacidade de alguém? Se vissem um cego esbarrar numa parede teriam a mesma reação? Ou um aleijado a cair das escadas?"
"Permanecia entre nós o grito de velhos terrores; a constatação de que, ainda que as respostas fossem surgindo, a melancolia que era agora minha me mostrava que o mundo era feito de uma matéria porosa que se desfazia assim que a tentávamos tocar; que tudo aquilo que julgávamos sólido não passava de gelo, e que esse gelo, à luz morna que sempre transportávamos quando procurávamos respostas (...), se derretia e se transformava em água; e que, por mais perfeita que fosse a concha que formávamos com as mãos, essa água era impossível de suster."


Pontuação: 8.3/10


Gonçalo Martins de Matos

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

"O Manual dos Inquisidores", de António Lobo Antunes

   Poucos romanceiam como António Lobo Antunes. Se com a leitura d' As Naus fiquei maravilhado, o fôlego com que este O Manual dos Inquisidores nos é narrado apanhou-me desprevenido. Mas não me surpreendeu, visto que, como antes disse, de Lobo Antunes podemos esperar uma visão muito particular e desafiadora. Aos poucos, com as leituras que vou fazendo de ambos, compreendo porque é depositado em Lobo Antunes e Saramago o domínio da arte do romance do final do século XX. 
   A história é simples. Seguimos os percursos de um pai e de um filho: João, o engenheiro, o filho; e Francisco, o ministro, o pai. Francisco é (ou foi) ministro de Salazar durante o Estado Novo, e o que vemos desenvolver-se diante nós é a ruína dessa figura e da sua família (e da sua quinta em Palmela), principalmente com a Revolução dos Cravos e posteriores acontecimentos. Desde a infância de João à velhice de Francisco seguimos os seus pensamentos e inquietações, acompanhados dos pensamentos, inquietações e cogitações de outros personagens que os rodeiam ou que de alguma forma intervieram na sua particular história, tais como Albertina (Titina), governanta de Francisco e João, Paula, irmã de João, Milá, amante de Francisco após a sua separação, entre outros. Todas estas vozes compõem o retrato de uma família que não mais é que um retrato de uma era na História do país (ou do final desta).
   Formalmente, o romance é composto por cinco relatos, os quais se dividem em três relatos e três comentários (tirando o último relato, que apenas tem dois comentários). Os relatos são narrados pela voz de um personagem em específico, pertencendo estas, por ordem, a João, a Titina, a Paula, a Milá e a Francisco, cada um relatando as suas preocupações e recordações. Os comentários são feitos pelas vozes dos que rodeiam estas personagens centrais, como a mulher de João, a cozinheira da quinta de Palmela, um funcionário de um prédio, a mãe de Milá, entre outros. O estilo de Lobo Antunes é labiríntico, é preciso ter atenção ao que se está a ler. A sua escrita segue o estilo de fluxo de consciência, o que reproduz o processo mental das personagens, acompanhado ocasionalmente de traços de oralidade, principalmente quando os personagens interrompem os seus pensamentos para dizer ao narrador para não escrever certa passagem ou para tomar certa ação. Acima de tudo, aqui se evidencia a característica marcante da obra posterior de Lobo Antunes, que é a quebra da frase para adensar o fluxo de consciência, o que leva a que a falta de conclusão, de pontos finais, nos leve a continuar a ler até encontrarmos essa conclusão. Pelo menos foi esse o efeito que surtiu em mim. O vernáculo é também ponto assente do estilo antuniano, acompanhado de assíndetos e analepses, que suportam a oralidade e fluxo de consciência da escrita, e, acima de tudo, pelas suas metáforas e imagens paradoxais, que são um deleite tão bom de leitura. Por sua vez, a quinta de Palmela representa Francisco e o seu elemento. Degrada-se e desaparece no final, assim como tudo o que Francisco defendeu e representou. Para mim, o pormenor que neste romance me mais marcou a nível de estrutura foi o final (sem entrar em revelações de enredo). Este romance termina em aberto, o último parágrafo da narração não tem um ponto final nem uma conclusão lógica, termina com um simples "que apesar de tudo eu", o que me ofereceu uma cereja no topo do bolo da leitura desta obra. 
   Esta leitura afigura-se como obrigatória para qualquer apreciador de um bom e apreciável relato em bom português e soberbamente escrito. 

Citações:
"um corredor com empregados que escreviam à máquina, convocatórias e avisos que proibiam fumar num painel de cortiça, pessoas à espera e ao fim do corredor uma prateleira de livros, um calendário de parede, dossiers no soalho, uma mesa de repartição pública preenchida por códigos e processos e o juiz entrincheirado de caneta em riste por detrás das leis como para se defender de nós, (...)"
"(...), o som das vozes calou-se, escutei passos a afastarem-se a caminho da estação de comboios lá em baixo ao pé da baía, e uma serenidade enorme como se fôssemos morrer sem morrer, como se deixássemos de respirar continuando vivos, (...)"
"(...), o ano passado vi um homem arrastar-se para o santuário de barriga no chão como uma osga e a mulher a protegê-lo da chuva com a sombrinha, o homem, exausto de ser cobra, sentava-se a descansar e ela, aborrecida, alfinetando-lhe as nádegas com as varetas
   - Com o raio da promessa que fizeste nem daqui a um mês lá chegamos"
"  - Se calhar o meu pai esqueceu-se madrinha
   e a minha madrinha a precisar de soro também
   - Cala-te
   ela a dizer
   - Cala-te
   e a baterem à porta como se o
   - Cala-te
   fosse uma senha, um código, um sinal, (...)"


Pontuação: 9.9/10


Gonçalo Martins de Matos

segunda-feira, 30 de julho de 2018

"As Dez Figuras Negras", de Agatha Christie

   And then there were none. Esta expressão, bastante enraizada na cultura popular anglófona, tem a sua origem nesta que é uma das melhores e mais conhecidas histórias de mistério de Agatha Christie, e da própria literatura policial. Há muitos anos que alimentava em mim a vontade de ler esta história tão icónica e, por fim, consegui-o. E as minhas expetativas foram mais do que preenchidas, foram completamente abaladas. Esperava uma história muito boa, mas descobri um romance brilhantemente escrito, pensado e composto, merecedor da fama que detém. Este romance é, inclusive, um dos maiores best-sellers de sempre. 
   A premissa da história é igualmente famosa. Dez pessoas são convidadas a ficar uns dias numa ilha privada, a convite de um misterioso U. N. Owen. São convidados o juiz Wargrave, o dr. Armstrong, Vera Claythorne, Philip Lombard, o general Macarthur, Emily Brent, Anthony Marston, William Blore e Thomas e Ethel Rogers, todos por motivos distintos, mas de forma semelhante. Depois de ouvirem uma voz misteriosa que os acusa a cada um de ter cometido um assassínio, começam a ser assassinados, um a um, a seguir a letra de uma lengalenga infantil. Caberá aos sobreviventes determinar quem deles é o misterioso assassino, sendo que reviravolta atrás de reviravolta, a história segue por caminhos tortuosos até ao seu arrebatador final. 
   Agatha Christie foi um génio da literatura policial. Há histórias suas que fazem parte do imaginário de milhões de leitores, e esta é uma delas. Não só pelo romance, mas por todas as adaptações cinematográficas e paródias da história. A escrita é simples, sem grandes descrições, é objetiva e direta. No entanto, o que maravilha nesta história é o suspense criado com mestria pela autora que nos cola à leitura e nos agarra, sem termos intenções de alguma vez pousar o livro. É brilhante o seguimento do crime de acordo com a canção infantil, é brilhante a forma como nos sentimos compelidos a continuar. É brilhante a explicação final de como foram perpetrados os assassínios. É brilhante o desaparecimento de cada figurinha de loiça à medida que se vão desaparecendo os dez personagens. É brilhante, em suma. Mas acima de tudo, o que se destaca deste romance é o terror psicológico a que são submetidos os que vão sobrevivendo, prostrados pelo medo, mas acometidos pela culpa que os persegue devido aos seus crimes pessoais. É esse ponto que efetiva a mestria de Agatha Christie. As personagens que conhecemos e que acompanhamos são pessoas que conseguiram cometer os seus crimes à margem da lei, não podendo esta ser aplicada quanto àqueles. É com esta premissa que o assassino age, e as revelações que são feitas ao longo da história adensam e enriquecem a trama. É um romance magistralmente composto, sem dúvida alguma.
   Este livro é um dos obrigatórias da literatura policial. E é por isso que deve ser lido, quer por admiradores do género, quer por admiradores de outros géneros que não este. Trata-se de uma obra indispensável de leitura. 

Citações:
"Vera inclinou-separa a frente. - Curioso! Quantas são? Dez? - E logo exclamou: - Tem graça! Acho que são os dez meninos negros da lengalenga infantil. A lengalenga está encaixilhada no meu quartoe pendurada por cima da lareira."
"- Quero dizer - esclareceu Lombard - que assim se explica a Ilha do Negro. Há crimes pelos quais não se pode fazer pagar quem os perpetrou. É o caso dos Rogers. Outro caso é o do juiz Wargrave que cometeu o assassínio dele estritamente nos quadros da lei."
"E todos eles, subitamente, tinham menos a aparência de seres humanos. Assumiam formas mais animais. Como uma velha tartaruga cansada, o juiz Wargrave estava sentado, corcovado e imóvel, os olhos vivos e alerta. (...) Os sentidos de Philip Lombard pareciam ter-se intensificado e não diminuído. Os seus ouvidos reagiam ao mínimo som. (...) E sorria constantemente, os lábios arreganhando-se e mostrando dentes compridos e brancos."


Pontuação: 10/10


Gonçalo Martins de Matos

sábado, 28 de julho de 2018

"Maresia e Fortuna", de Andreia Ferreira

   Este livro representa a incursão de Andreia Ferreira num género novo, o que tanto pode ser positivo como negativo. Neste caso, felizmente, foi positivo. E muito. A autora aventura-se num novo género sem medo e confiante, e isso nota-se, e bem, aquando da leitura. A piada de ler os livros da autora está no facto de conseguir o feito surpreendente, e, diga-se de passagem, não tão fácil, de conjugar a leitura rápida que é ler literatura light (termo aqui despegado da conotação negativa que se atribui a esse tipo de literatura), mas que de suave e sereno nada tem. 
   O jovem Eduardo vive na Apúlia juntamente com o seu irmão Simão e a sua mãe Adelaide, e leva uma vida serena no seu último verão como menor de idade. Não tem grandes preocupações que o ocupem e pacatamente leva a sua vida. Júlia, uma mulher bela com uma história conturbada, visita a pequena vila piscatória na companhia da sua sobrinha Vanessa, que julga que vem passar férias com a sua tia, quando esta tem os seus propósitos ocultos. É com o cruzamento destas duas histórias paralelas que a ação do livro se inicia. Quase como que in media res, são-nos apresentados os intervenientes principais desta história, para depois nos irem ser desvendados os pormenores. E é assim, de pormenor em pormenor, que vamos descobrindo as vidas destes personagens e as suas preocupações e inquietações. Eduardo preocupa-se que o seu relacionamento com Bianca esteja prestes a terminar e Júlia preocupa-se em desvendar algo no seu passado que acredita ser uma mentira que todos lhe contaram (é-nos apresentada a personalidade errática de Júlia). Assim é a primeira parte da história. A segunda parte é mais reveladora, sendo que irá escrutinar o passado de Júlia e a conexão desta com a família de Eduardo. E assim, de revelação em revelação, avançamos em catadupa a um trágico final. E, não se satisfazendo com o abalo que faz da história toda, a autora termina a história com um último retirar do tapete debaixo dos nossos pés. 
   A história, como disse, encaixa mais no conceito de literatura light. Mas, ao contrário do que este tipo de literatura normalmente nos apresenta, esta narrativa nada tem de segurança, felicidade, paz, sossego e tranquilidade. É uma história trágica, mas contada de uma forma sóbria, sem ser crua, e crua sem ser pobre. As suas descrições não são extensas e o melodramatismo que poderia resultar de uma história deste género não revela a sua face. A sua escrita conduz-nos, e nós deixamos que o faça, pelos sinuosos caminhos que vai desnovelando, pega-nos por uma mão e leva-nos, quase como que em corrida, pelas páginas do livro. A maior qualidade de Andreia Ferreira é a sua análise e construção da psique humana, sendo que os seus personagens estão muito bem construídos e não nos parecem falsos ou forçados. Não senti grande apego ao protagonista, Eduardo, principalmente à medida que avançava a história, mas a sua co-protagonista, Júlia, é a verdadeira personagem trágica. Não podemos deixar de sentir pena pela sua história, mesmo que condenemos as suas ações e os seus pensamentos. Simão é, efetivamente, o personagem com que mais simpatizei, uma boa pessoa a quem a tragédia decidiu derrear e subjugar, injustamente. Os nossos personagens nada mais são que os peões da Fortuna (aqui no sentido de destino) a que alude o título. Por falar no título, a Maresia que é também referenciada no título é omnipresente na narrativa, o Mar é uma presença constante ao longo da história que se desenrola alheia a si (ou talvez não). A Apúlia é uma das praias mais frequentadas pelos habitantes do Distrito de Braga, pelo que este livro possui um traço de familiaridade que nos embala, a nós que crescemos a frequentar aquela praia e a visitar os famosos moinhos apulienses. Conseguimos sentir o cheiro a maresia quando lemos as páginas deste livro. 
   Resta-me recomendar esta leitura. É acessível, sóbria, viciante e, acima de tudo, tem qualidade. Prevejo e desejo o crescimento de Andreia Ferreira, ocupando o seu lugar nas suas surpreendentes histórias de que tanto gostamos.

Citações:
"O poder da maresia, esse odor que trazia ao presente o passado nostálgico e memórias boas, memórias que a enlevavam dentro de si mesma, memórias que não se lembrava de terem ocorrido."
"Não era fã desses temas e mantinha-se cético quanto à purificação das almas pela tragédia. A existirem deuses, terão mais com que se entreter do que brincar com o destino dos homens."
"A tarde recusava-se a dar lugar ao crepúsculo, e foram os ponteiros do relógio a desmembrar a reunião de uma juventude sem problemas, enviando-os de volta aos seus lares."


Pontuação: 7.6/10


Gonçalo Martins de Matos

segunda-feira, 23 de julho de 2018

"2666", de Roberto Bolaño - Parte 3


A Parte de Archimboldi

   Por fim, chegamos à parte relativa ao esquivo escritor alemão que tanta paixão despertou nos críticos referidos na primeira parte deste monumental romance. Começamos por saber que o seu nome é Hans Reiter, nascido numa aldeia alemã no período entre guerras, filho de um ex-soldado prussiano e de uma mulher que apenas tinha um olho, chamados apenas por "o coxo" e "a zarolha". Também sabemos que tem uma irmã, de seu nome Lotte. Após uma pequena introdução à sua infância na sua pequena aldeia, acompanhamos a existência de Reiter na Segunda Guerra Mundial, enfileirado nas tropas alemãs. Terminando a guerra, Hans, após uma temporada num campo de prisioneiros, vai viver para Colónia com uma rapariga que conhecera ainda durante a guerra, Ingeborg. É então que Reiter adota o seu pseudónimo Benno von Archimboldi. Após o seu primeiro contacto com um editor de Hamburgo, o senhor Bubis, não só este consegue uma editora para todas as suas obras como reencontra alguém do seu passado, que é a esposa do editor. Após mais deambulações de Archimboldi, chegamos à vez da história de Lotte, que vivera a sua vida paralela à do irmão, até o reencontrar muitos anos depois, não sem antes ter casado e produzido um filho. Este jovem, fruto da irmã de Archimboldi, é a ligação entre a história anterior e esta. Entre todos estes momentos-chave, conhecemos variadíssimos personagens que compõem, mais do que a história de Archimboldi, a história da devastação que a guerra causa e do seu rescaldo. 
   Também nesta parte se nota o estilo particular do autor, com as descrições a roçar o inverosímil das personagens e do ambiente que as rodeia. O que mais nos marca nesta parte é as experiências diversas do personagem principal que, juntas, contribuem para a sua história pessoal e literária. As vivências que acompanhamos nesta parte do romance versam sobre a devastação e a reconstrução, e a impotência do ser humano perante isto tudo. Nota-se, mais do que nunca, o caráter inacabado da obra, nota-se demasiado, infelizmente, o caminho que ficou por percorrer, algo que não afeta, no entanto, a solidez do romance.
   E assim terminou a monumental obra que é 2666. Com o fecho do círculo que iniciou, sem se deixar abater pela sua imensidão. As partes que abriram alguma linha vieram todas dar ao ponto que queriam, e as que ficaram por atar decididamente foi devido à morte do autor e à inevitável interrupção que tal provoca. 

Citações:
"A quarta dimensão, dizia, é a riqueza absoluta dos sentidos e do Espírito (com maiúscula), é o olho (com maiúscula), isto é, o Olho, que se abre e anula os olhos, que comparados com o Olho são apenas uns pobres orifícios de lodo, fixos na contemplação ou na equação nascimento-aprendizagem-trabalho-morte, enquanto o Olho sobe pelo rio da filosofia, pelo rio da existência, pelo rio (rápido) do destino. (...) A quarta dimensão, dizia, só era exprimível através da música. Bach, Mozart, Beethoven."
"(...) quando é bem sabido, pensou Archimboldi, que a História, que é uma puta simples, não tem momentos determinantes, mas é sim uma proliferação de instantes, de brevidades que rivalizam entre si em monstruosidade."

Pontuação d' A Parte de Archimboldi: 1.9/2


Apreciação geral de 2666

   Que leitura! Sinto-me diferente após a leitura de uma obra tão extensa e exigente. Mas sinto-me satisfeito com a leitura da obra e, principalmente, da marca pessoal de 1025 páginas lidas. Foi tão extensa que tive de a fasear ao longo de um ano, com receio de me aborrecer e perder o interesse na monumental leitura que acabei de efetuar. Dito isto, pontos a considerar quanto a esta obra de Roberto Bolaño:
   - Por um lado, é uma pena que a obra esteja inacabada, pois deixa um sabor agridoce ver o evoluir da narração para terminar numa nota tão claramente incompleta. Por outro, talvez não fosse o que é se tivesse sido acabada. Nunca se sabe que caminhos teriam sido tomados em vez de outros que o foram efetivamente caso a história desembocasse num final diferente. 
   - Nunca saberemos, também, que caminho teria tomado Bolaño com o final deste monumento literário, mas sabemos, graças a uma nota editorial, que o autor tinha algo grande em mente, um final que, se tivesse sido concretizado, seria a catarse perfeita para uma obra tão extensa e exigente. 
   - Foi uma leitura de altos e baixos, umas vezes viciante, outras vezes aborrecida, marcas de uma obra ainda em construção, ainda em busca da sua estrutura elementar. 
   - Sem sombra de dúvida que é um enorme testemunho sobre a humanidade, naquilo que nos distingue uns dos outros, mas mais, talvez, naquilo que nos aproxima. Também é uma obra que versa sobre a loucura, o medo, a destruição e a reconstrução. 
   Uma obra prima, no fundo. E se merece ser lida... caberá aos curiosos (e corajosos) descobrir por si mesmos.

Citação final:
   "A resposta de Archimboldi surpreendeu Bubis. Nela dizia-lhe que Sísifo, uma vez morto, fugira do Inferno através de um estratagema de ordem legal. Antes que Zeus libertasse Tânato, e sabendo Sísifo que a primeira coisa que a morte faria seria ir à procura dele, pediu à sua mulher que não cumprisse os requisitos fúnebres estabelecidos. Assim, ao chegar aos Infernos, Hades censurou-o por isso e todas as potestades infernais clamaram, como é normal, aos céus ou na abóbada do Inferno e arrancaram cabelos e sentiram-se ofendidas. Sísifo, não obstante, disse que a culpa não era sua, mas sim da sua mulher e pediu, digamos, uma autorização penal para subir à terra e castigá-la.
   Hades pensou: a proposta de Sísifo era razoável e foi-lhe concedida a liberdade sob fiança, válida unicamente para três ou quatro jornadas, as suficientes para proceder à justa vingança e pôr em marcha, nem que fosse um pouco tarde, os requisitos fúnebres oficiais. Claro que Sísifo não esperou que lhe dissessem duas vezes e voltou à terra, onde viveu de forma feliz até ser muito velho, não era em vão que era o homem mais astuto da terra, e só regressou aos Infernos quando o seu corpo não deu mais de si. 
   Segundo alguns, o castigo da rocha só tinha uma finalidade: a de manter Sísifo ocupado e não permitir que a sua mente inventasse novas argúcias. Mas no dia em que Sísifo menos pensar vai-lhe acontecer alguma coisa e vai voltar a subir à terra, concluía Archimboldi na sua carta."


Pontuação de 2666: 7.5/10


Gonçalo Martins de Matos

quinta-feira, 28 de junho de 2018

"2666", de Roberto Bolaño - Parte 2



A Parte de Fate

   Nesta parte é-nos relatada a existência monótona de Oscar Fate, um jornalista nova-iorquino a quem é dado o trabalho de fazer uma reportagem sobre um combate de boxe a ocorrer no México. Durante esta sua viagem, a sua estadia em Santa Teresa divide-se entre a sua persistente solidão e a sensação de irrealidade que rodeia o ambiente da pequena cidade. As personagens com quem se cruza apenas servem para perpetuar esta sensação de sonho do qual não é possível acordar. Consegue-se dividir a narração num antes e num depois do combate de boxe, sendo que a realidade e irrealidade se distorcem conforme se passa do antes para o depois. Na história, aparece novamente Amalfitano e a sua filha, sendo-nos apresentados outros personagens, destacando Chucho Flores, o jornalista mexicano que recebeu Fate e o introduziu à irrealidade da cidade, e Guadalupe Roncal, jornalista, também mexicana, com a função de escrever sobre os assassinatos das mulheres nessa região de Sonora. 
   A narrativa tem uma construção descendente, ou seja, os factos narrados começam estáveis e "normais" (aquela falsa normalidade que é a rotina), passando lentamente para o caos e a irrealidade, com o combate de boxe que tudo começou a servir de interlúdio entre a estabilidade e o caos. A escrita segue o formato da parte anterior. Mais uma vez, não há conexão direta entre esta e as partes anteriores, mas aos poucos vais sendo desenredada a história principal do romance, principalmente focada, nestas duas últimas partes, nos assassinatos das mulheres no deserto de Sonora. 
   Esta parte obrigou-me a suspender a leitura do livro, pois a leitura não me estava a colar. Apesar desse pequeno facto, a retoma da leitura renovou a minha vontade em descobrir esta história que dizem ser memorável. Mal posso esperar por ler mais.

Citações:
"DINHEIRO. Em poucas palavras, para Seaman o dinheiro era necessário, mas não tão necessário como as pessoas diziam. Pôs-se a falar do que chamou «relativismo económico». Na prisão de Folsom, disse ele, um cigarro equivalia a uma vigésima parte de uma lata pequena de compota de morango. Na prisão de Soledad, pelo contrário, um cigarro equivalia a uma trigésima parte dessa mesma lata de compota de morango. Em Walla-Walla, no entanto, um cigarro equivalia à lata de compota [...]"
"Charly Cruz, como já se disse, era um homem tranquilo, e durante aqueles segundos a sua tranquilidade propriamente dita, a sua disposição calma, não variou, mas aconteceu algo no interior do seu rosto, como se a lente através da qual observava o seu pai, recordava Rosa, já não lhe servisse e começasse, calmamente, a mudá-la, uma operação que durava menos de uma fração de segundo, mas durante a qual, necessariamente, o seu olhar ficava nu ou vazio, de qualquer modo desocupado, pois retirava-se uma lente e colocava-se outra e as duas operações não se podiam fazer ao mesmo tempo [...]"

Pontuação d' A Parte de Fate: 1.1/2



A Parte dos Crimes

   Esta parte da obra é a mais extensa, e tem as suas razões. A narrativa desta parte tem um enredo principal que a atravessa do início ao fim: os assassinatos irresolúveis de mulheres na cidade de Santa Teresa. Pontualmente, existem vários sub-enredos que introduzem outros temas, mas todos eles, como os afluentes de um rio, vão desaguar no enredo principal. É nesses sub-enredos que conhecemos personagens como Juan de Dios Martínez, inspetor da Polícia Judiciária, Epifanio Galindo, agente da polícia de Santa Teresa, Lalo Cura, protegido de Epifanio, Klaus Haas, acusado e preso pelos assassinatos das mulheres, Sérgio González, jornalista da Cidade do México, Florita Almada, uma senhora que afirma ser vidente e que dá a conhecer ao público televisivo os assassinatos que decorrem em Santa Teresa, entre outros. Estes outros são personagens que pontuam a história, abrindo certos caminhos ou fechando outros por onde a história flui. 
   Quanto à estrutura da narrativa, pode ser dividida em duas partes temporais e quatro partes temáticas. Temporalmente, há um antes e um depois de Klaus Haas ser preso, sem julgamento e sem provas concretas que o condenem, ficando nós sem saber realmente se este é culpado ou não, o que coincide com a atenção que os meios de comunicação dão aos assassinatos em Santa Teresa. Tematicamente, temos quatro momentos: as investigações da Judiciária aos assassinatos das mulheres em conjugação com outros delitos ocasionais; a investigação de Juan de Dios ao caso do profanador de igrejas conhecido como o "Penitente" e a sua relação com Elvira Campos, em conjugação com a entrada de Lalo Cura para a polícia ao abrigo de Epifanio; a denúncia de Florita Almada ao caso dos assassinatos de Santa Teresa e a procura de Harry Magaña por Miguel Montes; e a conferência de imprensa de Klaus Haas (já preso) desvendando os verdadeiros culpados dos crimes, a história que a deputada Azucena Esquivel Plata conta a Sérgio González sobre o porquê de se insistir em investigar sobre os assassinatos das mulheres e a perícia que o ex-agente do FBI Albert Kessler faz a convite das autoridades mexicanas relativa aos assassinatos. 
   Esta parte foi a mais interventiva do autor, até agora, pois notava-se a sua vontade de denunciar. Denunciar tudo. A brutalidade contra mulheres que ainda hoje é um problema na América Latina, a incompetência do poder estabelecido em contrariar, causado por uma  apatia conjugada com dinheiro e jogos de poder, a promiscuidade entre política e narcotráfico, um problema atualíssimo, entre outros países da América Latina, no México. Nota-se a sua vontade de denunciar, mas acima de tudo nota-se o embate entre a vontade de mudar a situação com a apatia da sociedade face a isso tudo. O que marca esta parte de início ao fim é a enumeração taxativa que o autor faz dos assassinatos das mulheres, apresentando os elementos-chave de cada caso. Nenhum caso é resolvido pela incompetência (ou aparente incompetência) da polícia e das autoridades. Os únicos que questionam e desejam que se investiguem melhor os casos são Juan de Dios e Lalo Cura, mas são sempre demovidos de o fazer. Todos são culpados, parece gritar esta parte do romance. 
   Esta parte sim, fascinou-me e prendeu-me de uma maneira à sua leitura. Foi uma leitura extensa, mas emergi vencedor. Agora que passei o meio do livro, masi vontade ainda tenho de descobrir esta imensa obra e, acima de tudo, descobrir o nó que irá atar todas estas partes. 

Citações:
"O ataque à igrejas de San Rafael e de San Tadeo teve mais eco na imprensa local do que as mulheres assassinadas nos meses anteriores." em conjunto com "embora o padre da igreja de Santa Catalina lhe tenha sugerido que abrisse bem os olhos, pois o profanador de igrejas e agora assassino não era, a seu ver, a pior mácula de Santa Teresa."
"O senhor interrogar-se-á [...] porque é que o edifício está tão vazio. Sérgio disse-lhe que o mais lógico seria pensar que todos os inspetores estavam na rua, a trabalhar. A esta hora, não, disse Márquez. Então, porquê?, disse Sérgio. Porque hoje é o jogo de futsal entre a equipa da polícia de Santa Teresa e a nossa. [...] o inspetor disse-lhe para ele não tentar encontrar uma explicação lógica para os crimes. Isto é uma merda, esta é a única explicação, disse Márquez."

Pontuação d' A Parte dos Crimes: 1.8/2

sexta-feira, 30 de março de 2018

"As impertinências do Cupido", de Ana Gil Campos

   Saído de leituras pesadas e extensas, nada como recuperar o fôlego com uma leitura leve mas que não caia naquela categoria em que caem a maioria das light novels que são publicadas atualmente e que deixam um bom leitor amargurado com o mercado livreiro. É precisamente nesse meio que se encontra este terceiro livro de Ana Gil Campos: é um livro leve, de leitura rápida e escrita sóbria, sem cair em clichés e lugares-comuns dos livros fast-food.
   A história (ou histórias) segue a vida de diversos moradores de um bairro brasileiro, o Itaim Bibi, nas suas peripécias, frustrações, deceções, satisfações e inquietações amorosas. Seguimos as vidas de Mónica e Eduardo, Júlia, Roberto, Joana e Vasco, Rodrigo, Sara, Sofia, e outros, cujas visões, frustrações e cogitações sobre o amor nos dá um vislumbre sobre as várias formas de interpretar o amor nos dias que correm e sobre a pluralidade de formas que podem as relações amorosas assumir. 
   Formalmente, este livro aparenta ser um conjunto de contos, mas na verdade estilo é mais episódico, ou seja, não existe uma história principal a conectar todas as histórias, mas existe um fio condutor que nos guia através de todos os episódios que nos são narrados. As personagens são-nos apresentadas, são desenvolvidas e depois convivem umas com as outras (uma vez que vivem no mesmo bairro), interagindo das várias maneiras possíveis. A narradora tem uma voz peculiar. É romanticamente cínica, ou seja, relata-nos tudo o que se passa com vocábulos típicos dos românticos, mas que são empregues ironicamente. Nota-se que a narradora segue com algum divertimento as peripécias das personagens, mas com uma certa impaciência para as suas loucuras e devaneios. A escrita, por seu lado, é bastante agradável e sóbria, não é muito pesada e entretém, que é o objetivo, afinal, deste conjunto de episódios. 
   Posto isto, e porque, como já referi, há cada vez mais leituras leves que são uma autêntica palhaçada, recomendo que sejam lidos mais livros como este, que não são grandes romances ou literatura mais psicológica, mas mesmo assim entretêm sem esventrar os conceitos de qualidade literária e escrita acessível. 

Citações:
"O casal sabe que Sara e Rodrigo não suportam estes caprichos pirosos que os amigos comprometidos têm de se armarem em cupidos que sonham ser padrinhos de casamento de alguém. Contudo, Joana e Vasco não imaginam que, a partir deste jantar, a relação entre os quatro mudará para sempre."
"Já na joalharia do Shopping Iguatemi, Daniela pede para ajustarem a aliança do Francisco à medida do seu próprio dedo, e Francisco pede para alargarem a aliança da esposa à medida do seu dedo, isto é, pretendem trocar entre eles as alianças que trocaram na cerimónia do casamento.
- Assim, estaremos casados connosco próprios e seremos fiéis a nós próprios"


Pontuação: 5.8/10


Gonçalo Martins de Matos

terça-feira, 27 de março de 2018

"A Quinta Essência", de Agustina Bessa-Luís

   Agustina Bessa-Luís tem, nas letras portuguesas atuais, lugar cativo entre os seus maiores cultores. De facto, de entre as maiores virtudes apontadas a esta autora está a sua desconexão a escolas ou estilos, praticando um estilo muito próprio que a demarca dos demais autores. E, tendo esta informação como ponto de partida, eis que descubro por casa um romance relativamente desconhecido da escritora, cujas informações são escassas. Naturalmente, algo tão misterioso despertou logo a minha curiosidade e decidi lê-lo. O resultado é misto, no entanto. Esperava uma leitura apaixonante e não me desiludi. Mas também me desiludi. Mais à frente falarei sobre esse estranho misto de sensações. 
   O romance A Quinta Essência segue a história de José Carlos Pessanha, última geração de uma casa burguesa cujas posses e estilo de vida lhes foram retirados com a ocorrência da Revolução dos Cravos. Sentindo-se despojado do luxo a que estava habituado, José Carlos jura vingança contra uma classe desconhecida e inclassificável, mas personificada no coronel Sequeira, militar em quem o jovem Pessanha deposita o objeto do seu ódio. Esse desejo levá-lo-á a embarcar numa viagem a Macau, onde trava conhecimento com a família Andrade, cuja segunda geração, Emília, chegou a ter um caso com o militar. Após serões e serões de convívio com personagens singulares, como a matriarca siara Debra Andrade, Chen e outros, José Carlos envereda pela concretização da sua vingança, seduzindo a filha de Emília, Iluminada (assim chamada por tradução, sendo o seu nome originalmente chinês), com o objetivo de destruir a família e, com ela, o seu inimigo. Mas por diversas razões, acaba José Carlos por se apaixonar pela jovem. E deste facto parte o resto da história, entre dores, sofrimentos e a análise de figuras históricas com quem Pessanha se identifica. 
   Estarão por esta altura a perguntar-se como uma história tão simples preenche 370 páginas. Bem, é aqui que entra o estilo particular da autora, a razão porque demorei tanto tempo a ler o romance e porque, apesar disso, desejo voltar a ler Agustina. Para começar, Agustina Bessa-Luís sempre se declarou admiradora de Camilo Castelo Branco. E as influências deste notam-se bem no estilo da escritora. O romance inteiro é um tsunami de vernáculo, o português empregue é cuidado, polido, requintado e agradável, muito ao estilo de Camilo. Ler bom vernáculo é sempre um deleite inqualificável. Outro factor interessante é a gigantesca quantidade de informação que o romance carrega, sendo que, depois desta leitura, fiquei muito informado sobre os piratas portugueses nos mares da China, a presença dos jesuítas no Oriente e as dinastias e cultura chinesas. No entanto, este ponto também pesou, e muito, para a demora em avançar com a leitura. Era uma sensação estranha, sempre que retomava a leitura, ter dificuldade em avançar e esgotar-me depressa do que lia e, no entanto, não querer parar e ter vontade de avançar. É um misto de desejos que me fez confusão, e se calhar foi por isso que não achei esta leitura tão espetacular como prometia. Mas, apesar disso, ficou um enorme desejo de voltar a ler Agustina. Não porque gostei particularmente deste romance, mas porque sinto que vou gostar dos próximos. É uma sensação estranha e curiosa. Outra questão que contribuiu para a morosidade da leitura foi a enorme quantidade de informação histórica e factual que preenchia cada pequeno pedaço da intriga principal. 
   É assim, nesta nota, que termina esta análise. Nem gostei nem desgostei. Decerto que este romance encontrará o seu público-alvo, não pertenço a essa categoria. Mas recomendo a leitura dos autores nacionais, de Agustina, face à degradação literária que a máquina industrial nos oferece atualmente. 

Citações:
"Um dia um amigo, em Lisboa, ficou admirado da sua figura tão rara como português, escuro e magro, com grandes barbas, seco, maldizente, único. «Você é lindo!» E ele, com aquele ar insolente para com a sua própria humanidade, respondeu assim:
- Eu sou um aborto duma grande beleza."
"Mas eis o que tinha acontecido: havia um eremita que não aceitava nada de ninguém, nem que fosse ao preço dum só cabelo seu. Se lhe oferecessem o Império por um cabelo da sua cabeça, ele teria recusado. Então disseram-lhe que ele não serviria o povo se tivesse que renunciar a um cabelo. E foi perseguido por causa disto, quando as coisas não se passaram assim. Era uma pessoa desprendida, e não egoísta. Será tão difícil não as confundir?"
"Acho que percebi o que os cristãos querem dizer quando amam a Deus de todo o coração, de toda a alma e de toda a mente. Isso faz com que todas as forças e paixões se reúnam num só ponto do Universo, que não podemos alcançar. O que se alcança sempre nos desilude"


Pontuação: 5/10


Gonçalo Martins de Matos