domingo, 20 de novembro de 2016

"As Naus", de António Lobo Antunes

   António Lobo Antunes sempre foi visto pela crítica literária como um escritor fora da caixa, um escritor que sempre seguiu uma via alternativa e pessoal face às correntes literárias portuguesas. Quando lemos um livro de Lobo Antunes sabemos que iremos encontrar uma visão única e pessoal sobre a sociedade e uma voz desafiadora das convenções e dogmas das letras portuguesas. Neste As Naus encontramos em grande medida essa visão única da sociedade portuguesa e essa voz desafiadora da corrente, quer pelos temas abordados, quer pela experimentação narrativa. Lobo Antunes e José Saramago são muitas vezes citados como os grandes prosadores portugueses do início do século XXI, e penso que essa classificação é justamente atribuída, visto que ambos fizeram esforços no sentido de renovar a literatura portuguesa, abrindo caminhos novos por onde a geração seguinte poderia (e fá-lo, efetivamente) explorar. 
   O romance, nos seus primeiros capítulos, faz como que uma espécie de introdução dos seus personagens e das suas peripécias passadas. Que personagens? Este é um dos aspetos mais interessantes do romance: os personagens são figuras bem conhecidas dos descobrimentos portugueses. Portanto, a narração incidirá sobre as peripécias passadas e inquietações presentes de Francisco Xavier, Pedro Álvares Cabral, Luís de Camões, Diogo Cão, Manoel de Sousa de Sepúlveda, Fernão Mendes Pinto, Vasco da Gama, Garcia de Orta e, entre outros, um casal anónimo. Continuando, o romance inicia-se com a apresentação dos personagens e dos seus regressos, quer no passado, quer no momento da narração, das colónias a Lisboa (grafada no romance como "Lixboa"). Percorrendo as inquietações dos seus personagens e as suas histórias pessoais atribuladas, fantásticas e nostálgicas, o romance não tem um rumo certo, não tem um fio condutor para o qual a história caminhe, sendo as descrições dos universos pessoais dos personagens o que acaba por criar a realidade da narração. Explorando a vida difícil e os caminhos obscuros que são obrigados a percorrer após o seu regresso ao país, este romance reescreve a história dessas grandes figuras portuguesas de um modo mais satírico e menos heróico, desafiando a história embelezada de Portugal com a crua realidade do país.
   Os tempos e as vozes confundem-se no romance. No momento da narração ocorrem simultaneamente a partida dos navegadores em busca do Mundo Novo e o regresso a Portugal dos retornados no pós-25 de abril. Os navegadores deambulam pelas ruas, abandonados pelo mesmo povo que os apelidou de heróis aquando dos seus grandes feitos. Essa é outra das características deste romance que me fascinou, a realidade nova que é criada pelo narrador quando mistura os problemas dos retornados e da sociedade portuguesa do século XX com os problemas dos navegadores e da sociedade portuguesa do século XV. O velho e o novo convivem numa harmonia desarmoniosa, o passado sempre a intrometer-se no presente e o futuro incerto que sempre pesa na atualidade, a metáfora de excelência para descrever Portugal. Outro aspeto que torna a leitura deste romance tão interessante como confusa se não se estiver atento é a confusão de vozes. A história é narrada na terceira pessoa, mas também é na primeira pessoa. Num parágrafo é ele, no seguinte é eu. Por vezes a frase muda de eles para nós a meio, o que pode parecer confuso mas na realidade é apenas diferente. Esta confusão de tempos e de vozes criam a atmosfera labiríntica que caracteriza os romances de Lobo Antunes.
   Sem nada mais a acrescentar, resta-me recomendar vivamente a leitura deste romance a qualquer apreciador de trabalho literário ousado, imaginativo e diferente.

Citações:
"Agora o casal do retrato tornara-se numa aguarela de iodo e nós em múmias sem préstimo espantadas diante das dezenas de garrafinhas do bar do apartamento, expostas em prateleiras de mogno na imobilidade inquietante das peças de xadrez."
"Às cinco e meia, quando a primeira claridade lutava com os candeeiros da rua e os vice-reis, derrubando copos, discutiam a estratégia de Trafalgar, o padre António Vieira, sempre de cachecol, expulso de todos os cabarés de Lixboa, procedia a uma entrada imponente discursando os seus sermões de ébrio, até tombar num sofá, entre duas negras, a guinchar as sentenças do profeta Elias numa veemência missionária."
"De modo que fui moendo episódios heróicos, parando a tomar notas nas retrosarias iluminadas, até desembocar na praça da minha estátua, mãe, com centenas de pombos adormecidos nas varandas em atitudes de loiça e cães que alçavam a pata no pedestal da minha glória"


Pontuação: 9.9/10


Desafiantes leituras,
Gonçalo M. Matos