terça-feira, 5 de setembro de 2023

"O Osso do Meio", de Gonçalo M. Tavares

   "São quatro na pequena casa onde a solidão individual não impede o incesto; os animais com o mesmo apelido são gulosos e não prescindem de todas as operações que o desejo lhes permite." Assim abre o quinto integrante de O Reino. E assim concluímos a nossa leitura consecutiva desta grande obra de Gonçalo M. Tavares. 
    Três homens e uma mulher encontram-se na mesma fase das suas respetivas vidas, vidas de altos e baixos. Kahnnak reflete, numa fase de fraqueza, sobre a sua fase de força e juventude. Maria Llurbai reflete sobre o desamparo passado convertido em apatia presente. Albert Mulder é confrontado com o seu presente pelo seu passado. Vassliss Rânia equilibra a sua miséria presente com a sensibilidade do seu irmão louco. Nas tensões entre passados e presentes, estes personagens descobrem uma possibilidade de redenção entre o caos, que lhes oferece uma última hipótese de felicidade, ainda que efémera. 
   Até O Osso do Meio ser editado, O Reino constituía uma tetralogia que parecia fechada. Com a adição deste livro, passou a pentalogia, e colocou-se a seguinte questão: quão diferente seria um volume de O Reino pelo Gonçalo M. Tavares de 2020 dos restantes, lançados entre 2003 e 2007? A resposta é que, apesar de óbvias diferenças, um certo núcleo de O Reino não deixa de se fazer sentir. Contudo, as diferenças entre os primeiros quatro e este são bem vincadas. Mas comecemos pelas semelhanças. A escrita mantém a sua faceta analítica e lógica, e os temas, apesar de comuns na obra de Gonçalo M. Tavares, são os temas focados pela lente de O Reino: temas de infelicidade, desespero, guerra e paz, máquina e natureza, bem e mal. As narrativas continuam a situar-se no universo de O Reino, com referências a praticamente todos os romances anteriores (por exemplo, o irmão louco de Vassliss é Gada, um dos internados no hospício Georg Rosenberg em Jerusalém). Por sua vez, as diferenças têm uma natureza estrutural. A natureza fragmentária dos escritos de Gonçalo M. Tavares notam-se de uma forma mais vincada neste romance do que nos anteriores, sendo os textos que compõem os capítulos mais curtos do que os que compõem os restantes romances. Nota-se um abandono da narrativa mais coesa dos romances anteriores, sendo o foco deste as reflexões e os momentos no tempo dos personagens, sem grande expansão de uma história em si (não deixando de ser possível traçar uma linha temporal). Esta diferença é fundamental: apesar de os cinco romances se focarem em personagens concretos, neste o foco refugia-se na relação pessoal entre a personagem e o momento em que reflete, ao passo que os outros possuem um enredo que corre à margem do personagem. 
   Está, assim, concluída a leitura consecutiva dos romances que compõem uma das obras maiores de Gonçalo M. Tavares, O Reino. Trata-se de uma obra de excelência literária e filosófica, simultaneamente analítica e ensaística. Sem sombra de dúvida um dos feitos literários da literatura portuguesa, que me pode apenas levar a recomendar a sua leitura total: dos cinco romances por ordem, dos cinco romances sem ordem, de apenas um dos cinco romances, enfim: ler O Reino e crescer literariamente. E conhecer um dos autores mais brilhantes da literatura portuguesa. 

Citações: 

"Kahnnak pegou na parte principal das ruínas da chávena; em miniatura estava ali Roma Antiga, o que sobrevivera de fortes impérios, de vidas magníficas; a parte principal que resiste ao tempo é fortuita, um erro pode deixar vivo o mesquinho e enterrar aquilo que um momento antes dava ordens."

"As crianças crescem, os velhos também, e estes morrem; os adultos, esses, permanecem no meio, ocupados a entender o dinheiro."

"Visto de cima, de um edifício, não há erros, só há movimentos: substâncias que passam de um lado para o outro; formigas agressivas, mas racionais: os homens caminham para um sítio, não são coisas paradas – já nasceram, agora têm de resolver, têm de decidir."
 
 
Pontuação: 8.5/10


Gonçalo Martins de Matos