domingo, 22 de fevereiro de 2015

"Trilogia Soberba", de Andreia Ferreira

Soberba Escuridão


   Não é raro, enquanto leitor, ser surpreendido por uma obra dentro de um género do qual acho que não se pode esperar algo de novo. Bem, enganei-me, e ainda bem que me enganei. Esta foi, dentro do género, a minha segunda leitura e devo dizer que foi das leituras mais fantásticas que já tive. Foi uma experiência fantástica, cada palavra encaixava onde devia, cada frase descritiva descrevia muito sem maçar, aliás, descrevia muito por poucas palavras, cada sentimento genuíno, sem resvalar para o dramatismo excessivo. Resumindo, foi uma leitura fantástica. Os meus parabéns à autora, Andreia Ferreira, por esta obra fenomenal. A autora tem futuro nas letras.
   A obra conta a história de Carla, uma rapariga de 17 anos. Até aqui tudo bem. Mas quando ela se vê assombrada por uma sombra negra, a sua vida começa a descambar, indo de surpresa em surpresa, de revelação em revelação até ser atingida pela realidade chocante de que o sobrenatural pode afinal não ser fruto da imaginação humana. Não é uma grande sinopse, mas se despertar o interesse e o leitor ou leitora decidir ler esta magnífica prosa, não ficará desiludido(a). 
   Foi uma experiência de leitura magnífica, épica em todo o sentido da palavra. Nada mais tenho a acrescentar, a não ser: leia. Leia, que esta autora, esta obra, não pode permanecer na escuridão por mais tempo. O mundo tem de conhecer o talento de Andreia Ferreira.


Citações de Soberba Escuridão:
"A forma oval que parecia ser a cabeça da criatura era de cortar a respiração. Tinha os olhos amendoados, de um vermelho intenso e no lugar do nariz tinha duas fendas como uma cobra." 
"Era como olhar um anjo, pelo menos no meu ponto de vista que nunca imaginei os anjos loirinhos com olhinhos azuis portadores de cabelinhos meticulosamente encaracolados."


Pontuação de Soberba Escuridão: 8.2/10








Soberba Tentação


   Confesso-me viciado nesta trilogia. Nitidamente melhor que o primeiro, também mais negro e deliciosamente bem composto, bem escrito e bem imaginado. 
   Gostei imenso de descobrir novos factos sobre os personagens da história. Admirei o desdobramento do ponto de vista da narração em várias personagens, e não só numa, ao contrário do primeiro. Mas acima de tudo, gostei do aprofundamento que a autora fez a algumas personagens, que no primeiro livro se apresentavam como superficiais. Em especial, os personagens do vampiro Ricardo e da Raquel. 
   Não posso falar muito da sinopse sem estragar um bocado a história, por isso limito-me aos traços gerais. Neste segundo volume vemos o desenrolar da vida de Carla após a descoberta do mundo sobrenatural, e de como consegue (ou não consegue) lidar com isso. A sua vida caminha para a ruína, evidenciado nos que a rodeiam. Os seus amigos vão-se afastando e (terá de ler a história para perceber o que vou dizer agora) deteriorando aos poucos. Nada mais posso dizer sem revelar o enredo.
   Por isso, a minha recomendação é: leia. Leia o primeiro, leia o segundo. Mais do que ler, goste, admire. Este segundo livro é algo de inovador, muito como o primeiro, mas melhor que este. A autora consegue incluir elementos que se não fossem trabalhados da maneira como ela os trabalha seriam clichés. Admiro a capacidade de introduzir elementos familiares nos livros, mas conseguir ao mesmo tempo ser original. Acredite no que lhe digo, este livro é uma tentação autêntica.


Citações de Soberba Tentação:
"Com a mente liberta das recordações da noite, graças ao toque do Caael, adormeci na «paz dos anjos»."
"A boca dela sangrava, mas ela ainda não se apercebera. Laçou o pescoço para traz e com os olhos fechados urrou."


Pontuação: 8.5/10







Soberba Ilusão


   Os finais dos livros, principalmente das séries de livros, são sempre interessantes de se ler. Porque é o fim. Estivemos um determinado período de tempo naquele mundo, e chegamos ao seu fim. 
   O final desta trilogia é deliciosamente negro. O que não deixa de ser um choque para quem se apega com facilidade aos personagens. Eu, que nem costumo fazer isso, senti imenso o final do livro. Não vou dizer que chorei, não é livro para tanto, mas senti qualquer coisa com estes personagens. O que, no fundo, é o que importa quando se escreve uma boa história: levar os leitores a criar laços com os personagens. E Andreia Ferreira tem um talento especial em fazer dos sentimentos dos seus leitores brinquedos com os quais joga. Deixo também uma nota de admiração pelas revelações que esta faz dos personagens e das situações.  
   Cingindo-me à generalidade, neste último volume vemos Carla desesperada com o rumo que a sua vida está a tomar e decide agira, sempre acompanhada do anjo Caael. E, no meio do sobrenatural e do obscuro, tudo o que pensava ser uma coisa é afinal o contrário e todas estas reviravoltas se unem num único sentido: o porquê de ser tão especial para todas estas criaturas. 
   Tiro especialmente o chapéu às autora pela forma como conseguiu deixar-nos confortáveis só para nos tirar o tapete logo a seguir. E de como consegue que as páginas não se sobrecarreguem e se tornem maçudas. Dito isto, e em conclusão desta soberba "trilogia Soberba", qualquer leitor que procure uma boa coleção para poder ler e adorar, deve ler esta trilogia. Andreia Ferreira está apenas a revelar-se. E pelo que já escreveu até agora, só posso esperar dela outras obras igualmente interessantes e de qualidade. 


Citações de Soberba Ilusão:
"A mãe entrou pelo quarto e viu-o sentado na cama a transpirar como se tivesse acabado de percorrer a maratona. Aproximou-se dele e sentiu logo o calor que emanava do seu corpo. Nem precisava de lhe tocar na testa para perceber que ardia em febre."
"A Marília tinha razão, eu era tóxica para todos à minha volta."


Pontuação: 8.7/10


Soberbas leituras,
Gonçalo M. Matos

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

"Nenhum Olhar", de José Luís Peixoto

   Nenhum Olhar mais que me satisfez, por ter-se revelado como um vício desde a primeira página até à última. Poucos livros conseguem atingir tamanha perfeição tanto a nível da estrutura como a nível da narrativa. Eu já antes tinha lido Livro, do mesmo autor, e desse livro não fiquei com uma experiência muito boa (uma leitura agradável, não obstante). Por isso, fui apanhado desprevenido quando decidi dar uma segunda oportunidade ao autor e li este livro. E devo confessar-me boquiaberto, assombrado e maravilhado. Boquiaberto com a incrível maturidade da escrita de José Luís Peixoto, tendo em conta que este foi o seu primeiro romance "a sério"; assombrado com o desenrolar e final da história narrada; e maravilhado com a magnífica experiência de leitura que o autor me providenciou com esta obra. 
   Este livro é um poema. Não no seu sentido literal, trata-se de uma história narrada em prosa. Mas ao longo da sua leitura, fiquei com a sensação de ler um poema, belo, simples, soberbo, singular. Louvo a criatividade das palavras nesta obra inscritas e a mestria com que José Luís Peixoto conduz a narração, nunca perdendo o controlo, mas dando-lhe toda a liberdade que consegue. Admiro essa capacidade num narrador. Dividido em dois "Livros", é uma história triste, mas ao mesmo tempo, alegre, nas palavras de José Eduardo Agualusa, «Livro luminoso, e ao mesmo tempo, tristíssimo». No Livro I é-nos narrada a história de alguns personagens singulares, como por exemplo, José e a sua mulher, o velho Gabriel, Elias e Moisés, gémeos siameses, uma cozinheira e a cadela de Moisés. As suas histórias cruzam-se, mas sempre em direção ao precipício. No Livro II, somos apresentados à "segunda geração", constituída por José, filho do primeiro José, e a sua mulher, Salomão, primo de José, e a sua mulher, filha da cozinheira, o velho Gabriel ainda, a prostituta cega e o mestre Rafael. Também as suas histórias nos são apresentadas entrelaçando-se umas com as outras, sempre em direção espiral ao abismo final. No fundo, é para onde caminham todas as vidas humanas. Em direção ao fim, ao abismo final, à escuridão solitária. A este fabuloso elenco são acrescentadas personagens inusitadas e ambíguas, como por exemplo, um gigante, um "homem que está fechado dentro de um quarto sem janelas a escrever", uma "voz que está fechada dentro de uma arca" e o diabo, com o seu eterno e constante sorriso (leu bem, o diabo). Estes elementos fantásticos e a narração bela e singular do autor conduzem-nos a um final tão arrebatador como surpreendente. E pelo seu conteúdo, pode-se compreender o título atribuído ao livro na sua edição inglesa: The Implacable Order of Things, «a implacável ordem das coisas». De facto, essa ideia está bem patente ao longo da obra. 
   O estilo narrativo pode apanhar os mais distraídos de surpresa. É escrito com a técnica de fluxo de consciência (ou seja, repetições e intromissões de pensamentos diferentes a meio de uma frase), dando voz não só ao narrador, mas às personagens. É preciso ler com atenção, porque se estiver a ler só por ler, será apanhado desprevenido e perder-se-á.
   Nada mais tenho a dizer. Ah, bem, falta referir que foi esta a obra de José Luís Peixoto que venceu o Prémio José Saramago de 2001 e que mais vendeu até hoje. Bem e que recomendo vivamente a sua leitura. Mais, diria que é leitura obrigatória para qualquer amante de boa literatura. 

Citações:
"Penso: talvez o céu seja um mar grande de água doce e talvez a gente não ande debaixo do céu, mas em cima dele"
"Hoje, morro eu. E eu morrer não é nada na ordem implacável do mundo."
"Atrás de mim, estava o demónio. Senti nas minhas costas o seu calor, o seu sorriso." ou "Como se soubesse que ele ia abrir ali uma janela, como se o esperasse. O demónio estava na rua, a um palmo da parede, a olhá-lo, a sorrir."


Pontuação: 10/10


Alegres leituras,
Gonçalo M. Matos