segunda-feira, 5 de agosto de 2024

"A Instalação do Medo", de Rui Zink

   "A mulher está nua, o que neste instante a ocupa é mais prático sem roupa – quando tocam à campainha." 
   Dois homens tocam à campainha da protagonista para que possam instalar o medo em sua casa. O Carlos, bem-falante e de aspeto mais civilizado, e o Sousa, de aspeto mais rude, mas supreendentemente eloquente, são os dois funcionários que vêm apresentar o medo enquanto procedem à sua instalação. A mulher que os recebe instruíra ao seu filho, antes de lhes abrir a porta, que permanecesse escondido na casa de banho, tendo sempre em mente essa questão. E é assim, numa tensão crescente, que se encontram os três, ela escutando e eles apresentando o medo, num jogo de dissimulação em que todas as aparências iludem e onde os trejeitos de uns são as suspeitas de outros. 
   Este romance de Rui Zink é uma alegoria sobre a força opressiva do medo enquanto modelo de organização social. Mas também sobre o medo enquanto mecanismo de sobrevivência necessário. E também sobre o medo enquanto tema filosófico. Num registo satírico, mordazmente irónico, o medo é apresentado e vendido por dois peritos em apresentação de produto. O teor da apresentação do medo por parte de Carlos e de Sousa é o de uma conversa animada, em que ambos entram em considerações e reflexões sobre o medo e as suas plúrimas formas. Já a mulher escuta atentamente, lembrando-se volta e meia que tem a criança escondida na casa de banho, e que ela não pode fazer barulho para não ser descoberta. O estilo de escrita é frenético e breve, sendo a narrativa movida por diálogos curtos, principalmente entre os dois técnicos de instalação do medo. As várias formas de concretização do medo são exploradas de uma forma muito pungente pelo autor, que não deixa de ironizar medos como os sentidos pelos mercados ou como o medo do outro, medos muito em voga e do melhor. A ideia da instalação artificial do medo por decreto, "pelo bem da nação", é uma imagem bem conseguida de como sociedades autoritárias e repressivas se instalam em força. O romance encontra-se também pejado de referências, desde o cinema e a literatura até à banda desenhada e aos videojogos, intertextualidade que enriquece o universo interno do romance. Nunca chegamos a perceber como é que se instala o medo, nem com que se parece a máquina que o espalha, nem por que regras se rege a existência do medo, o que gera um dos aspetos mais interessantes e metatextuais do romance, que é o medo do incerto. O mistério encerra o medo, e numa história em que o mistério não se desfaz, também não se desfaz o medo. O final é de tal forma inesperado que qualquer leitor que pense ter percebido o sentido do romance apenas estará a enganar-se a si mesmo, mas num bom sentido, porque é dessa forma que as contracurvas narrativas funcionam melhor. E a reviravolta que nos aguarda no final do romance é executada com mestria por Rui Zink.

Citações: 
 
"– Ou seja, não nos cabe só a nós instalar o medo, é preciso também que haja, da parte dos concidadãos, um estado de disponibilidade mental (eu diria mesmo moral) para aceitar o medo. É como um sinal. Não é só importante que a emissão do sinal seja for-te, é também conveniente que à chegada seja."

"As aparências iludem. Nos filmes, os bons têm sempre cara de bons e os maus cara de maus, é uma alegria. Mas o ator que faz o papel de herói nunca praticou um só ato heróico. Apenas tem cara disso, voz disso, ar disso. Tão só isso disso. Heróis a sério podem parecer sevandijas, e algozes terem o ar mais inocente do mundo. Um “olhar fleumático” não implica fleuma, um “aspeto hirsuto” não indica hirsutez de espírito."

"Em inglês fica tudo mais smart, é um facto, minha senhora. Diga lá se Make my day, punk não é muito mais lapidar que “Anda lá se és forte, ó badameco”." 


Pontuação: 8/10


Gonçalo Martins de Matos

"Bela", de Ana Cristina Silva

   "Bela acabou de se matar" são as lúgubres palavras que abrem esta biografia ficcional sobre Florbela Espanca. 
   Bela, diminutivo de Florbela, é uma mulher complexa, com as suas esperanças e as suas quimeras. Acompanhamos as intensas paixões e os profundos desesperos por que passa Bela, revisitando constantemente a sua infância em busca de uma fonte para os fortes sentimentos antitéticos que marcaram a sua vida. A história que se desenrola é uma versão ficcionada da história da Florbela Espanca real, em que figuram as pessoas que a gravitavam, fosse a sua tenebrosa mãe adotiva, o seu pai ausente, os seus icompreensivos maridos ou o seu confidente irmão, e as suas inquietações ou alegrias nas dinâmicas entre causas e efeitos emocionais. 
   Ana Cristina Silva captura a tragédia da vida de Florbela Espanca de forma muito aprofundada, tanto a nível factual como a nível psicológico. Aliás, é precisamente no retrato psicológico da poeta alentejana que reside o talento narrativo da autora. Com uma investigação sólida aos diários de Florbela Espanca e aos escritos da e sobre a poeta de Vila Viçosa, Ana Cristina Silva consegue transportar uma Florbela que respira e sente dor para as páginas do seu romance. Porém, o romance não foi assim tão memorável para mim. Apesar de se sentir a Bela do romance como real, algumas das indagações sobre o passado e sobre o presente de Florbela ficavam aquém do potencial, principalmente quando a narração se sucedia na terceira pessoa, em que o foco era descritivo, não obstante o enfoque nos retratos psicológicos dos personagens. Os capítulos na primeira pessoa revelam o potencial do romance, sendo reflexões retrospetivas da própria Florbela sobre a sua vida, a sua infância e a sua poesia. Muitas das melhores linhas do romance encontram-se nos capítulos em que é a poeta a narrar-nos as suas inquietações, oferecendo-nos frases belas e profundas. O que não significa que a escrita de Ana Cristina Silva não seja boa, é-o, mas fica muitas vezes no limiar do bom português, quando tem o potencial de ser verdadeiramente impactante. A relevância da infância na construção da nossa psique está bem presente neste romance, em que a autora nos demonstra cruamente que os "pecados dos pais" nos afetam para o resto das nossas vidas. 

Citações: 

"As palavras alinhavam-se automaticamente, escutava o seu ruído inexprimível de cascata ao caírem sobre a folha branca como se marulhassem à tona da água. A sua escrita era demasiado imprecisa para chegar à verdade. E, no entanto, prosseguia, deixando as palavras desembaraçarem-se sozinhas, quase sem precisarem dela."
 
"Reconhecia o poder das suas rimas, o cuidadoso rendilhado das palavras, mas assustava-se com o mundo de mágoa e de vazio que revelavam. Só umas mãos de pedra teriam força para arrancar a dor esculpida sobre o rosto da mulher que escrevia aqueles poemas."
 
"Os meus versos eram a argamassa de uma mente desfeita. Vivia tanto para o meu encontro com a morte como para a poesia. O que fluía, ao redigir um novo poema, era sangue misturado com tinta, que depois percorria os vasos do meu braço direito, como uma espécie de transfusão, antes de atingir o papel."


Pontuação: 7/10


Gonçalo Martins de Matos

quinta-feira, 13 de junho de 2024

"Para onde vão os guarda-chuvas", de Afonso Cruz

   "– Com licença – disse Fazal Elahi –, o pedinte tinha um pássaro mágico que, em vez de voar para o céu, voava para dentro das pessoas e, quando voltava para o ombro do dono, cantava uma melodia, ou seria um verso?" abre esta obra monumental de Afonso Cruz, cuja releitura nos recordou da maravilhosa tapeçaria humana que esta obra tece. 
   O pano de fundo é um Médio Oriente mítico, efabulado através do que alguma mentalidade ocidental julga ser esta zona do mundo. O trio de protagonistas, que nos acompanham do início ao fim da narrativa, é composto por Fazal Elahi, modesto vendedor de tapetes cuja maior ambição é passar despercebido, Badini, dervixe mudo que diz poesia com as suas mãos, e Aminah, irmã de Fazal Elahi, que sonha casar um dia. A este trio junta-se uma tapeçaria de personagens únicos, que aparecem e desaparecem das vidas dos nossos protagonistas, como Bibi, mulher de Elahi que é um espírito livre, Salim, filho de Fazal e Bibi, Isa, uma criança cristã, filho adotivo de Fazal Elahi, Nachiketa Mudaliar, um hindu que se converte ao Islão por amor a Aminah, o general Ilia Vassilyevitch Krupin, o mulá Mossud, um padre cristão com um cão chamado Dogma, entre outros coloridos e distintos fios do tapete persa urdido pelas forças imensas e misteriosas que nos assoberbam. 
   Este livro de Afonso Cruz é uma obra de arte visual. Já iremos concretamente à força da narrativa, mas primeiro devemos referir a plasticidade artística que marca este romance. A prosa desenlaça-se acompanhada de fotografias da autoria do próprio Afonso Cruz, que apresentam peças de xadrez representando momentos-chave da história. Outras fotografias esporádicas representam outros objetos próximos da narrativa que se desenrola. Para além destas, um ocasional desenho original de Afonso Cruz acrescenta aos complementos visuais deste livro. Por fim, para encerrar a plasticidade, podemos ver ao longo do livro brincadeiras gráficas do autor no intuito de reforçar a visualidade da sua obra, como três páginas pretas com o texto de cor branca a contar uma perspetiva peculiar de um dos momentos cruciais da trama. Numa outra sequência de páginas, a palavra "desculpe" segue em linha, livre pelas páginas em branco, traçando uma rede de ruas contornando a cidade que acolhe esta narrativa. A história de Fazal Elahi é de uma sensibilidade humanística impecável, pondo em conflito otimismos cautelosos e fatalidades monstruosas, evidenciando a pequenez do humano perante a implacável lógica do transcendente. Acima de tudo, este romance demonstra como a fragilidade consegue ser um lugar de força, mas de uma força particular, oculta da vista e, por isso, aparentemente inexistente. Este romance é de tal forma monumental que cria uma linguagem simbólica própria, um universo de referências e imagens que ganham um significado interno ligeiramente para além dos significados das mesmas na nossa realidade, o que cria um espaço tão dinâmico e rico como a realidade em que nos movemos. As imagens que Afonso Cruz cria com as suas palavras são maravilhosas, cruzando a sua vívida imaginação estética com o seu humanismo poético. A tapeçaria oriental urdida por Afonso Cruz é, acima de tudo, espiritual, revelando os padrões e as ligações que a alma humana conserva profundamente. 

Citações: 

"Depois teve uma vontade urgente de apagar aquilo que via, como os professores apagam os quadros de xisto cheios de números e suras do Alcorão, coisas tão brancas em cima da escuridão. Mas Elahi não conseguia apagar o passado, pois este é mais teimoso do que o giz. Sentia-se ma nuvem, um bocado de mar, separado de si mesmo sem saber o que era nem porque pairava nem porque não chovia o seu corpo pela terra abaixo."

"São as perguntas que nos fazem mexer. As certezas fazem-nos parar. As perguntas são a porta da rua. Quando nos interrogamos, quando duvidamos das nossas paredes, é porque estamos a passar pela porta. O facto de nos espantarmos com o que se passa à nossa volta é sinónimo de vida. Os cemitérios estão cheios de pessoas que não se espantam com nada. A perplexidade é que faz mover o mundo. A criação foi feita através de uma pergunta e não de uma resposta. Se fosse uma resposta, uma certeza, estaríamos todos parados, ancorados na verdade, nos factos. Mas, se evoluímos, é porque andamos a erguer um ponto de interrogação como estandarte. O ponto de interrogação é a verdadeira bandeira do homem. É preciso esquecer os países, as fronteiras, as certezas. O futuro é uma pergunta."

"Dos olhos de Elahi só saíam umas lágrimas. E Elahi perguntava-se como seria possível que a tradução daquilo que se passava dentro dele fossem apenas umas quantas lágrimas. Que coisa tão mal feita, pensava. Com tanto sofrimento, com licença, deveríamos chorar estrelas, para mostrar como tudo o resto é pequenino comparado com tudo o que nos dói."
 
 
Pontuação: 10/10


Gonçalo Martins de Matos

terça-feira, 7 de maio de 2024

"A Terceira Rosa", de Manuel Alegre

   "(Os anos passarão." é a frase que abre um romance belo, mas dilacerante, de uma das maiores vozes da poesia portuguesa.
   Xavier e Cláudia conhecem-se numa tarde de verão que marca Xavier para sempre. Nesse julho que Xavier não consegue esquecer, vivem os inícios do que prometia ser um grande romances, "escrito nas estrelas", diriam alguns amigos. Mas as vicissitudes da vida têm as suas próprias agendas, e Xavier e Cláudia acabam por se desencontrar para o resto das suas vidas. Xavier rememora a enorme paixão que cresceu dentro de si em simultâneo com a oposição ao regime do Estado Novo e o seu inevitável conflito entre modos de vida. Nos anos finais do regime, Xavier e Cláudia desencontram-se uma última vez, e, anos depois, na festa que foi o dia da Revolução dos Cravos, Xavier remói como as vidas se cruzam e descruzam inesperadamente, e como as certezas e as incertezas andam mais próximas do que parece. 
   A linguagem poética de Manuel Alegre é intensa e bela, e neste romance estão as suas duas facetas de sempre - um poeta de amor e um poeta de luta - emparelhadas usando ao máximo o que a voz deste poeta traz a ambas. O romance desenvolve-se em dois tempos e dois espaços distintos: em Alba, terra natal de Xavier, e nas ruminações do próprio Xavier. O que diferencia ambos é a mudança de ponto de vista do narrador, de heterodiegético para autodiegético, sempre assinalado com um entre-parêntesis, ou seja, quando a voz de Xavier se sobrepõe à narrativa em desenvolvimento, abre-se um parêntesis e o protagonista pode livremente remoer as suas cogitações, retomando a narrativa fechando-se o parêntesis aberto. O romance é fortemente autobiográfico, podendo classificar-se como ficção autobiográfica, pois as vidas de Xavier e de Manuel Alegre têm pontos em comum, como a luta anti-fascista, e talvez inclusivamente na paixão fatal por uma, ou várias numa, Cláudia. No romance encontram-se algumas metarreferências com o objetivo de demonstrarem que este romance é de facto uma construção, e não um relato, como por exemplo quando o narrador teoriza sobre Xavier ser o autor, ou o autor ser Xavier, como é Jano, deus romano com duas caras, ou Bernardim Ribeiro, o autor de Menina e Moça, famosamente pejado de projeções do seu autor nos respetivos personagens. Os capítulos que compõem o romance são curtos, não passando as três-quatro páginas, o que aproxima a forma do romance à composição poética. Esta edição integra a famosa coleção "Frente e Verso", pelo que em conjunto com o romance, esta edição contém o Livro do Português Errante, livro de poesia também de Manuel Alegre, o que gerou a experiência original de ir pontuando a leitura do romance com os belíssimos poemas do grande poeta. 

Citações:

"Mais tarde, Xavier dirá que, de certo modo, foi tocado pela graça. Alquimia, eis a explicação, se é que se pode explicar. Antes, talvez tivesse o dom de lhe querer sem saber que lhe queria. A partir de então, quando ela o olhava, tudo nele se subvertia, um anjo ou um demónio, talvez os dois ao mesmo tempo tocavam-no com seu fogo e com seu frio."

"É possível que sobre a paixão possam escrever-se muitos tratados. E contos, romances, éclogas, narrativas. Eu não seria capaz. Sei, como Bernardim ou Jano ou o autor, Xavier Furtado, eu próprio, o outro, que só então verdadeiramente se vive. E se desvive, acrescente-se. Porque é um viver de se morrer a cada instante. Xavier que o diga: foram anos e anos de plenitude e penitência. Num um só dia sem a incerteza e o ciúme. Não só o concreto, mas o abstracto, que é o pior de todos."

"As aves por vezes enlouquecem, costumava dizer Afonso Furtado. Quem sabe se não trago em mim uma gaivota endoidecida a voar para um sol que não existe? Às vezes penso se não serás apenas uma ilusão. Gostava de poder criar para ti a fala que não há, inventar outra caligrafia para deixar de ti não apenas um traço mas o retrato de onde saísses inteira e fulgurante para outro tempo, outra cidade, outra aventura." 


Pontuação: 8.5/10


Gonçalo Martins de Matos

segunda-feira, 29 de abril de 2024

"Se numa Noite de Inverno um Viajante", de Italo Calvino

   "Estás para começar a ler o novo romance Se numa noite de inverno um viajante de Italo Calvino." começa logo por desarmar quem entra neste romance peculiar do pós-modernista italiano. 
    A história é focada em nós. Nós quem? Nós, o Leitor. A história acompanha o Leitor, que, tentando sem sucesso ler o romance Se numa noite de inverno um viajante - porque o livro apenas apresenta o início -, enceta numa busca pelo resto do romance. No início dessa busca, o Leitor conhece Ludmilla, a Leitora, com quem partilhará a viagem que o aguarda. O livro incompleto leva ambos os Leitores a outro livro incompleto, que por sua vez leva a outro e por aí em diante, a cada novo livro desnovelando-se a trama que os tem deixado incompletos, mas adensando-se ainda mais o mistério em volta dos conspiradores e dos fins e dos meios da conspiração. As misteriosas personagens que rodeiam os misteriosos objetivos dos livros incompletos levam o Leitor numa viagem de descoberta da leitura e do papel que esta desempenha nas vidas de todos os Leitores e Leitoras. 
   Tratando-se de uma obra pós-moderna, as suas intenções não podiam ser mais claras. Abrindo logo com o reconhecimento de que nós, Leitores, estamos a começar a ler o livro Se numa noite de inverno um viajante de Italo Calvino, a partir daí as metarreferências e a metatextualidade assumem as rédeas da história do Leitor e da Leitora. Aquilo que se pode identificar como a trama principal do romance é interrompido esporadicamente com interações diretas do narrador connosco, leitores. Cada novo início de romance incompleto tem um título, um autor e uma história associada, que ajudam a empurrar a trama principal para a frente, enquanto o Leitor - o imaginado e nós - se deixa conduzir pelas ruelas labirínticas da literatura e da edição livreira. Todos os dispositivos narrativos servem um propósito apenas: dissertar sobre o papel da literatura e do livro na vida dos leitores, e na vida de todos. Esse propósito não é oculto, é diretamente comunicado ao leitor sem subterfúgios. Mesmo nos diferentes romances, os respetivos narradores, diferentes entre si, pensam sobre a narrativa e sobre como a usam e como ela se serve deles, nunca se dissipando a lembrança de que tudo não passa de um texto a ser desfiado pelas mãos de um autor com um propósito bem definido. Nesse sentido, neste romance autoconsciente, o metatexto funciona brilhantemente como forma e conteúdo, revelando-se equilibrado, tarefa que pela premissa já é de si difícil. Os romances inacabados, diferentes entre si, acabam por também se juntar numa história, também ela incompleta, que reflete a metáfora principal que o autor quer transmitir: a da leitura e o livro como as instâncias da vida, os personagens como os seres humanos que por ela caminham e que com ela e entre si interagem. 
   Um romance com toque de génio de um dos grandes da literatura pós-modernista europeia. 
 
Citações: 
 
"Estás para começar a ler o novo romance Se numa noite de inverno um viajante de Italo Calvino. Descontrai-te. Recolhe-te. Afasta de ti todos os outros pensamentos. Deixa esfumar-se no indistinto o mundo que te rodeia. A porta é melhor fechá-la; lá dentro a televisão está sempre acesa. Diz aos outros: «Não, não quero ver televisão!» Levanta a voz, senão não te ouvem: «Estou a ler! Não quero que me incomodem!» Não devem ter-te ouvido, com aquele barulho todo; fala mais alto, grita: «Estou a começar a ler o novo romance de Italo Calvino!» Ou se não quiseres não digas nada; esperemos que te deixem em paz."
 
"O romance começa numa estação ferroviária, ronca uma locomotiva, um arfar de êmbolo tapa a abertura do capítulo, uma nuvem de fumo esconde parte do primeiro parágrafo."
 
"Trazes o livro que estavas a ler no café e que estás impaciente por continuar, para de-pois poderes passar-lho, para comunicares de novo com ela através do canal aberto pelas palavras alheias, que justamente por serem pronunciadas por uma voz estranha, pela voz do silencioso ninguém feito de tinta e de espaçamentos tipográficos, podem tornar-se vossas, uma linguagem, um código entre vós, um meio de trocarem sinais e reconhecerem-se."  
 
 
Pontuação: 8.5/10
 
 
Gonçalo Martins de Matos

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

"The Shack", de William Paul Young

   Há que confessar que não tenho grandes conhecimentos acerca do autor deste livro, para além de o admirar pela simplicidade e simultânea complexidade com que descreveu Deus, a religião e a relação do Homem com Deus. É canadiano e publicou “The Shack” com uma editora criada por si e por amigos próximos. 
   “The Shack” é um conto de fadas pincelado de momentos de tortura e grande desgosto. Trata-se de uma história com enredo simples e de poucas personagens – pouco ou nada de complexo havia a esperar de um conto que retrata a vida familiar de um casal com três filhos. 
   É só quando nos “aproximamos da janela do quarto” que vemos de que laços se compõe esta família. O pai Mackenzie (mais conhecido por Mack) é um filho não amado – cresceu num ambiente de violência e de culpa, carregando consigo a maior culpa de todas. Nan, por outro lado, é uma mulher doce, crente, que consegue desatar e organizar todos os nós do coração do marido, sustentando assim o lar com amor e paciência. O casal tem três filhos: Josh, Kate e Missy – dois adolescentes e uma doce criança que teima em fazer perguntas importantes. 
   A história desenrola-se com a naturalidade da vida familiar. Surge, na normalidade de uma rotina, a ideia do pai levar os três filhos a acampar, como uma maneira de os manter em contacto com a natureza e para criarem laços mais profundos entre si. A viagem é planeada sem grandes complicações – um fim de semana de pai e filhos. 
   Num fim de semana em que tudo poderia só correr bem, na tentativa de salvar o filho Josh de se afogar, Mack depara-se com o rapto de Missy – que mais tarde iria culminar no seu assassinato numa cabana abandonada no meio da floresta.
   A partir daqui a vida de Mack é tomada pela “The Great Sadness”, tornando cada dia mais difícil que o anterior, numa caminhada lenta em direção ao precipício da culpa. Sem nunca ter obtido resposta, um dia, Mack encontra na sua caixa de correio um bilhete de um “Pappa” a pedir que este fosse de novo à cabana. 
   “Pappa”? Este termo era apenas usado por Nan, na privacidade da sua casa, para se referir a Deus. Teria Deus enviado um bilhete a Mack? Seria uma piada do assassino? Voltar à cabana onde descobriu o destino da sua filha? Ir ter com Deus? 
   “The Shack” é uma leitura leve mas que precisa de ser bem sentida, onde devemos permitir que a nossa fragilidade nos leve além do texto escrito. 

Citações:

“Don’t ever discount the wonder of your tears.”

“Forgiveness is not about forgetting. It is about letting go of another person’s throat.”

“I don’t need to punish people for sin. Sin is its own punishment, devouring you from the inside. It’s not my purpose to punish it; it’s my joy to cure it.”


Pontuação: 6.8/10


Carla Sofia Eiras

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

" O que Fazem Mulheres", de Camilo Castelo Branco

   "É uma história que faz arrepiar os cabelos". Assim começa mais um vernáculo, criativo, cáustico e inovador romance camiliano. 
   D. Ludovina pretende casar por amor. A sua mãe, D. Angélica, depois de uma admoestação sobre como o amor e o casamento são duas coisas distintas, consegue convencê-la armadilhando o pretendente a confessar a sua falta de interesse real em Ludovina. Assim, Ludovina aceita casar com o pretendente escolhido pelo seu pai, João José Dias. Casados os dois, as peripécias seguintes da vida de casado põem a nu as incongruências dos institutos da sociedade portuguesa oitocentista. Já as personagens do romance prendem-se numa fatalidade evitável, fechados nos lugares-comuns do mal de amor do período romântico que enquadra esta narrativa. A história do romance é esta, assim simplesmente exposta. Mas este romance não é a narrativa que o compõe, mas a crítica mordaz e irónica que Camilo Castelo Branco brilhantemente dispensa sobre tudo, desde os atos supérfluos dos seus personagens aos institutos sociais que emolduram as relações entre eles. 
   O estilo do romance é uma modalidade que era muito praticado na época da sua escrita: o folhetim. Mas este romance em folheto de Camilo apenas assim é como forma de sátira de Castelo Branco ao folhetinismo. O resultado final não é apenas uma maravilhosa sátira do ultrarromantismo de cordel, mas é também um romance muito diferente da sua época, ensaiando uma interatividade com o leitor e uma autorreferência tão consciente que parece um romance pós-modernista, dos que se escreveriam meio século após a morte deste autor, demonstrando mais uma vez a clarividência literária de Camilo Castelo Branco, faceta que não lhe é muito reconhecida fora dos meios literários, infelizmente. O tom do romance é jocoso do início ao fim, não escapando às lunetas perspicazes de Camilo nenhum aspeto da sociedade que o rodeava. Desde a hipocrisia dos virtuosos à mesquinhez dos justos, desde as imposições sociais à mulher até às auto-imposições acéfalas delas entre elas e dos homens entre eles. Apesar de a narrativa ser superficialmente ultrarromântica, em todo o seu fatalismo melodramático, o tom jocoso da crítica cedo nos demonstra que, tal como Eça de Queirós, a trama apenas tem essa função: mover a história. As descrições carregadas de ironia dos personagens ajudam a que nada do que eles fazem ou dizem seja levado a sério, causando o efeito curioso de o leitor revirar os olhos às atuações impulsivas e fatalistas dos protagonistas, contribuindo para tal o tom cáustico com que o autor nos narra as peripécias. O vernáculo de Camilo Castelo Branco continua um dos mais abrangentes da literatura portuguesa. Curiosamente, mesmo os verbetes rebuscados que Camilo utiliza contribuem para o tom irónico geral. Um pormenor muito humorístico que também contribui para o tom irónico do romance é um certo antitabagismo de Camilo, resultando do tabaco a única vítima mortal de um romance que, numa estética ultrarromântica, encerraria com todos os seus protagonistas finados. Muitas passagens ao longo do romance, e um capítulo em concreto, demonstram em Camilo também já uma certa sensibilidade feminista, ao explorar a condição da mulher perante o casamento e a sociedade, e ao dissecar as artimanhas patriarcais para a remeter ao seu lugar submisso. 
   Em termos formais, destaca-se no romance, novamente de forma a parodiar o modelo folhetim, uma série de capítulos adicionais, incluindo um "Capítulo avulso - Para ser colocado onde o leitor quiser", "Cinco páginas que é melhor não se lerem" - um capítulo muito engenhoso - e um posfácio em que Camilo relata uma última peripécia depois da última, parodiando a serialização em que o romance de folhetim muitas vezes se encerrava. Através de notas de rodapé e interpelações diretamente feitas ao leitor (ou à leitora), Camilo cria o tal pré-pós-modernismo patente no romance. Outra marca do pós-modernismo, a metalinguagem, marca presença, nomeadamente através de o narrador constantemente fazer referência ao facto de estar a escrever o romance, e de relembrar constantemente que o seu romance é um folhetim e que por isto ou por aquilo tem defeitos ou qualidades, entre as quais, ironicamente, a sua verosimilhança com a vida real. 
   Em suma, uma paródia humorística do romance ultrarromântico de folhetim feito por um dos expoentes máximos dessa estética literária. Uma leitura camiliana obrigatória para quem deseja conhecer este autor para lá do Amor de Perdição ao qual ainda hoje é teimosamente amarrado. 
 
Citações:
 
"João José Dias devia orçar pelos seus quarenta e cinco anos. Era de estatura menos que meã, adiposa, sem proeminências angulares, essencialmente pançuda, porque João José tinha uma série descendente de panças, desde a papeira cor-de-rosa até às buchas das canelas ventrudas."
 
"Disseram os filósofos e moralistas, uns, grandes santos como S. Paulo, e outros, grandes ateus como Voltaire, que a mulher é um ser exuberante de sensibilidade, e apoucado de raciocínio.
   Daí vem o denegarem-lhes acesso às ciências abstratas, às políticas, aos parlamentos, ao magistério, às regiões intelectivas do maquinismo social, e mandarem-nas cuidar dos filhos, e fiar na roca.
   Se o absurdo vinga, se, por alvitre grosseiro do mais forte, a mulher é um ente inepto para exercitar a razão, com que direito as julgamos e sentenciamos, segundo a razão, sendo as suas culpas demasias de sentimento. 
   A injustiça é flagrante e odiosa.
  Privam-nas de razão para as excluírem das funções que a requerem; sentenciam-nas pela razão, se o sentimento, seu dom essencial, as desvia do piso demarcado por ela."
 
"O leitor já sabe como no teatro se recupera o juízo. Se é mulher a doida, rigorosamente desgrenhada, esfrega os olhos, atira com as madeixas para trás, e dá fricções secas às fontes com frenesi; se, homem, abre a boca, espanta os olhos, soleva o peito em arquejantes haustos, despede o grito agudo obrigado a ambos os sexos, e está pessoa de juízo, capaz de casar, que é quase sempre a pior das doidices em que os autores fazem cair os seus doidos, restaurados para a razão."
 
 
Pontuação: 8.7/10 
 
 
Gonçalo Martins de Matos