terça-feira, 13 de outubro de 2020

"Homem na Escuridão", de Paul Auster

   Paul Auster é considerado como um dos grandes romancistas dos Estados Unidos da América, sendo a sua voz narrativa apontada como uma das mais inconfundíveis das letras americanas. Existe também uma recorrência temática nas obras do autor, o que leva a que uma crítica da Kirkus Reviews classifique este Homem na Escuridão como "um doloroso somatório de todos os seus livros". 
   August Brill, um crítico literário reformado, sofre um acidente que o deixa incapacitado de andar, pelo que vai viver para casa da sua filha, Miriam, que mora sozinha desde o abandono pelo seu ex-marido. Na casa habita também Katya, neta do narrador, regressada dos seus estudos universitários para tentar recuperar da brutal perda do seu namorado, Titus. É uma casa marcada pela perda, pela dor e pelo desgosto, e August dá precisamente voz a essa angústia. Incapaz de conseguir adormecer devido ao peso dos seus fantasmas, o crítico literário conta-se a si mesmo uma história todas as noites, de forma a afastar os pensamentos intrusivos. A história que o narrador conta a si mesmo ao longo do romance é a história de Owen Brick, que certa noite tem consciência de se encontrar numa realidade diferente, na qual os Estados Unidos não entraram em guerra com Iraque, mas consigo mesmos, tendo alguns estados da União secessionado do Estado Federal, e outros formado um país completamente autónomo. Nessa realidade, é confiada a Owen Brick uma missão fundamental para acabar com esta guerra civil, que levantará ao protagonista mais questões e dúvidas do que certezas. Nos intervalos da narração desta América alternativa, Brill recorda a sua vida quotidiana, a sua vida passada, e vai construindo um retrato de três almas sofredoras, ele próprio, a filha e a neta. 
    Paul Auster é reconhecido pelas suas estruturas narrativas psicologicamente labirínticas e profundas, pelas suas reflexões simultaneamente lúgubres e auspiciosas e pelas suas autorreferêcias e meta e intertextualidade. Nunca tendo lido nada antes de Paul Auster, e sabendo agora o conteúdo e a forma dos seus romances, confesso que fiquei com muita vontade de conhecer mais obras do autor. O espaço temporal do romance é o de uma noite; o narrador, acometido por insónias, desnovela o enredo de Owen Brick de forma a afastar as suas angústias e os seus fantasmas. A característica da metatextualidade encontra na narração da história de Brick a sua maior expressão neste romance. Há muitos pormenores da vida de August Brill que encontram uma sombra sua na história que este se conta a si mesmo, nomes de personagens, locais, acontecimentos... Tal oferece-nos um vislumbre do estado da alma do narrador, e demonstra-nos os processos com que os escritores lidam com os seus fantasmas. Os Estados Unidos alternativos criados pelo narrador constituem um exercício curioso da imaginação, mas são também um eco da guerra interior e desfragmentação que este trava consigo mesmo. Intertextualmente, o narrador cita um verso de Rose Hawthorne, "Enquanto o bizarro mundo continua a girar", como o grande resumo da continuidade das vidas para além da dor, da recuperação inevitável da dor que acomete aos três habitantes da casa. Além disso, o narrador, que adora ver filmes com a sua neta, sendo ela estudante de Cinema, cita também alguns filmes que apresentam estudos sobre o preciso estado de alma em que se encontram os três. Quando Owen Brick nos é introduzido pelo narrador, este encontra-se num buraco no meio do campo, escuro e intransponível, tornando-o, à primeira vista, o Homem na Escuridão a que alude o título do romance, sendo que essa condição é uma metáfora para o verdadeiro homem na escuridão, o próprio narrador. 
   Trata-se de um sólido e profundo romance de um autor muito apreciado nas letras norte-americanas. 
 
Citações:
"A noite ainda é uma criança e, enquanto para aqui estou deitado na cama, perscrutando a escuridão, uma escuridão tão negra que nem consigo ver o tecto, ponho-me a recordar a história que comecei a noite passada. É o que eu faço quando o sono se recusa a vir. Deixo-me ficar deitado na cama e conto-me histórias. Podem não ser nada de especial, mas, enquanto estou dentro delas, impedem-me de pensar nas coisas que preferiria esquecer."
"Deixei de fumar já lá vão quinze anos, mas agora que Katya está cá em casa com os seus ubíquos American Spirits, voltei a entregar-me aos velhos e imundos prazeres, esmolando passas à minha neta enquanto mergulhamos em todo o corpus cinematográfico mundial, os dois lado a lado no sofá, duas chaminés soprando em uníssono, duas locomotivas que, no meio de grandes nuvens de fumo, deixam para trás este mundo odioso e intolerável"
"Certa tarde, almoçámos com um parente dela, um primo em segundo grau, um homem de uma distinção invulgar, já a caminho dos oitenta, um antigo editor que crescera na Bélgica e que, mais tarde, fora viver para França, uma pessoa afável e muito culta que, ao falar, usava parágrafos tão complexos quanto coerentes, como se fosse um livro vivo, um livro sob a forma de um homem."
 
 
Pontuação: 9.3/10
 
 
Gonçalo Martins de Matos

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

"Correria dos Pássaros Presos", de Ana Gil Campos

   Eis o regresso de Ana Gil Campos ao romance, três anos depois da publicação do seu terceiro livro. Desta vez em edição de autor, Ana Gil Campos cimenta a sua qualidade literária com um romance exemplarmente escrito e pertinente. 
    Cândida, após uma profunda reflexão sobre a presença social das redes sociais e da sua prevalência sobre as formas humanas de interação, decide tomar uma decisão radical e desligar-se das redes sociais. Tal ato abre-lhe as portas a percecionar os efeitos adversos que a presença das enormes quantidades de informação nas vidas das pessoas causa. Após tentativas frustradas de se habituar a uma realidade sem presença humana concreta, decide ir mais longe e, numa estadia na Capital, ouve falar de uma aldeia onde o Presidente afastou a internet através de inibidores de sinais, levando a que a aldeia se foque mais em si mesma e nas suas pessoas. De imediato toma a decisão de arrendar uma casa nessa aldeia. Na aldeia, Cândida contacta com uma realidade esquecida, de interações humanas, de empatia e de serenidade, sem a ânsia e a inquietação causadas pelo ritmo de vida da cidade. Paralelamente, vai-se espalhando pelo mundo uma pandemia, cujos sintomas consistem, entre outros, na perda da capacidade de expressão de emoções, na apatia severa e no alongamento dos polegares, efeitos adversos que são causados pelo uso excessivo de tecnologias. Até ao final da sua estadia, Cândida irá redescobrir na partilha com os habitantes da aldeia, na empatia e no sossego o fundamental da interação e da emotividade humana, refletindo profundamente sobre os malefícios emocionais do ritmo de vida exacerbado das cidades. 
   O romance é uma metáfora com toques futuristas sobre não só o estado da sociedade humana atualmente, mas também sobre a evolução, ou retrocesso, possível com esse estado atual. A escrita da autora é um deleite descritivo. As descrições que emprega são vívidas e equilibradamente sensoriais, saltando-nos das páginas para os olhos com uma força notável. O tema abordado pela autora é pertinente e acutilante, fazendo da sociedade ficcionada um eco da nossa sociedade real e atual. Os pormenores das aplicações para as pessoas se lembrarem umas das outras, dos chipes de identificação e partilha de dados, dos relógios e telemóveis inteligentes que se prendem a nós e nos hipnotizam constroem esse tal reflexo da evolução possível da sociedade na qual vivemos. Longe de ser uma distopia, a realidade que a autora nos expõe tem contornos distópicos, contornos esses que já começamos a notar nos dias de hoje. O romance divide-se em quatro partes que correspondem aos três espaços que a protagonista habita. A pandemia de incapacidade expressiva que se propaga pelo mundo é mais um pormenor muito interessante desta narrativa, sendo que a sociedade atual atravessa, de facto, uma pandemia, mas ignora a pandemia que nos assola há já alguns anos, cujos sintomas se vão intensificando cada vez mais. Os personagens que povoam esta história atingem um ponto das suas vidas em que se apercebem do que de facto está errado na realidade que conhecem, mas, tirando a protagonista e um ou outro personagem, acabam por recair na utilidade prática que o excesso de informação apresenta. 
   É um sólido romance que Ana Gil Campos nos apresenta, e que merece definitivamente a sua leitura.

Citações:
"Mas os seus olhos tão cobertos de luz fazem com que pareça cega, e a cegueira branca perante a sua própria lucidez faz com que se inquiete com esta ignorância de uma cegueira que não é sua. Sente sem saber sentir que algo não está bem, com ela, com os outros, não sabe, sente apenas uma leve irritação permanente."
"Perto dos passos distraídos da jovem, o mar galga feroz em ondas, em fúria por vidas dormentes, liberta brados sucessivos, obstinados, estendendo-se longa e velozmente até ao muro entre a praia e o passeio, em avanços e recuos, uma e outra vez, um gesto que repetirá durante dias até serenar."
"A aniversariante começa por dizer estar muito emocionada, exibindo uma folha com uma expressão de pequena lágrima a cair do olho, que não contava que os pais tivessem convidado tantas pessoas de quem ela gosta, exibindo duas folhas, uma expressão de boca aberta de admiração e outra expressão de sorriso feliz, e espera que todos se estejam a divertir tanto como ela, exibindo duas folhas, uma expressão de gargalhada e outra expressão animada com óculos de sol. Tudo isto dito sem qualquer expressão no próprio rosto, com a cara que usa sempre como uma máscara."
 
 
Pontuação: 9.6/10
 
 
Gonçalo Martins de Matos

domingo, 20 de setembro de 2020

"Maria dos Canos Serrados", de Ricardo Adolfo

   É difícil não elevar as nossas expetativas quando o autor que vamos ler vem altamente recomendado por figuras como Valter Hugo Mãe ("A nova literatura portuguesa passa obrigatoriamente por aqui") ou António Lobo Antunes ("Uma maneira de falar completamente nova na literatura portuguesa"). O resultado final é que efetivamente encontramos uma maneira nova de falar na literatura portuguesa e que, apesar de não ir propriamente de encontro às altas expetativas que tinha criado, estas não foram goradas. 
   Maria, uma jovem desbocada e "de má rês", bipolarizada no afeto e no ódio que sente pelo seu namorado gigolô, chamado de Velho, dá por si numa situação de despedimento devido ao efeito esmagador da crise e das falcatruas da chefe na empresa onde trabalhava. Assim empurrada para uma defesa surreal dos seus direitos e posto de trabalho, juntamente com os seus colegas, liderados pelo "grande líder" do sindicato, Maria dá por si a ver escapar-se-lhe qualquer hipótese de se fazer pagar das dívidas salariais devidas pela empresa. Entre as suas inquietações pela falta que o seu "Velhinho" lhe faz, as mirabolantes peripécias para resgatar a empresa e as suas próprias reflexões sobre a condição em que se encontra, Maria dá por si cada vez mais a despegar-se dos últimos resquícios do seu enquadramento numa sociedade dita organizada e decide meter mãos à obra e cobrar o que lhe é devido, a bem ou a mal. 
   Este romance é narrado na primeira pessoa, por Maria. Os capítulos são estruturados de uma forma proto-epistolar, com todos a começar com Maria dirigindo-se ao seu "Velhinho", quase sempre variando a forma como lhe dirige palavra, conforme o seu estado de espírito. São também capítulos breves, quase telegráficos por vezes, contendo as indagações da narradora ou relatando as peripécias da sua vida. Sendo narrados na primeira pessoa por uma mulher desbocada, a utilização da oralidade corriqueira e não poucas vezes grosseira é uma característica muito forte neste romance. A linguagem totalmente oral e corriqueira é brilhantemente utilizada por Ricardo Adolfo; cria mesmo a sensação de ouvirmos estes pensamentos a ser expressados pela narradora ao nosso lado. Não faltam o jargão popular, os palavrões e os neologismos aportuguesados para compor com mestria uma fala completamente livre e verosímil. Ainda nesta tendência oralizante, Ricardo Adolfo leva o sonho de Saramago em reproduzir literáriamente a fala ainda mais longe, imprimindo nos diálogos uma escrita quase fonética. Como exemplos desta forma curiosa de escrever o discurso direto podemos invocar: "sim, quem é cavia de ser?"; "vá, mostra lá, mas olha queu não tenho nada pra mostrar"; "tá ma contratar" ou "atão, comé que passa?"; isto para citar alguns exemplos desta oralização fonética. Além disto, o discurso direto é introduzido sem travessão e sem maiúsculas, apenas sem empregando estas quando se trata de nomes próprios. Esta linguagem original, corriqueira e fortemente oral que Ricardo Adolfo emprega com bastante desenvoltura são, a meu ver, os pontos mais fortes deste romance peculiar. A narrativa é feita de peripécias quase surreais que nos põem um sorriso nos lábios, quer pela sua natureza, quer pela interpretação dos factos pela própria narradora. A protagonista, outro ponto bastante fulcral deste romance, é quase completamente atípica na literatura portuguesa. Trata-se Maria de uma anti-heroína cujas ideias e conclusões se afastam daquilo que podemos considerar como uma atitude ética positiva, mas que nos deixa empáticos com a sua situação, dando por nós a apoiar, inclusive, algumas das suas decisões e atitudes, reprováveis aos olhos da moral comunitária. 
   Efetivamente, uma nova forma de falar na literatura portuguesa, a que não podemos ficar indiferentes. 
 
Citações:
"Só para dar razão àqueles que acreditam que tudo o que sobe tem mesmo de se estatelar, para nossa desgraça aterrámos no Grande Festival Está Tudo Fodido dos Cornos, organizado pela nossa caríssima doutora, com direito a variedades e palhaços famosos. Sendo que o papel de palhaço-mor foi atribuído a nous. Voilà. Cabra." 
"Mais um génio da gestão incompreendido neste país. Mais uma empresa nacional que não vai conquistar a Europa, a Ásia e o ciberespaço porque os pobres que aqui trabalham não são capazes de acompanhar a genialidade de quem quer liderar a empresa até aos quatro cantos da falência."
"A primeira coisa que fizemos assim que chegámos ao local de desemprego foi googlar se a falta prolongada de orgasmos pode ter efeitos nocivos. A lista de maleitas é infinita. Isto está a tornar-se um caso clínico crónico. Tem de haver uma droga legal para este tipo de doença. Se não há, o que é que as farmacêuticas andam a investigar? Imagina tomares uma pastilha e a seguir começares a orgasmar. É a ideia do milénio, só pode.
   Devíamos ter ido para Farmácia, devíamos não ter chumbado a Físico-Química por faltas, devíamos ter sido avisadas de que quem se balda à escola ou vai para ministro ou então está fodido."
 
 
Pontuação: 8.9/10
 
 
Gonçalo Martins de Matos

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

"A Mulher de Trinta Anos", de Honoré de Balzac

   Honoré de Balzac é considerado o pai do Realismo na literatura e é conhecido pelas suas reflexões psicológicas acutilantes. A sua obra maior, a Comédia Humana, é composta pelo conjunto dos seus romances, que constituem uma extensa análise dos diversos aspetos da sociedade francesa oitocentista. Sabendo isto de antemão, a leitura deste romance de Balzac revelou-se uma profunda desilusão. 
   A história prende-se com Julie de Chastillon, jovem mulher apaixonada pelo seu futuro marido, Victor d'Aiglemont, um homem banalmente medíocre. O pai de Julie avisa-a contra a sua tolice, mas ela não lhe liga, uma vez que apenas o seu romance lhe interessa. Algum tempo de um casamento falhado e da descoberta da fatal verdade de que o seu pai lhe avisara, Julie desenvolve um amor platónico por Lord Arthur Grenville. Saltando novamente uns anos, vemos uma Julie de trinta anos, completamente desiludida e desamparada na sua vida, apenas os seus deveres de mãe e a pressão da sociedade a impedindo de terminar com a sua vida. Conhece nesta altura da sua vida Charles de Vandenesse, jovem diplomata com quem estabelece uma relação de confidência. Saltando ainda mais um pedaço de tempo, agora observamos histórias fatalistas que assombram a existência já miserável de Julie, para além das vidas dos restantes membros da família d'Aiglemont. Por fim, no final da sua vida, Julie reflete sobre a sua vida marcada pela dor e sobre o papel da mulher na sociedade e, acima de tudo, no casamento. 
   Pende sobre a narrativa um exacerbado fatalismo. Um dos piores aspetos do romance prende-se com este dramatismo fatalista que sufoca a ação dos personagens. Nenhum personagem neste romance é natural, todos agem condicionados pela fatalidade, o que confere à narrativa um desgaste prematuro. A estrutura do romance é ainda outro ponto negativo. O romance trata-se de uma manta de retalhos de episódios de si já disparatados  cosidos uns aos outros para formarem o volume de um livro. Neste aspeto, os estudiosos da obra balzaquiana são unânimes, com Pierre Barbéri, escritor e crítico literário francês, catalogando este romance como "um dos pior construídos, mais indesejáveis e pior escritos" do autor, acrescentando o professor e tradutor húngaro-brasileiro Paulo Rónai que "esse conjunto de seis episódios disparatados, mal reunidos entre si e rematados por uma conclusão melodramática, é mais apropriado a enfastiar o leitor do que a fazê-lo procurar outras obras do romancista." Não são credenciais muito lisonjeiras para um romance. Não deixa de ser uma decisão no mínimo estranha a da coleção "Ler Faz Bem" de selecionar este de todos os outros de Balzac, claramente bem melhores para dar a conhecer o autor. Mesmo um dos pontos mais fortes de Balzac, que são as suas observações psicológicas, não se revelam neste romance, as poucas que há sendo superficiais e demasiado melodramáticas. Não é de todo um bom romance para se conhecer um autor que é descrito como um grande escritor. Fica a esperança de que obras futuras de Balzac se elevem bem acima deste nível, e que A Mulher de Trinta Anos tenha constituído uma necessidade do autor em forçar a sua publicação, mais do que vontade sua. Mas também nos deixa desconfiados das próximas obras do autor, porque Balzac historicamente viveu em constantes problemas financeiros, pelo que qualquer outra pode ter sido publicada como necessidade também. É uma péssima experiência de leitura. É deste romance que surge o termo balzaquiano associado à beleza da mulher madura, que é um pormenor insignificante mas que não deixa de ser curioso. Nem a crítica que o autor deseja fazer à imposição da sociedade à mulher de uma ditadura matrimonial inevitável consegue vingar, perdendo-se no meio da confusão fatalista da narrativa. 
   Portanto, uma péssima experiência de leitura que não recomendaria a ninguém. No entanto, não desistirei para já de Balzac, uma vez que ser apelidado de pai do realismo e de acutilante observador psicológico promete boas experiências de leitura nos seus pontos mais altos.

Citações:
"Desde que regressara de Touraine, a sua saúde debilitara-se cada vez mais e a vida parecia ser-lhe marcada pelo sofrimento; sofrimento elegante de resto, doença quase voluptuosa na aparência, e que podia passar aos olhos de pessoas superficiais por uma fantasia de mulher afetada."
"Uma tarde os dois enamorados estavam sós, sentados perto um do outro, contemplando uma das mais belas fases do firmamento, um destes céus puros em que os últimos raios do sol lançam cores ténues de ouro e púpura. Neste momento do dia as lentas diminuições da luz parecem despertar suaves sentimentos, as nossas paixões vibram ternamente e saboreamos as perturbações de não sei que violência depois da calma."
"A cor carregada da abóbada chegava, por insensíveis graduações, a confundir-se com a das águas azuladas, marcando o ponto de encontro por uma linha cuja claridade cintilava tão vivamente como a das estrelas."


Pontuação: 3.7/10


Gonçalo Martins de Matos

domingo, 30 de agosto de 2020

"Os Livros que Devoraram o meu Pai", de Afonso Cruz

   Os Livros que Devoraram o meu Pai é uma das várias incursões de Afonso Cruz na literatura infanto-juvenil, meio onde o autor também produz obras marcantes. Esta é indubitavelmente uma delas.
    Quem nos conta a história é Elias Bonfim. Começa por nos apresentar o seu pai, Vivaldo Bonfim, escriturário entediado com um mundo do trabalho sem literatura. Um dia, Vivaldo desaparece dentro das páginas de A Ilha do Dr. Moreau, de H.G. Wells. Então, Elias, recebendo da sua avó acesso ao sótão onde o seu pai guardava os seus livros, decide encetar numa busca pelo seu pai, através da leitura dos livros do seu pai. Paralelamente, conta a sua própria vivência na escola, com o seu amigo Bombo, assim chamado por ser muito gordo, e pela sua paixão por Beatriz, por quem Bombo também sente uma paixão, e da sua dificuldade em viver num mundo em que coisas simples como chegar a horas ao jantar se sobrepõem à leitura e à literatura. Nas suas leituras são vários os diálogos que Elias tem com diversos personagens das diversas histórias que lê, em busca do seu pai, personagens como Mr. Hyde (de O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde), Mr. Prendick (de A Ilha do Dr. Moreau) ou Raskolnikov (de Crime e Castigo). 
   Toda a história é uma grande viagem pelo mundo da literatura e pelo amor pela leitura. Como nos seus romances, a escrita de Afonso Cruz é muito simplista mas carregada de filosofia e humanismo. As indagações de Elias Bonfim sobre a leitura, o amor, as relações familiares, o bem e o lado escondido do ser humano complementam a história que ele narra sobre as suas incursões dentro dos livros do seu pai. Os personagens literários com quem Elias dialoga são representações dos temas fundamentais que o seu relato aborda. Apesar de este livro de Afonso Cruz não possuir das suas belíssimas ilustrações, não deixa de ter um mínimo da sua característica plasticidade artística. Nomeadamente, o uso de um tamanho de letra maior em frases esporádicas para enfatizar ou destacar o que está a ser descrito, para além de uma página onde aparecem diversos nomes de grandes escritores na vertical, como se estivéssemos a ver efetivamente a estante de Elias. Pontuam também a história várias parábolas chinesas, quer contadas por Bombo, que as aprecia muito, quer introduzidas por um dos diversos personagens da literatura que povoam este livro, sobre os temas fundamentais abordados pela narração. Resta dizer que este livro foi vencedor do Prémio Literário Maria Rosa Colaço para literatura infanto-juvenil em 2009.
   Trata-se de um livro juvenil muito interessante que nos apaixona pela leitura através da sua viagem por alguns clássicos intemporais aliada a situações tematicamente correspondentes da vida real. É um livro recomendado para qualquer jovem leitor que esteja a descobrir o maravilhoso mundo da leitura.
 
Citações:
"O meu pai só pensava em livros (livros e mais livros!), mas a vida não era da mesma opinião, a vida dele pensava noutras coisas, andava distraída, e ele teve de se empregar. A vida, muitas vezes, não tem consideração nenhuma por aquilo de que gostamos."
"Atravessar a Rússia significa percorrer onze fusos horários. Quando numa ponta do país é de dia, na outra é de noite. A Rússia é como a alma humana. Se tem um lado luminosos, é porque a outra ponta está no escuro. Somos todos feitos desta estranha mistura de fusos horários."
"Quando vemos uma bela flor num deserto, admiramo-la, mas quando passamos a vida rodeados de belas flores, não reparamos. Perdem todo o significado da individualidade, de ser único. É o preço da quantidade e, se quer saber, caro Bonfim, é o mal dos tempos. Tudo é muito, vivemos nesse reino de quantidades, rodeados de coisas para que nos esqueçamos de nós mesmos e do que se passa cá dentro."
 
 
Pontuação: 7.4/10
 
 
Gonçalo Martins de Matos

sábado, 29 de agosto de 2020

"A Jangada de Pedra", de José Saramago

  Como se verificou com O Ano da Morte de Ricardo Reis, este romance não é particularmente memorável, não deixando de configurar uma grande obra por um autor que não desilude.
   O pano de fundo deste romance é uma Península Ibérica que se separa do restante continente europeu pelos Pirenéus, começando assim uma viagem pelo Atlântico fora "em busca" de um lugar. Começa a história pelo surgimento de fendas ao longo de toda a cordilheira pirenaica, que, apesar de intrigarem os cientistas, não dão azo a preocupação por parte das autoridades. Nas cidades fronteiriças, vários sinais vão surgindo de que se prepara alguma coisa incomum, nomeadamente na cidade de Cerbère, onde todos os cães, até então calados, começaram a ladrar. No início de tudo isto está o ato de Joana Carda, uma das protagonistas, de desenhar no chão um risco com uma vara de negrilho, estabelecendo-se assim uma causalidade entre este ato e os factos descritos. Separando-se definitivamente a Península da Europa, somos introduzidos a Joaquim Sassa, que atirou uma pedra de tamanho impossível para longe no mar, José Anaiço, que é perseguido para todo o lado por um enorme bando de estorninhos, e Pedro Orce, que afirma sentir a terra tremer debaixo dos seus pés, mesmo que mais ninguém o sinta, os primeiros em Portugal e o segundo em Espanha. Ouvindo falar de um homem perseguido por um bando de estorninhos, Joaquim Sassa decide procurá-lo, viajando no seu carro, Dois Cavalos. Ambos partem então em busca de Pedro Orce. Os três viajam juntos, apenas impelidos pela sensação de que assim tem de ser, que os acontecimentos bizarros que lhes aconteceram estão ligados à separação da Península. Em Lisboa, encontram Joana Carda, que lhes relata o seu episódio com a vara de negrilho, juntando-se então ao grupo, para lhes mostrar o risco que desenhara no chão, passando ela e José Anaiço a estar juntos. Surgindo um cão escuro com um fio de linho azul na boca no local onde se encontra o risco, que eles têm a sensação de querer que o sigam, este guia-os até a casa de Maria Guavaira, viúva, a quem se liga Joaquim Sassa através do fio de linho azul que o cão transportava. Partem então os cinco, mais o cão e dois cavalos, que puxam a galera que os transporta, para o "fim do mundo", os Pirenéus, onde sentem que devem rumar e onde desejam ver o mar do alto das montanhas. Pelo meio, vamos observando a resposta da Europa e do resto do mundo a um insólito como este, assim como ás reações dos portugueses e dos espanhóis à situação em que se encontram. Seguimos também as viagens internas dos protagonistas à medida que vão efetuando a sua viagem física. 
   Este romance de José Saramago é saído de uma das suas convicções mais fortes, que é a identidade ibérica que devia unir os dois povos da Península. A metáfora de a Península Ibérica se separar do resto da Europa e de, por força disso, ter de trabalhar em conjunto para minimizar as implicações de tal acontecimento é mais uma prova do génio efabulador de Saramago, juntando-se a uma grande galeria de metáforas excecionais criadas pelo Nobel português. A história que vai acontecendo quase se subalterniza à mensagem que o autor quer passar, parecendo que a viagem dos protagonistas é apenas uma desculpa para poder encetar na sua análise. O marcante sarcasmo do autor não deixa de se revelar neste romance, como se revela nos outros, assim como a sua utilização liberal da pontuação e a marcante oralidade da sua narração, que são pontos fulcrais da obra saramaguiana. No entanto, fora estas vertentes essenciais, este romance não tem, verdadeiramente, muito mais que seja marcante. O que é verdadeiramente marcante neste romance é a descrição dos recantos da península Ibérica por onde passam os protagonistas e a metáfora principal do autor, da não pertença cultural da Península a uma identidade europeia, antes a uma identidade ibérica conjunta. Outro ponto que é sempre favorável é o vernáculo popular empregue por Saramago nas suas narrações, o que vai, claro, de encontro ao teor oral da sua narrativa. Há também umas referências subtis a O Ano da Morte de Ricardo Reis, romance cronologicamente anterior a este, que geram um pequeno meio sorriso a quem o leu e as descortina na narrativa. 
   Reiterando o que escrevi sobre o romance anterior de Saramago, trata-se aqui de um romance saramaguiano, lúcido e que merece ser lido e apreciado, apesar dos pontos desfavoráveis que nele encontrei. 
 
Citações:
"Um dia que já lá vai, D. João o Segundo, nosso rei, perfeito de cognome e a meu ver humorista perfeito, deu a certo fidalgo uma ilha imaginária, diga-me você se sabe doutro país onde pudesse ter acontecido uma história como esta, E o fidalgo, que fez o fidalgo, foi-se ao mar à procura dela, gostaria bem que me dissessem como se pode encontrar uma ilha imaginária, A tanto não chega a minha ciência, mas esta outra ilha, a ibérica, que era península e deixou de o ser, vejo-a eu como se, com humor igual, tivesse decidido meter-se ao mar à procura dos homens imaginários"
"Desesperado, um sábio norte-americano, e dos ilustres, foi ao extremo de proclamar no convés do navio hidrográfico, contra os ventos e os horizontes, Declaro que é impossível que a península esteja a mover-se, mas um italiano, ainda que muito menos sábio, porém reforçado pelo precedente histórico e científico, murmurou, mas não tão baixo que o não ouvisse aquele providencial ser que tudo escuta, E pur si muove."
"Mas aproveitam, diriam, como aconselhou o poeta, Carpe diem, o mérito destas velhas citações latinas está em conterem um mundo de significações segundas e terceiras, sem contar com as latentes e indefinidas, que quando a gente vai a traduzir, Goza a vida, por exemplo, fica uma coisinha frouxa, insossa, que não merece sequer o esforço de a tentarmos. Por isso insistimos em dizer, Carpe diem, e sentimo-nos como deuses que tivessem decidido não ser eternos para poderem, no exacto sentido da expressão, aproveitar o tempo."
 
 
Pontuação: 6.8/10
 
 
Gonçalo Martins de Matos

sexta-feira, 10 de julho de 2020

"Autobiografia", de José Luís Peixoto

  A voz de José Luís Peixoto é uma das mais inconfundíveis e marcantes da literatura portuguesa contemporânea, e neste romance revela-se com a sua costumada força.
   Conhecemos José, protagonista desta narrativa, um jovem aspirante a escritor cuja vida em Lisboa é afogada pelas suas dívidas do jogo, o seu alcoolismo e a sua frustração com o seu inexistente segundo romance. São as inquietações deste personagem que nos irão acompanhar ao longo da narrativa. Em contraponto, acompanhamos um Saramago nos anos noventa, já auto-exilado em Lanzarote, a sua reputação já construída, ainda sem o Prémio Nobel. Entre as suas inquietações, é oferecida, pelo seu editor, a José a oportunidade de escrever uma ficção biográfica sobre Saramago. Entretanto, José conhece Lídia, mãe solteira cabo-verdiana, apaixonada por Saramago, que trabalha num mercado, até se despedir e ir trabalhar para a casa de Bartolomeu, amigo de José e reformado saudosista. Somos também apresentados a Fritz, amigo de José e dono de uma pequena livraria em Lisboa. As inquietações e os vícios de José vão sendo aos poucos atenuados pela sua convivência com Lídia, que o mantém preso à terra e lhe dá alento para que a sua preocupação seja a escrita da ficção biográfica, que se metamorfoseia na preocupação com a escrita do seu segundo romance. De Lídia conhecemos as suas preocupações quotidianas com o seu filho pequeno, mais para a frente sendo-nos apresentado aos poucos o seu passado e as suas saudades de casa. De Fritz, acompanhamos a sua vontade de fazer as pazes com o passado, com o reencontro com o seu pai. Em torno destes três pilares principais rodam outros personagens e outras preocupações, mas todas elas parecendo ter um aspeto em comum: José Saramago. Seguimos, então, estas histórias que se cruzam em direção a um final poético e esperançado, almejando ao melhor que o futuro poderá trazer. Até lá, ainda muitas surpresas e reviravoltas se escondem à espreita, aguardando que nelas caiamos, inadvertidos. 
   Este romance é, como outras obras de José Luís Peixoto, uma obra de grande fôlego literário. A premissa de tornar José Saramago em personagem de um romance é muito interessante, e o autor não desilude no tratamento que lhe dá. Mantém sempre o domínio da prosa, e as linhas que desfia tornam a juntar-se magistralmente no final, sem nunca se desviarem dos seus rumos. Como noutras obras do autor, a metaliteratura e a metalinguagem fazem a sua aparição quando necessárias, aqui não se imiscuindo demasiado na histórias, mas essenciais a um romance que interliga um José desconhecido com um Saramago conhecido. O título Autobiografia associado ao conteúdo do romance levam-nos para campos de metalinguagem que José Luís Peixoto se tornou especialista em explorar. Não deixa de ser curioso como consegue ser estabelecida uma ligação, direta e flagrante ou indireta e ténue, entre as vidas dos protagonistas e Saramago, uma ligação que, quando não é pessoal, sente-se como pessoal através do ato da leitura. Não posso, infelizmente, explorar mais o lado meta deste romance, com receio de que sejam feitas revelações indesejadas. Mas espero que, dito isto, tenha despertado o interesse. Além das personagens principais, temos uma galeria inusitada e curiosa de personagens. Muitos nomes e locais do romance são referências a nomes e locais dos romances do próprio Saramago, mais um exemplo da metaliteratura presente neste romance. Ainda sobre esta metaliteratura, a estrutura e a premissa so romance são uma homenagem ao Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago, uma vez que ambos transformam uma figura maior da nossa literatura em personagem de romance. Os laços familiares e o passado são muito relevantes ao longo de todo o romance. Quer os laços fortes como os laços estranhos. A ligação de José, Fritz e Saramago aos seus pais é um eco da conhecida orfandade paterna do autor, uma ligação agridoce, de amor filial e, ao mesmo tempo, de dúvida e angústia. Já a ligação do Saramago real aos seus avós é homenageada aqui na ligação de Lídia à sua avó, longe em Cabo Verde mas sempre presente. Um pormenor muito interessante neste romance é a inclusão de alguns capítulos que reproduzem as anotações de José no seu caderno sobre a evolução da ficção biográfica, que, como foi dito, se vai esbatendo na escrita do seu segundo romance. O fecho do romance é um reflexo simétrico do início do romance, e esse é ainda outro pormenor muito interessante na notável metalinguagem de Peixoto. 
   Recomenda-se a leitura deste romance.

Citações:
"Ao mesmo tempo, as personagens ainda mexiam no seu íntimo, revolteavam assustadas, incertas do futuro, faltava-lhes palavras, começavam a desfazer-se; também por isso, o escritor precisava de mais algum tempo a sós com elas, precisava de acudir a essa aflição; e agora?, e agora?, indagavam as personagens sem parança. Era necessário tempo para explicar-lhes que agora a sua vida começaria de facto."
"E, não se sabe de que memória ou invenção, de Saramago com trinta anos ou deste narrador anónimo, não se sabe de onde surgiu a imagem de um balão de criança, a mão a abrir-se e a soltar o cordel, o balão a subir ao céu e, lá no alto, a ser levado pelo vento, cada vez mais longe, a cor ainda a distinguir-se, pequeno ponto, mas a dor terrível de todo o céu ao seu dispor, como todo o esquecimento, todo o abandono."
"A mesma pessoa sabia e não sabia, tal como está a acontecer aqui. Poucas personagens tentam conhecer o título do romance a que pertencem. Até se forem capazes de intuí-lo, até se passarem longos capítulos a imaginá-lo, parágrafos enormes nunca são capazes de ter a certeza absoluta. No entanto, quem escreve o romance avaliou o título de vários prismas, quem o lê parte desse enunciado."


Pontuação: 9/10


Gonçalo Martins de Matos

sexta-feira, 22 de maio de 2020

"Azul-Turquesa", de Jacinto Lucas Pires

   Este romance de Jacinto Lucas Pires é daqueles livros que sempre vimos na estante dos nossos pais, e que chega o dia em que pensamos é desta e decidimos ler. 
   Azul-Turquesa segue os dias das vidas de José e Maria, individualmente até ao momento em que se cruzarão. José, professor de Matemática recentemente divorciado, passa muito do seu tempo no apartamento de um amigo ou simplesmente passeando pelas ruas de Lisboa, admirando as particularidades da vida de das vidas na capital. Maria escreve para uma revista, e pontua a sua parte da história com a demorada redação de uma peça sobre a mulher portuguesa e a sua rotina de passeio comercial no percurso casa-trabalho e trabalho-casa. Entre estas duas vidas inúmeras outras revelam pedaços de si nas páginas deste romance, sendo-nos oferecida uma recheada galeria de figurantes que podem reaparecer umas páginas à frente ou simplesmente uma vez. As vidas de José e Maria entrecruzam-se perto do final do romance, e as suas experiências peculiares darão origem a um final insólito e inesperado. 
   Jacinto Lucas Pires classificou este romance como sendo o equivalente a visualizar um filme numa sala de cinema. O estilo deste romance dá precisamente essa sensação. Ao longo de todo o romance assistimos a uma colagem de cenas que se sucedem, cada uma com a sua geografia e figurantes específicos. O tom do romance é caricato, pois algumas das situações que se colocam, mais a José do que a Maria, são tão insólitas quanto inesperadas. À parte da intriga principal, as vidas paralelas de José e Maria até ao seu inevitável encontro, as existências dos restantes figurantes tomam a rédea secundária da narração, alterando a paisagem com as suas afirmações e ações. São inúmeros os locais que estas figuras habitam, todos eles possuindo um mínimo descritivo que nos permite visualizar precisamente o tipo de cena que o narrador nos transmite. Não tenho muito mais para dizer, curiosamente. Não se passa neste romance muito mais para além do que foi escrito. No entanto, este romance não é de todo desinteressante ou mau, é muito bem estruturado e tem uma linguagem pragmática, fazendo eco do estilo cinematográfico do romance. É um romance de ver.
   Posso afirmar que esta é uma leitura ligeira que entreterá os seus leitores, que é no fundo o objetivo deste pequeno e interessante romance. 

Citações:
"Detrás do balcão um homem de cabelo comprido, loiro, levemente ondulado, com um bigode e uma pêra muito delicados, parecendo um pouco um mosqueteiro, talvez o Aramis, levanta a cebeça quando o rapaz entra."
"Fecha a porta de vidro da entrada Maria, e depois anda até à esquina. Ao ver um táxi, levanta o braço. O carro, porém, não pára. Antes pelo contrário, acelera, amarelo, para passar o semáforo, vermelho, e Maria olha para o meio da avenida. Junto do candeeiro que não é bem um tê nem bem um i grego, os dois rapazes da prosa, da poesia e dos equipamentos de futebol correm sem sair do lugar."
"E continua a sorrir no elevador. Depois abre a porta de vidro da entrada e sai. Do lado de cá da estrada, grita para o homem de de gabardina «eu chamo-me Maria», e ele, «eu chamo-me José». Ela então repete «José...», e ele diz »até calha bem», e os carros vão passando, passando."


Pontuação: 6.5/10


Gonçalo Martins de Matos

quarta-feira, 6 de maio de 2020

"Na América, disse Jonathan", de Gonçalo M. Tavares

   A obra de Gonçalo M. Tavares é tida como uma das mais originais da literatura portuguesa contemporânea, e o seu autor como uma das mais singulares vozes da literatura europeia. Se no passado custou a atingir, hoje em dia é com prazer e gosto de descoberta que enceto na leitura dos peculiares escritos de Gonçalo M. Tavares.
   Na América, disse Jonathan, parte de uma premissa muito interessante e promissora, denominada pelo narrador como "Projecto Kafka", que consiste em transportar um retrato de Kafka em viagem pelos Estados Unidos da América. Em formato de pensamento-diário, ouvimos Jonathan, através do narrador, a partilhar as suas ideias, pensamentos e histórias enquanto passamos pelos mais diversos locais nos Estados Unidos, da Califórnia até Cape Canaveral, na Flórida, no período de tempo correspondente entre os dias 30 de junho e 21 de agosto de 2016. 
   Na generalidade da obra de Gonçalo M. Tavares, o narrador e o escritor confundem-se num narrador-filósofo, que enceta numa narração quase técnica e científica dos factos constituintes da história, mas carregada de todo o pensamento, inquietções, ideias e reflexões do mesmo sobre os próprios factos narrados ou, ocasionalmente, sobre questões exteriores ao próprio texto, à própria obra. O subtítulo da obra em análise qualifica-a como "Diário-Ficção", e é precisamente neste molde que todo o livro se desenvolve. As reflexões e indagações de Jonathan confundem-se com as do narrador-filósofo, que enceta na função de interpretar e complementar as ideias que lemos. Como nas obras anteriores que li do autor, as ideias e reflexões do narrador-filósofo são interessantíssimas e pertinentes, e as histórias de Jonathan extremamente criativas. O mais interessante (para além do próprio texto) desta obra é que vem acompanhada das efetivas imagens que o narrador-autor capturou ao longo da sua viagem do retrato de Kafka nas mais diversas localizações geográficas dos Estados Unidos. As imagens podem complementar ou não os pensamentos descritos em cada página, mas apresentam a viagem do retrato de Kafka, viagem essa paralela à viagem do narrador e de Jonathan. Este complemento entre a imagem e o texto, como em outras obras de outros autores que recorrem à mesma técnica, atribuem um nível diferente à obra, não sendo meramente um diário, não sendo somente um conjunto de reflexões. As viagens paralelas do narrador e de Jonathan e de Kafka foram, verdadeiramente, inspiradoras. É muito conhecida a história de como José Saramago vaticinou a Gonçalo M. Tavares o Prémio Nobel. Com uma obra tão peculiar e universal, pode ser que a previsão do Nobel português venha a concretizar-se. 
   Portanto, logicamente, fica a instigação a que leiam, não só este, como outros livros, de Gonçalo M. Tavares.

Citações:
"Projecto Kafka - levar a sua imagem em viagem. Como se fosse um companheiro rectangular (...).
 Acreditar numa magia contemporânea a interferir na relação entre imagem e presença. Como bem nos mostra a tecnologia recente: imagem é presença. Antigo e demasiado contemporâneo: alterar a paisagem pela presença fantasma de Kafka."
"Que sinal?
 Uma construção ser abençoada pelo padre mas também pelos cientistas, etc.
 Que sinal fará o cientista à frente da construção a inaugurar? Em vez da cruz de Cristo, o sinal mais? O sinal menos? Vezes? O pi? 
(...)
 Há quem olhe para o sinal da cruz feito pela mão no ar e o confunda com o acto de medir mentalmente a altura e a largura da construção."
"De alguma maneira, o que tem acontecido é isto: anuncia-se uma nova tecnologia como em tempos se anunciou a chegada de Cristo. Também resolve problemas. E fala-se sempre da rapidez e da eficácia.
"Pensar num Cristo, diz Jonathan, rápido e eficaz. Profetas que anunciam a salvação que aí vem e que a comparam com anteriores salvações anunciadas utilizando critérios técnicos: esta nova salvação é mais rápida e comete menos erros."


Pontuação: 8/10


Gonçalo Martins de Matos

segunda-feira, 4 de maio de 2020

"A Mulher que Correu Atrás do Vento", de João Tordo

   Nas publicações anteriores sobre a obra de João Tordo, preconizei uma mutação estilística que se notava no autor cada vez mais. Não li o livro anterior a este, mas neste consagra-se, enfim, a nova estética. 
   O romance começa precisamente por apresentar a história de Beatriz, estudante universitária em Lisboa, e de como, entre uma existência melancólica entre as aulas e o seu projeto de tradução de Ulisses, de James Joyce, e uma profunda inquietação que a assola desde a morte da sua mãe, esta acaba por conhecer e envolver-se com o autor de A História do Silêncio, Jaime Toledo, um homem introvertido e deprimido. Depois conhecemos Lisbeth, professora de piano na Baviera, e a sua frustração em não conseguir compor a sua obra, Das Auge des Zyklons, quando recebe um rapaz autista, Jost, como aluno, começando assim a sua fuga da Baviera e posterior expiação dos seus males. Por fim, conhecemos Lia, numa consulta terapêutica, a desnovelar o seu passado e a sua amargura com a sua mãe, a conhecida atriz Graça Boyard, por a ter abandonado à sua sorte quando era pequena, e a sua existência condicionada por esse momento crucial na sua vida. As vidas destas personagens, aparentemente separadas por um século, entrelaçam-se nas partes onde menos esperamos e é através dos passos melancólicos destas protagonistas que vamos, aos poucos, caminhando para o centro do ciclone, o espaço de calma lúgrube que aguarda todos por igual. 
   A voz inconfundível de João Tordo aliada a uma estética madura e perfeitamente dona de si são uma combinação poderosa. Este romance nunca se perde nas diversas encruzilhadas que abre, e o narrador guia-nos através da névoa que as povoa com uma mão firme mas delicada. O romance divide-se em oito partes, cada uma acrescentando dados novos às anteriores, todas conjugando-se para o final agridoce que encerra a narrativa. É um pormenor interessante, os ocasionais piscares de olho do autor a outros pedaços da sua obra. A estrutura do romance vai-se adaptando ao decorrer da narrativa, destacando-se o estilo textual dramático no sexto capítulo e a narração autodiegética no último capítulo. Como em obras anteriores, a inquietação do narrador é um sentimento dominante, desdobrando-se este nas personagens e nos lugares que povoam o romance. O talento simbolista do autor também é uma constante neste romance, sendo a inquietação, a melancolia e a solidão representadas por lugares como a herdade do Alentejo onde se refugia Lia, o "lugar perfeito" no meio dos bosques da Baviera ou o "centro dos ciclones", nome da peça de Lisbeth que melhor ilustra a solidão patente na história das protagonistas. Regressando aos capítulos referidos, estes podem ser considerados capítulos-chave de toda a obra, com os quais desbloqueamos a compreensão total dos eventos que nos são narrados. O estilo mutável e o monólogo final também podem ser uma reflexão diminuída da estrutura do Ulisses, de James Joyce, uma obra recorrente ao longo do texto, o que consiste numa outra compreensão a conferir ao romance no todo. Jost abandonado numa planície é o ponto de fuga do fresco que João Tordo nos oferece. É uma imagem recorrente e ilustrativa do turbilhão (ou antes, do ciclone) de emoções fortes e contraditórias que fervilha dentro das protagonistas. 
   É um grande romance de João Tordo e merece, sem dúvida, ser lido e apreciado. 

Citações:
"os rostos saudáveis dos miúdos, esquecidos de tudo, ignorantes do tempo, daquilo que o tempo nos dá e nos tira, do que o tempo cobra, de como ser humano é tão diferente de ser a humanidade, de como a humanidade por vezes nos salva de sermos humanos, porque ser humano pode dar cabo de nós, e da maneira como o tempo vai unindo as duas coisas. Às tantas, fartos de sermos humanos, passamos a ser humanidade, só humanidade, e por isso é lindo ver os velhinhos e as crianças dentro da piscina, porque somos nós também que estamos ali dentro."
"A alma de Beatriz vagueou suavemente debaixo da chuva que, após os primeiros minutos de borrasca, caía suavemente através do Universo, suavemente caindo, e de repente pensou que aquelas palavras não eram suas, e que a água no rosto e as roupas molhadas e o cabelo ensopado não tinham o mesmo poder encantatório das palavras de Joyce, tudo era miséria e desgraça."
"Caminhou pela herdade. O restolho abundava, a terra estava seca e grumenta. Passou ao lado de enormes rolos de feno, mais altos do que ela, cuja sombra a lua projetava à semelhança de naves espaciais despenhadas de galáxias distantes."


Pontuação: 9.7/10


Gonçalo Martins de Matos

quinta-feira, 9 de abril de 2020

"O filho de mil homens", de Valter Hugo Mãe

   O filho de mil homens é o primeiro romance de Valter Hugo Mãe após a sua "tetralogia das minúsculas", o que inaugurou o capítulo seguinte do estilo do autor. E nota-se bem a diferença de fôlego dos anteriores para este. 
   Crisóstomo, chegado aos 40 anos de idade, assume a tristeza de não ter um filho. Incompleto, metade de si mesmo, é com esse facto que ocupa os seus pensamentos. Crisóstomo é um pescador solitário que, num dos seus dias de trabalho, encontra um rapaz chamado Camilo, ao qual, após uma epifania e um abraço, pergunta se pode ser seu pai. Camilo responde que sim. É assim que é lançado o pretexto para que do encontro entre duas almas incompletas inaugure uma sucessão de encontros que criarão uma família não sanguínea, mas tão pura e humana como qualquer outra. As histórias de Crisóstomo e de Camilo cruzam-se com as de Isaura, Antonino, Matilde e Emília, que comporão a família inventada do pescador e do rapaz. Pelo meio outros personagens trarão um pouco das suas vidas para ir compondo as vidas uns dos outros, numa mútua influência que marca toda a experiência humana. As diferentes vidas que preenchem este romance entrelaçam-se de forma invulgar e única, por vezes agridocemente, mas sempre de uma humanidade subjacente, invisível superficialmente. É de interações humanas que esta história se compõe e é delas que se forma um final humano e sensível, não alheio ao que compõe a felicidade real de ser humano.
   Como foi dito, este romance é o primeiro de Valter Hugo Mãe após a tetralogia das minúsculas, e com ele veio um novo fôlego. A mudança de estilo é notável na forma como se liam os anteriores e como se lê este. A voz do autor permanece a mesma, carregada de sensibilidade e humanismo, mas o tom é diferente. Uma das diferenças mais notáveis é a sensibilidade e o positivismo que atravessam todos os factos narrados e a forma de os personagens os encararem, ao contrário da crueza presente nos anteriores romances. O otimismo que transborda de Crisóstomo, não só para os que o rodeiam, mas para a a própria narrativa, é sem dúvida uma diferença quase abismal de tom. Quanto ao tratamento poético que Valter Hugo Mãe emprega na sua escrita, não há muito mais a acrescentar ao que já foi dito antes, a sua voz é marcadamente lírica e luminosa, carregada de um sensível humanismo que nos toca e não nos deixa indiferentes. Outro aspeto deste romance é a inclusão de duas belíssimas ilustrações do autor, no início do livro. Quanto aos personagens que compõem este romance, o que têm em comum Crisóstomo, Camilo, Isaura, Antonino, Matilde e Emília? Todos são desajustados de uma sociedade hipócrita e mesquinha que tem dificuldades em aceitar o outro, para além de as suas experiências de vida serem marcadas pela dor e pela angústia. É Crisóstomo a luz que afastará essa escuridão da vida da sua família, e assim poderão todos viver felizes, nem que seja por breves momentos, aceitando-se a si mesmos. Crisóstomo é um personagem sensível e carregado de bondade e amor, que nos comove com o seu modo otimista e esperançoso de ver o mundo que o rodeia. Por este lado gostamos imenso de conhecer Crisóstomo e de o deixar contagiar-nos com a sua bondade. A forma como a sociedade tacanha oprime o potencial humano de cada um é soberbamente tratada neste romance. A anã (falecida mãe de Camilo) é empurrada para o seu lugar de coitada pelas suas vizinhas, demasiado cristãs para deixarem a pobre alma desenrascar-se sozinha, a Isaura é castigada e repreendida por não cumprir as expetativas que outros haviam construído para si, o Antonino é desde cedo reprimido por ser homossexual e, portanto, diferente do que um homem deve ser. É preciso Crisóstomo mostrar aos párias da sociedade que o melhor que podemos fazer é ser nós mesmos para que nos aceitemos tal como somos, e assim, o mundo tornar-se um lugar menos sombrio e solitário. É a mensagem positiva e otimista deste romance que nos comove e toca especialmente, particularmente na apologia que faz da auto-aceitação. Trata-se esta obra de uma pérola de humanismo, escasso cada vez mais numa sociedade construída por cruéis expetativas de terceiros e preconceitos tacanhos.
   Este luminoso romance não pode, portanto, deixar de ser lido. 

Citações:
"Via-se metade ao espelho porque se via sem mais ninguém, carregado de ausências e de silêncios como os precipícios ou poços fundos. Para dentro do homem era um sem fim, e pouco ou nada do que continha lhe servia de felicidade. Para dentro do homem o homem caía."
"O Antonino explicou-lhe que não queria ser mulher e que gostava de mulheres e que lhes prestava atenção. Disse que admirava a liberdade que tinham para a expressão da sensibilidade, achava que era como uma permissão para ter a alma à solta, autorizada a manifestar-se pela beleza ou pelo espanto de cada coisa. Estava autorizada à sensibilidade que fazia da vida uma travessia mais intensa."
"Aos quarenta anos, o Crisóstomo deitou-se sobre a areia e inventou que estava ligado a todas as pequenas e grandes coisas do mundo, como se lhes pertencesse por igual e cada pedaço de matéria fosse uma extensão longínqua de si. Ia do centro do seu peito aos pinheiros ao fundo, ia do centro do seu peito à rocha despontando no meio do mar, ia do centro do seu peito até ao telhado de cada casa."


Pontuação: 9/10


Gonçalo Martins de Matos

quinta-feira, 19 de março de 2020

"Orgulho e Preconceito", de Jane Austen

   Orgulho e Preconceito é uma das obras essenciais da literatura inglesa, sendo também uma das mais acarinhadas pelo público anglófono. E tal não se deve apenas às inúmeras adaptações cinematográficas, televisivas e teatrais deste romance, mas também, e principalmente, aos seus temas e às suas personagens. 
   O romance começa por nos apresentar um dos temas que o atravessam, que é o casamento e a sua importância na Inglaterra no início do século XIX. A protagonista da obra é Elizabeth Bennet, segunda de cinco filhas do casal Bennet. A principal preocupação da mãe de Elizabeth é casar bem pelo menos uma das suas filhas, uma vez que os Bennet não possuem nenhum filho herdeiro dos seus bens. Mr. e a Mrs. Bennet constituem um casal muito díspar em génio e filosofia, repercutindo-se tal no próprio génio e educação das suas filhas. Sendo tão fulcral para Mrs. Bennet o bom casamento das suas filhas, é natural que a chegada de novos vizinhos à pequena localidade de Merryton despolete a sua intenção de as apresentar imediatamente. É assim que os protagonistas desta obra se cruzam todos pela primeira vez, num baile social organizado pelo novo vizinho, Mr. Bingley. Desde o início que Bingley e Jane, a irmã mais velha de Elisabeth, se dão muito bem, facto que orgulha muito a sua mãe. Já Elizabeth não pôde deixar de considerar o amigo de Bingley, Mr. Darcy, um homem arrogante e orgulhoso, tão diferente da personalidade do primeiro. Estão assim lançadas as bases para uma sucessão de eventos que levam Elizabeth numa viagem sentimental tão vincada que deitam por terra todas as suas convicções e seguranças, demonstrando também alguma da mesquinhez e futilidade da sociedade inglesa do início do séc. XIX. Tudo se conjuga para que no final, esses orgulho e preconceito que dominam as normas sociais serão afastados por sentimentos mais profundos da alma humana, tudo terminando em bem, como se de um conto de fadas se tratasse. 
    O estilo de Jane Austen encaixa no período de transição para o realismo, uma vez que, apesar de a história constituir uma narrativa romântica, a autora introduz já vários dos motivos literários da estética realista. Nomeadamente, o narrador de Austen discorre em discurso indireto livre, narrando os acontecimentos na terceira pessoa mas sempre através dos olhos e das ideias de Elizabeth. Vamos aprendendo todos os factos que rodeiam os personagens e as situações à medida que a própria Elizabeth as descobre. A autora socorre-se igualmente da ironia para desmontar as farsas da sociedade inglesa do seu tempo, outra grande marca do estilo realista. Escreverei agora sobre o ponto mais forte deste romance e o porquê de, em minha opinião, ser uma obra ainda tão apreciada nos dias de hoje. As personagens de Austen não são meras criações escritas em papel e tinta, são seres mais do que tridimensionais, são seres vivos que respiram, sentem e sofrem. Jane Austen tem um enormíssimo talento para criar personagens vivas, e Elizabeth está entre as melhores personagens de ficção que alguma vez li, não pelas suas ações, mas porque vivi com ela as suas inquietações, as suas frustrações e as suas alegrias. Elizabeth Bennet está viva e respira, sorri e sofre como qualquer leitor que leia esta obra. E esse é um dos fatores que impulsiona este romance para junto dos grandes romances anglófonos. É também, conforme disse, por essa razão que ainda hoje esta obra é tão apreciada, não pelas inúmeras adaptações, mas pelas personagens reais, humanas e tangíveis que Austen nos apresenta. Sem dúvida esta é a pedra angular do romance, as personagens vivas, de carne e osso. As personagens-tipo não são tão desenvolvidas como as principais, mas lá se encontram a cumprir o seu papel, da mãe de Elizabeth até à comunidade mesquinha e coscuvilheira de Merryton, passando por Mrs. Catherine de Bourgh, uma personagem odiosa que representa a futilidade da aristocracia até a Mr. Collins, primo de Mr. Bennet e representante de uma burguesia tecnocrata e bajuladora dessa mesma nobreza decadente. Uma última referência deve ser feita a Mr. Darcy, que, tal como Elizabeth, cresce com o evoluir da história, contribuindo para esse realismo humano de Austen. 
   Trata-se este de um dos romances de leitura obrigatória da literatura mundial. 

Citações:
"É uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro na posse de uma bela fortuna necessita de uma esposa."
"Permita-me dizer-lhe, então, minha querida prima, que considero a sua recusa ao meu pedido destituída de qualquer fundamento e que, por conseguinte, não passa de uma mera formalidade. As razões que me levam a pensar assim são, em resumo, as seguintes: não me parece que a minha mão seja indigna de do seu acolhimento ou que as condições que eu lhe posso oferecer não sejam mais do que altamente desejáveis."
"Merryton em peso parecia esforçar-se por denegrir o homem que três meses antes fora quase como um anjo de bondade. Diziam que ele devia dinheiro a todos os comerciantes da localidade e que as suas aventuras, todas designadas por «seduções», se tinham estendido às famílias dos vários comerciantes. Todos eram unânimes em declarar que ele era o homem mais perverso do mundo e todos começaram a descobrir que sempre haviam desconfiado dele, apesar da sua aparência de distinção." 


Pontuação: 8.5/10


Gonçalo Martins de Matos

sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

"Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis

   Machado de Assis é considerado unanimemente como o maior escritor da literatura brasileira. A ele se deve a existência da Academia Brasileira de Letras e, no plano literário, a introdução da estética realista na literatura brasileira, devendo-se a ele uma grande inovação na literatura do Brasil derivada dessa nova estética. Memórias Póstumas de Brás Cubas integra-se na chamada "Trilogia Realista", dos quais fazem parte Dom Casmurro e Quincas Borba, trilogia essa considerada a magnum opus do autor brasileiro. Memórias Póstumas de Brás Cubas é também considerada como a maior obra de Machado de Assis. 
   Começando este romance pelo fim, ou seja, pelo óbito do autor, cedo percebemos que a história que se nos apresenta será peculiar. Brás Cubas começa as suas memórias póstumas pela descrição dos seus momentos finais e falecimento, fazendo depois a transição para o dia do seu nascimento, começando a partir daí a narração dos factos que compõem a sua vida. O narrador apresenta-nos o seu pai e a sua mãe, além de dois tios seus, figuras que marcaram a sua educação, que o próprio reconhece, agora que morreu, como tendo sido "viciosa, incompleta e, em partes, negativa". Adorado pelo seu pai, que tinha grandes projetos para o seu filho, o narrador "sofreu" de demasiada liberdade que, como consequência, o levou no caminho que seguiu pelo resto da vida. Acompanhamos a vida de Brás Cubas nas suas muitas dimensões através de episódios que o próprio nos revela, como a sua educação básica, os seus estudos em Coimbra, as suas desventuras académicas e amorosas e as suas ideias sobre o mundo e a sociedade que o rodeavam. Os vários personagens que povoam estes episódios todos têm a sua parte de influência no perfil do narrador, seja o seu grande amor, Virgília, o seu cunhado Cotrim, o marido de Virgília, Lobo Neves, ou o seu amigo de infância, Quincas Borba. Todos estes episódios se juntam na construção de uma vida no Brasil do século XIX, em tudo o que tem de trágico e irónico. 
   Machado de Assis é justamente considerado um dos génios da literatura lusófona, e mesmo mundial. Neste romance temos expostos diante de nós os motivos que o levam a ser considerado dessa forma pela crítica. O romance é dominado por um sentido humorístico tão apurado e por uma ironia tão refinada que nos arrancam sonoras gargalhadas a meio da leitura (pelo menos comigo assim foi). Notam-se em todas as suas páginas as características da estética realista, incluindo o mote romântico que guia a história narrada, que é em si utilizado para mais ainda ironizar as idiossincrasias da sociedade brasileira oitocentista. O humor e a ironia a que aludimos notam-se logo na dedicatória do "autor", quando redige "Ao verme/que/primeiro roeu as frias carnes/do meu cadáver/dedico/como saudosa lembrança/estas/memórias póstumas", assim colocada na dianteira do romance de forma a anunciar-nos qual o tom e o espírito da obra. Escusado será acrescentar que o brilhante uso do vernáculo pelo autor é também um elemento que contribuiu para o génio geral do romance. Passamos agora a um dos aspetos mais brilhantes de todo o romance: os seus capítulos. Com o impressionante número de 160 capítulos, estes são o que torna esta obra tão distinta e marcante na literatura lusófona. Tratam-se estes de capítulos curtos, que não ultrapassam as quatro páginas, redigidos tanto de forma a relatar factos da vida do narrador, quanto de forma a expor as suas reflexões e cogitações, quer quanto aos factos relatados, quer quanto a aspetos da vida em geral. A forma como estão estruturados estes capítulos é a expressão última da ironia e do humor que Machado de Assis emprega neste romance. Eles variam muito entre si, destacando aqui quatro que, na minha opinião, se distinguem dos demais. O primeiro é o Capítulo LV, que é composto em forma de texto dramático, mas em vez de possuir qualquer texto, é apenas composto pelos nomes dos dois protagonistas e por sinais gráficos ("........!" ou "................?...................!"), que compõem o "diálogo". O segundo é o Capítulo CII, que constitui uma pausa da narração para o leitor poder recuperar o fôlego. O terceiro é o Capítulo CXIX, que constitui um parêntesis do narrador para partilhar com o leitor algumas máximas que ele escrevera em certa altura da vida. Por fim, o Capítulo CXXXVI, cujo subtítulo é "INUTILIDADE", no qual se lê: "Mas, ou muito me engano, ou acabo de escrever um capítulo inútil.", que, confesso, me apanhou completamente desarmado e me arrancou uma valente gargalhada! Estes, entre outros igualmente divertidos e originais, compõem uma obra verdadeiramente peculiar no panorama literário mundial! As personagens tipo que rodeiam o narrador servem precisamente esse grande propósito de satirizar a sociedade brasileira do século XIX. 
   Resta referir que este romance, no seu estilo e na sua forma, está muito próximo do que viria a ser a literatura modernista no século seguinte, o que revela a componente genial da obra de Machado de Assis, um escritor verdadeiramente à frente do seu tempo. Uma leitura a não perder!

Citações:
"Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-se-me uma idéia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim, que é possível crer. (...) Súbito, deu um grande salto estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te."
"Mas é isso mesmo que nos faz senhores da terra, é esse poder de restaurar o passado, para tocar a instabilidade das nossas impressões e a vaidade dos nossos afetos. Deixa lá dizer Pascal que o homem é um caniço pensante. Não; é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes."
"Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas (...) porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem..." 


Pontuação 10/10


Gonçalo Martins de Matos

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

"As Intermitências da Morte", de José Saramago

   José Saramago é sem sombra de dúvida uma das figuras fulcrais da literatura portuguesa. Grande parte dos seus romances constituem uma experiência de pensamento, uma colocação a si próprio de um e se?. Este romance é uma dessas experiências, adiantando nós já que da sua premissa resultam diversas conclusões tão brilhantes quanto profundas. Um último pormenor quanto a esta edição em particular: as capas dos romances do autor publicados pela Porto Editora são escritas por diversas figuras conhecidas das artes e cultura portuguesas, pertencendo a caligrafia deste romance a Valter Hugo Mãe. 
   "No dia seguinte ninguém morreu." É assim que esta maravilhosa narrativa começa, preconizando desde a sua abertura a singular sequência de eventos que se passarão ao longo deste romance. Podemos fazer a divisão da narrativa em duas partes. Na primeira parte acompanhamos as inquietações, frustrações e reações sentidas pelos diferentes setores de uma sociedade que se apercebe que a morte deixou de cumprir a sua finalidade. Acompanhamos os diferentes intervenientes nestes insólitos acontecimentos, quer sejam os que sofrem com a falta da morte, quer sejam os que lucram com tal facto, desde as famílias que não sabem o que mais fazer com os seus não-mortos até às companhias de seguros, lares e agências funerárias que perderam as suas principais fontes de rendimento. Na segunda parte, já voltou a morte a cumprir o seu trabalho, mas com uma pequena diferença em relação ao passado, fulcral nesta nova sociedade. Tudo parece correr conforme, até ao dia em que um acontecimento inesperado leva a que a morte tenha de repensar todos os fundamentos que sempre considerou como certos, tudo indo desaguar a um apoteótico final carregado de lirismo. 
   Conforme foi dito, o romance pode ser dividido em duas partes: a primeira parte servindo como profunda análise às hipotéticas reações que uma sociedade teria se um insólito destes se verificasse; a segunda aterrando na componente romanesca, no sentido em que trata mais do desenvolvimento da restante história. Este romance é brilhante, deve ser desde já dito. Principalmente as reações que o autor teoriza que se verificariam caso algo assim sucedesse. A reflexão que é descrita na primeira parte do romance é tão sabiamente ponderada quanto verosímil. Olhando para o mundo que nos rodeia sabemos bem que, caso um dia deixasse de se morrer, a nossa sociedade teria atitudes quase exatamente iguais às que se verificam nesta obra. Esta reflexão povoa-se de personagens-tipo brilhantemente caricaturadas. A segunda parte acompanha uma nova sociedade em que a morte já voltou a cumprir o seu papel, mas de uma forma diferente que altera novamente todo o paradigma da vida e da morte. É nesta parte que o romance se individualiza, descendo do olhar geral para o particular e abandonando a reflexão para encetar na simples narração. As personagens principais desta parte já são mais humanizadas, sendo mais efetivos protagonistas que caricaturas. O violoncelista e o seu cão, para além da própria morte, constituirão a história principal desta parte, história essa que é ao mesmo tempo inerentemente poética e extraordinariamente composta. A estética que caracteriza a obra de José Saramago também se apresenta neste romance. O vernáculo, a inerente oralidade e a construção frásica de registo popular (entre tantos outros, o emprego da palavra "cousa") conferem a esta obra a tal oralidade do discurso tão brilhantemente praticada pelo autor. Também os parágrafos longos e o uso não convencional da ortografia marcam a sua presença neste romance, tudo indo de encontro à estética característica do romancista. Esta obra tem também um caráter altamente simbólico, sendo o romance povoado por diversos símbolos relativos à vida e à morte. Das cores à borboleta-caveira, passando pelo violoncelo e pelos elementos paisagísticos, como certas árvores ou certos estados do tempo, todos os símbolos caminham no sentido comum do romance de dar a conhecer algo que na natureza é tão inerentemente humano, isto é, a reflexão sobre a mortalidade e sobre a humanidade. Um último apontamento, não menos curioso, prende-se com o espaço físico do romance. A narrativa que nos é apresentada passa-se num país pequeno, habitado por dez milhões de pessoas, o que encaixa na descrição de Portugal, desviando-nos, no entanto, o autor dessa conclusão com a introdução de certos elementos, como o sistema político (monarquia constitucional) ou as fronteiras com outros países. Demarco este apontamento porque a sua intenção é claramente criticar certos aspetos da sociedade portuguesa sem, no entanto, o fazer expressamente, o que é demonstrativo da ironia saramaguiana que povoa os seus romances. 
   Cada vez mais me convenço que a leitura das obras de José Saramago é indispensável para o desenvolvimento, além do gosto estético, do pensamento crítico e da reflexão construtiva. Lendo este romance, não me engano ao fazer esta afirmação. É uma obra brilhante e acutilante, que merece ser lida e, quiçá, relida. 

Citações:
"Desativados, Sim, creio que a palavra é bastante clara, Sem dúvida, senhor ministro, apenas manifestei a minha surpresa, Não vejo de quê, é a única maneira que temos de não parecer que cedemos à chantagem desse bando de patifes, Ainda que em realidade tenhamos cedido, O importante é que não pareça, que mantenhamos a fachada, o que acontecer por trás dela já não será da nossa responsabilidade."
"e quando falo de diferença real estou a referir-me a algo que as palavras jamais poderão exprimir, relativo, absoluto, cheio, vazio, ser ainda, não ser já, que é isso, senhor diretor, porque as palavras, se o não sabe, movem-se muito, mudam de um dia para o outro, são instáveis, como sombras, sombras elas mesmas, que tanto estão como deixam de estar, bolas de sabão, conchas de que mal se sente a respiração, troncos cortados"
"A morte afagou as cordas do violoncelo, passou suavemente as pontas dos dedos pelas teclas do piano, mas só ela podia ter distinguido o som dos instrumentos, um longo e grave queixume primeiro, um breve gorjeio de pássaro depois, ambos inaudíveis para ouvidos humanos, mas claros e precisos para quem desde há tanto tempo tinha aprendido a interpretar o sentido dos suspiros."


Pontuação: 10/10


Gonçalo Martins de Matos