segunda-feira, 5 de agosto de 2024

"Bela", de Ana Cristina Silva

   "Bela acabou de se matar" são as lúgubres palavras que abrem esta biografia ficcional sobre Florbela Espanca. 
   Bela, diminutivo de Florbela, é uma mulher complexa, com as suas esperanças e as suas quimeras. Acompanhamos as intensas paixões e os profundos desesperos por que passa Bela, revisitando constantemente a sua infância em busca de uma fonte para os fortes sentimentos antitéticos que marcaram a sua vida. A história que se desenrola é uma versão ficcionada da história da Florbela Espanca real, em que figuram as pessoas que a gravitavam, fosse a sua tenebrosa mãe adotiva, o seu pai ausente, os seus icompreensivos maridos ou o seu confidente irmão, e as suas inquietações ou alegrias nas dinâmicas entre causas e efeitos emocionais. 
   Ana Cristina Silva captura a tragédia da vida de Florbela Espanca de forma muito aprofundada, tanto a nível factual como a nível psicológico. Aliás, é precisamente no retrato psicológico da poeta alentejana que reside o talento narrativo da autora. Com uma investigação sólida aos diários de Florbela Espanca e aos escritos da e sobre a poeta de Vila Viçosa, Ana Cristina Silva consegue transportar uma Florbela que respira e sente dor para as páginas do seu romance. Porém, o romance não foi assim tão memorável para mim. Apesar de se sentir a Bela do romance como real, algumas das indagações sobre o passado e sobre o presente de Florbela ficavam aquém do potencial, principalmente quando a narração se sucedia na terceira pessoa, em que o foco era descritivo, não obstante o enfoque nos retratos psicológicos dos personagens. Os capítulos na primeira pessoa revelam o potencial do romance, sendo reflexões retrospetivas da própria Florbela sobre a sua vida, a sua infância e a sua poesia. Muitas das melhores linhas do romance encontram-se nos capítulos em que é a poeta a narrar-nos as suas inquietações, oferecendo-nos frases belas e profundas. O que não significa que a escrita de Ana Cristina Silva não seja boa, é-o, mas fica muitas vezes no limiar do bom português, quando tem o potencial de ser verdadeiramente impactante. A relevância da infância na construção da nossa psique está bem presente neste romance, em que a autora nos demonstra cruamente que os "pecados dos pais" nos afetam para o resto das nossas vidas. 

Citações: 

"As palavras alinhavam-se automaticamente, escutava o seu ruído inexprimível de cascata ao caírem sobre a folha branca como se marulhassem à tona da água. A sua escrita era demasiado imprecisa para chegar à verdade. E, no entanto, prosseguia, deixando as palavras desembaraçarem-se sozinhas, quase sem precisarem dela."
 
"Reconhecia o poder das suas rimas, o cuidadoso rendilhado das palavras, mas assustava-se com o mundo de mágoa e de vazio que revelavam. Só umas mãos de pedra teriam força para arrancar a dor esculpida sobre o rosto da mulher que escrevia aqueles poemas."
 
"Os meus versos eram a argamassa de uma mente desfeita. Vivia tanto para o meu encontro com a morte como para a poesia. O que fluía, ao redigir um novo poema, era sangue misturado com tinta, que depois percorria os vasos do meu braço direito, como uma espécie de transfusão, antes de atingir o papel."


Pontuação: 7/10


Gonçalo Martins de Matos

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