sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

"Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis

   Machado de Assis é considerado unanimemente como o maior escritor da literatura brasileira. A ele se deve a existência da Academia Brasileira de Letras e, no plano literário, a introdução da estética realista na literatura brasileira, devendo-se a ele uma grande inovação na literatura do Brasil derivada dessa nova estética. Memórias Póstumas de Brás Cubas integra-se na chamada "Trilogia Realista", dos quais fazem parte Dom Casmurro e Quincas Borba, trilogia essa considerada a magnum opus do autor brasileiro. Memórias Póstumas de Brás Cubas é também considerada como a maior obra de Machado de Assis. 
   Começando este romance pelo fim, ou seja, pelo óbito do autor, cedo percebemos que a história que se nos apresenta será peculiar. Brás Cubas começa as suas memórias póstumas pela descrição dos seus momentos finais e falecimento, fazendo depois a transição para o dia do seu nascimento, começando a partir daí a narração dos factos que compõem a sua vida. O narrador apresenta-nos o seu pai e a sua mãe, além de dois tios seus, figuras que marcaram a sua educação, que o próprio reconhece, agora que morreu, como tendo sido "viciosa, incompleta e, em partes, negativa". Adorado pelo seu pai, que tinha grandes projetos para o seu filho, o narrador "sofreu" de demasiada liberdade que, como consequência, o levou no caminho que seguiu pelo resto da vida. Acompanhamos a vida de Brás Cubas nas suas muitas dimensões através de episódios que o próprio nos revela, como a sua educação básica, os seus estudos em Coimbra, as suas desventuras académicas e amorosas e as suas ideias sobre o mundo e a sociedade que o rodeavam. Os vários personagens que povoam estes episódios todos têm a sua parte de influência no perfil do narrador, seja o seu grande amor, Virgília, o seu cunhado Cotrim, o marido de Virgília, Lobo Neves, ou o seu amigo de infância, Quincas Borba. Todos estes episódios se juntam na construção de uma vida no Brasil do século XIX, em tudo o que tem de trágico e irónico. 
   Machado de Assis é justamente considerado um dos génios da literatura lusófona, e mesmo mundial. Neste romance temos expostos diante de nós os motivos que o levam a ser considerado dessa forma pela crítica. O romance é dominado por um sentido humorístico tão apurado e por uma ironia tão refinada que nos arrancam sonoras gargalhadas a meio da leitura (pelo menos comigo assim foi). Notam-se em todas as suas páginas as características da estética realista, incluindo o mote romântico que guia a história narrada, que é em si utilizado para mais ainda ironizar as idiossincrasias da sociedade brasileira oitocentista. O humor e a ironia a que aludimos notam-se logo na dedicatória do "autor", quando redige "Ao verme/que/primeiro roeu as frias carnes/do meu cadáver/dedico/como saudosa lembrança/estas/memórias póstumas", assim colocada na dianteira do romance de forma a anunciar-nos qual o tom e o espírito da obra. Escusado será acrescentar que o brilhante uso do vernáculo pelo autor é também um elemento que contribuiu para o génio geral do romance. Passamos agora a um dos aspetos mais brilhantes de todo o romance: os seus capítulos. Com o impressionante número de 160 capítulos, estes são o que torna esta obra tão distinta e marcante na literatura lusófona. Tratam-se estes de capítulos curtos, que não ultrapassam as quatro páginas, redigidos tanto de forma a relatar factos da vida do narrador, quanto de forma a expor as suas reflexões e cogitações, quer quanto aos factos relatados, quer quanto a aspetos da vida em geral. A forma como estão estruturados estes capítulos é a expressão última da ironia e do humor que Machado de Assis emprega neste romance. Eles variam muito entre si, destacando aqui quatro que, na minha opinião, se distinguem dos demais. O primeiro é o Capítulo LV, que é composto em forma de texto dramático, mas em vez de possuir qualquer texto, é apenas composto pelos nomes dos dois protagonistas e por sinais gráficos ("........!" ou "................?...................!"), que compõem o "diálogo". O segundo é o Capítulo CII, que constitui uma pausa da narração para o leitor poder recuperar o fôlego. O terceiro é o Capítulo CXIX, que constitui um parêntesis do narrador para partilhar com o leitor algumas máximas que ele escrevera em certa altura da vida. Por fim, o Capítulo CXXXVI, cujo subtítulo é "INUTILIDADE", no qual se lê: "Mas, ou muito me engano, ou acabo de escrever um capítulo inútil.", que, confesso, me apanhou completamente desarmado e me arrancou uma valente gargalhada! Estes, entre outros igualmente divertidos e originais, compõem uma obra verdadeiramente peculiar no panorama literário mundial! As personagens tipo que rodeiam o narrador servem precisamente esse grande propósito de satirizar a sociedade brasileira do século XIX. 
   Resta referir que este romance, no seu estilo e na sua forma, está muito próximo do que viria a ser a literatura modernista no século seguinte, o que revela a componente genial da obra de Machado de Assis, um escritor verdadeiramente à frente do seu tempo. Uma leitura a não perder!

Citações:
"Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-se-me uma idéia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim, que é possível crer. (...) Súbito, deu um grande salto estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te."
"Mas é isso mesmo que nos faz senhores da terra, é esse poder de restaurar o passado, para tocar a instabilidade das nossas impressões e a vaidade dos nossos afetos. Deixa lá dizer Pascal que o homem é um caniço pensante. Não; é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes."
"Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho que fazer; e, realmente, expedir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade. Mas (...) porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem..." 


Pontuação 10/10


Gonçalo Martins de Matos

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