segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

"Capitães da Areia", de Jorge Amado

   Capitães da Areia é o romance de Jorge Amado que lhe conferiu fama internacional. É um romance que é sobretudo um relato coberto de lirismo sobre um tema tão cruel que é a problemática das crianças abandonadas nas ruas de São Salvador da Bahia. O romance é considerado como um dos mais populares de Jorge Amado. A sua história humanista é relembrada como tendo uma visão socialista sobre o problema das crianças abandonadas. 
   A história segue as vidas dos capitães da areia, um grupo de menores abandonados que vivem do furto. Desde cedo somos apresentados aos personagens cujas aventuras iremos acompanhar ao longo da obra. Como protagonista temos Pedro Bala, o chefe dos capitães da areia, tão temido pelos baianos como um homem. Coadjuvam-no durante a narrativa o «burro, mas bom negrinho» João Grande e o único dos capitães da areia que sabe ler, e que lê para os outros, o Professor. A estes juntam-se personagens variados, que auxiliam os seus companheiros nos roubos. O elegante Gato, o religioso Pirulito, o sádico Sem-Pernas, o sombrio Volta Seca, entre outros. A primeira parte da obra narra as diversas aventuras que os meninos vivem nas ruas da Bahia, realçando sempre a coragem dos capitães da areia e do seu código de honra. A meio da primeira parte junta-se um dos poucos adultos que participa ativamente na história, o padre José Pedro, cuja intenção é ajudar os meninos e lutar para que eles tenham acesso ao que lhes foi vedado. Vê em Pirulito um futuro sacerdote e foca-se no menino. Na segunda parte, junta-se aos capitães da areia a jovem Dora, que serve como mãe para os meninos, dando-lhes o afeto que nunca tinham tido. A partir deste ponto, a história desenvolve-se numa narrativa mais poética e dramática que a primeira parte, culminando num final arrebatador a nível do lirismo. 
   Tendo sido este romance escrito durante o Estado Novo brasileiro, foi queimado em praça pública pelos ideias socialistas que manifestamente pregava. Jorge Amado, como humanista que era, dizia que não tinha escrito o livro com o objetivo de fazer propagando política, mas com o simples objetivo de qualquer escritor: contar uma história, cujo fundo era uma desconcertante realidade. Resta-me apenas recomendar a leitura deste livro incrivelmente lírico. 

Citações:
"A grande noite de paz da Bahia veio do cais, envolveu os saveiros, o forte, o quebra-mar, se estendeu sobre as ladeiras e as torres das igrejas."
"Omolu mandou a bexiga negra para a cidade. Mas lá em cima os homens ricos se vacinaram, e Omolu era um deus das florestas da África, não sabia destas coisas de vacina."
"A voz o chama. Uma voz que o alegra, que faz bater seu coração. Ajudar a mudar o destino de todos os pobres."


Pontuação: 9/10


Belíssimas leituras,
Gonçalo M. Matos

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

"Ulisses", de James Joyce

   Muita tinta correu já sobre Ulisses. E muita tinta pode, ainda correr. Alguma dessa tinta será minha, aqui. Muito bem, o problema principal quando se pretende escrever sobre esta obra é que é tão densa, tão monumental que não se sabe por onde começar. Mas darei o meu melhor. A obra que se apresenta sob o nome de Ulisses é um dos maiores monumentos à prosa do século XX, e sem dúvida uma das maiores produções literárias de toda a história da literatura. É uma leitura densa e arrebatadora, sem dúvida. Uma pessoa que não esteja habituada a ler não deve ler Ulisses, e mesmo estando habituado não o deve decidir ler de ânimo leve. Trata-se de uma obra ímpar, com personagens, eventos e detalhes tão complicados como espantosos.
   Passemos então à história. Outro problema se levanta neste ponto. Que história? Aliás, como classificar ou descrever a história narrada em Ulisses? Pode ser simples, pode ser complexo. Começamos pelo simples. O esqueleto da história, o fio condutor é o quotidiano de Leopold Bloom em Dublin, prosseguindo com as suas atividades, tão comuns como particulares ao dia específico que se passa. Começa de manhã e termina de madrugada. Esta é a ação principal. A ação secundária divide-se em diversos episódios, cada um ilustrando um momento desse dia de Bloom, tudo para terminar na sua chegada, cansado, a casa. A obra é demasiado extensa para entrar em pormenores sobre os vários enredos secundários, mas fica aqui o aviso de que são vários e cada um com uma particularidade associada a si. 
   Agora que foi introduzida a história, irei falar daquilo que torna Ulisses tão único: a estrutura. E estrutura da obra é, maioritariamente, não ter estrutura. Ulisses é narrado em prosa, sendo o estilo da narração o fluxo de consciência. Os pensamentos do narrador e dos personagens narrados misturam-se muitas vezes, criando uma armadilha literária para os leitores mais incautos. Os capítulos de Ulisses têm cada um o seu estilo próprio, apropriando-se ou não ao evento que relatam. O capítulo 7 tem a estrutura de uma editora jornalística, tendo cada segmento de texto um título. A narração,no capítulo 15, é feita na forma de um texto dramático (este é também o capítulo mais extenso do livro, sendo que constitui 1/4 do livro). O capítulo 17 é composto por um conjunto de perguntas e respostas, sendo que as perguntas impulsionam a narração que se passa nas respostas (sendo este o meu favorito em termos de estilo). De muitos mais poderia eu falar, mas escolho falar do último capítulo, onde os críticos afirmam que Joyce atingiu o apogeu da sua arte narrativa. Neste 18.º capítulo, a narração é-nos feita pelo pensamento interior da esposa de Bloom, Molly, onde as ideias, por mais díspares que possam parecer, se juntam por uma associação que representa fielmente o próprio processo cognitivo. Por esta razão se louva tanto Joyce enquanto escritor. Foi o primeiro a conseguir reproduzir com tanta fidelidade o processo mental de recordação, associação e cognição por escrito. 
   Muitos críticos chamam a Ulisses uma anti-epopeia, uma vez que Joyce criou um paralelismo entre a sua obra e a Odisseia. Daí o nome escolhido para o título do seu livro. Os três personagens principais representam os três pontos de vista da Odisseia: Leopold Bloom é Ulisses, Molly Bloom é Penélope e Stephen Dedalus é Telémaco. Os episódios de Ulisses  evocam sempre o episódio da Odisseia que representam. E assim processa-se o calhamaço de monumental literatura que é Ulisses.
   Não escrevo mais porque esta obra de Joyce tem material suficiente para se escrever um livro. No entanto, pode-se recorrer ao intensivo estudo de Ulisses efetuado por Stuart Gilbert. 
   Não tendo mais do que falar, basta-me recomendar esta leitura a qualquer corajoso que deseje passar pela experiência de leitura mais intensa e espantosa que pode imaginar. Não recomendo aos que não estão habituados a ler, porque se trata de uma obra que requer paciência, experiência e, acima de tudo, um espírito literário muito aberto, aliado à paixão pela literatura. 

Citações:
"Olhos de ostra. Não interessa. Senti-lo-á depois quando cair em si. Ter, desse modo, vantagens sobre ele.
Obrigado. Que grandes estamos esta manhã!"
"Fff! Uuu. Rrpr.
As nações da terra. Ninguém atrás. Ela já passou. Então e não até então. O elétrico cran, cran, cran. Boa oportu. Vem aí. Crancrancran. Tenho a certeza que é do borgonha. Sim. Um, dois. Deixai que o meu epitáfio seja. Craaa. Escrito. Tenho
Pprrpffrrppfff.
Dito."
"Quais, reduzidas às suas formas recíprocas mais simples, eram os pensamentos de Bloom acerca dos pensamentos de Stephen sobre Bloom e os pensamentos de Bloom acerca dos pensamentos de Stephen sobre os pensamentos de Bloom acerca de Stephen?
Ele pensava que ele pensava que era judeu enquanto ele sabia que ele sabia que ele sabia que sabia que não era."


Pontuação: 10/10


Aventurosas leituras,
Gonçalo M. Matos