sexta-feira, 27 de agosto de 2021

"O Cavaleiro Inexistente", de Italo Calvino

   Italo Calvino é considerado como um dos maiores escritores italianos do século XX. É particularmente conhecido por As Cidades Invisíveis e pela trilogia Os Nossos Antepassados, da qual faz parte este O Cavaleiro Inexistente
   Nos tempos da reconquista cristã, no exército de Carlos Magno combate Agilulfo das Guildivernas e outras, um cavaleiro que possui uma particularidade que o distingue dos demais: a de não existir. Tratando-se de uma armadura vazia, livre de apegos terrenos como o sono ou a fome, Agilulfo passa os seus dias no exército tratando da organização e supervisão de todos os pequenos pormenores que movimentam o exército quando não se encontra em combate. Certo dia chega ao exército de Carlos Magno Rambaldo de Rossilhão, que deseja vingar a morte do seu pai às mãos de Isoarre, emir do exército sarraceno. O jovem Rambaldo depressa se apercebe que a vida e a glória do exército não é nada como tinha imaginado, inclusivamente quando se bate pela primeira vez com o exército inimigo e perde a oportunidade de vingar o seu pai. Então vira-se para Agilulfo, em quem procura aconselhamento. Após uma longa procissão do exército de Carlos Magno pelas terras dos Francos, certa noite, um jovem recém-chegado ao exército, Torrismundo, declara que Agilulfo não é merecedor dos seus títulos e honrarias, uma vez que a virgem que ele declara ter salvo não seria virgem aquando do feito. Então, Agilulfo, juntamente com o seu escudeiro Gurdulú, parte em viagem em busca da virgem Sofrónia, que havia salvo anos antes. Rambaldo parte também, em perseguição de Bradamante, cavaleira destemida do exército imperial, que por sua vez parte enamorada da armadura vazia. Também Torrismundo parte em busca do seu passado, de forma a esclarecer também um pouco as suas origens. Toda a história é narrada por uma freira, que no final confessa também o seu papel na narrativa que redige. 
   O estilo em que se enquadra o romance, como grande parte da obra do autor, é o modernismo, estando neste presentes vários elementos que nos evidenciam essa pertença. Desde logo, apesar de ser narrada uma história tipicamente cavaleiresca, os problemas e as questões suscitadas pelos personagens e pelas situações remetem para problemas bem mais modernos que os existentes na época medieval. A fantasia e a paródia conjugam-se de uma forma inesperada, mas simbiótica, sendo que uma serve a outra na transmissão da mensagem. Os elementos paródicos adicionam uma camada peculiar a toda a obra, podendo ser citados como exemplos os burocratas da Superintendência dos Duelos, da Vingança e dos Atentados à Honra do exército imperial, que tentam atribuir a Rambaldo o equivalente a uma vingança de familiar na organização da batalha, ou o naufrágio de Agilulfo, que resulta em simplesmente este afundar e fazer o resto do caminho a pé, debaixo de água. Agilulfo e Gurdulú constituem uma referência a Dom Quixote e Sancho Pança que adensa o caráter paródico do romance. Outra característica modernista presente no romance é a desconstrução dos conceitos e das instituições tidas como seguras, mas que analisadas pormenorizadamente revelam na verdade cascas vazias de conteúdo ou sentido. Tal é exemplarmente simbolizado pelas sucessivas desilusões de Rambaldo com o mundo, a cavalaria, a guerra e a paixão amorosa. 
   Trata-se de uma leitura muito curiosa e ligeira sem perder no conteúdo. 
 
Citações:
 
"A noite calma era percorrida pelo voo ligeiro de pequenas sombras informes, de asas silenciosas, que se moviam sem direcção definida: os morcegos. O seu mísero corpo incerto, entre o rato e a ave, era, pelo menos, qualquer coisa de tangível e segura, qualquer coisa que podia andar pelo ar de boca aberta engolindo mosquitos, enquanto Agilulfo, com a sua armadura, era atravessado, a cada lufada de vento, pelo voo dos mosquitos e pelos raios da Lua."
"A cavalaria e uma bela coisa, sabe-se, mas os cavaleiros são uma cambada de estúpidos, habituados a cumprir altos feitos, mas por atacado, e quando isso resulta tanto melhor. Na medida do possível procuram adaptar-se a estas regras sacrossantas, que tinham jurado seguir, e como são bem codificadas poupam-lhes o trabalho de pensar."
"Talvez não tivesse sido mal escolhida a minha penitência, pela madre abadessa: por momentos descubro que a pena começa a deslizar sobre a folha como se ela própria tivesse movimento e eu fosse a correr atrás dela. É para a verdade que corremos, a pena e eu, esta verdade que espero venha sempre ao meu encontro, do fundo de uma página branca, e que só poderei alcançar quando, a golpes de pena, conseguir repelir toda a amargura, esta insatisfação, este tédio que estou a expiar, fechada aqui dentro."
 
 
Pontuação: 8/10
 
 
Gonçalo Martins de Matos

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

"Natureza Morta", de Paulo José Miranda

    Paulo José Miranda foi o primeiro autor galardoado com o Prémio Literário José Saramago, em 1999, pelo que as expetativas para este Natureza Morta, a obra premiada, estiveram elevadas. E é com gosto que posso afirmar que não saíram goradas. 
   No ano de 1816, João Domingos Bomtempo, músico e compositor clássico português do século XIX, regressa a Portugal, de visita ao seu tio Manuel, frade do Mosteiro de Santa Maria do Bouro, após conhecer algum sucesso com a publicação, em Londres, de três Sonatas da sua autoria. O país a que Bomtempo regressa encontra-se numa ebulição derivada da subjugação portuguesa à regência inglesa encabeçada por Beresford. Em Lisboa, depois de regressar do Norte com a notícia da morte do seu tio, Domingos Bomtempo remete-se a reflexões profundas sobre a arte, a criação, a morte e o país, enquanto no seu âmago fervilha um ímpeto criador. Certa manhã, começa a escrever o seu Requiem em Dó Menor, Op. 23, processo criativo sobre o qual se debruça este romance. À escrita da obra juntam-se sempre as reflexões do compositor sobre a música que escreve e sobre o mundo, exterior e, principalmente, interior.
   Natureza Morta é o segundo livro de um tríptico de Paulo José Miranda sobre o processo criativo, composto ainda por Um Prego no Coração e Vício. Neste tríptico, o autor explora a sua temática através de três figuras da arte portuguesa: Cesário Verde, Domingos Bomtempo e Antero de Quental. Neste romance, o momento do processo criativo é o da efervescência criativa, que é captado de forma muito interessante pelo autor. A acompanhar o desnovelar do clima social do Portugal pré-Liberal, e as inquietações do compositor com o assunto da morte e do tempo, acompanhamos a forma como tudo se repercute na criação do Requiem. A escrita de Paulo José Miranda tem um teor vincadamente poético, sendo também marcadamente meditativa. O romance é narrado na terceira pessoa com algumas intromissões da voz, autodiegética, do protagonista. Acompanhando a narrativa e as reflexões de Domingos Bomtempo está a ideia artística da natureza morta, em particular um quadro de Chardin, Cesta de pêssegos com nozes, groselhas e cerejas, que acaba por servir como um espelho da posição no mundo que Bomtempo sente ser a do artista, do criador, e do próprio Requiem que vem compondo. O tom do romance é simultaneamente melancólico e inconformado, numa mistura de revolta e aceitação que, unidas, geram então a obra artística. Retomando o teor poético do romance, a narrativa é dotada de uma robusta linguagem imagética, sendo-nos fornecidas impressões que nos marcam pela sua profundidade. 
   Trata-se aqui de um profundo e luminoso romance que merece, sem dúvida alguma, ser lido e apreciado. 
 
Citações:
"Havia um secreto desejo de vingança do mundo, de Deus, dos homens. Vingança do sofrimento de minha mãe e do meu próprio sofrimento, da minha perda, da memória repleta de gritos de dor. Tão pouco quis ser Deus, quis ser Bach. Ele e o meu tio foram o mais próximo que estive do Senhor. Sinto que gosto cada vez menos de mim mesmo. Este peso enorme de ser homem, esta tristeza de não poder ser somente música."
"E um Requiem é efectivamente o paradoxo máximo da miséria adocicada. É esta a grandeza e a pequenez do criador: assistir à subjugação do sofrimento ao prazer. O sofrimento não desaparece, pelo contrário, mantém-se presente, mas sob as ordens do prazer. Quando este por fim acaba, então, o sofrimento regressa, mas já humilhado. E um sofrimento humilhado é já uma culpa, não é sofrimento, pelo menos não é sofrimento límpido, será quanto muito sofrimento impuro."
"Pois só se pode descrever o que se passa no mundo ou na alma se o mundo ficar suspenso, se por momentos, os da criação, não existir nada mais senão tempo. O infinito a sufocar o finito. Nada mais importa senão a existência e um desprezo imenso por tudo. O homem desesperado de morte a vociferar de inveja contra o Eterno."
 
 
Pontuação: 9/10
 
 
Gonçalo Martins de Matos

sábado, 7 de agosto de 2021

"A um Deus Desconhecido", de John Steinbeck

   John Steinbeck é considerado um dos gigantes da literatura norte-americana, sendo reconhecido por empregar um estilo marcadamente alegórico nas suas obras. A um Deus Desconhecido, logo pelo nome, promete esse cariz alegórico típico do autor.
   Joseph Wayne, o terceiro dos quatro filhos de John Wayne, pede a bênção do seu pai para poder emigrar e estabelecer-se no Oeste. Este concede-lha, e é assim que Joseph se estabelece no Vale de Nuestra Señora. Após a morte de John Wayne, os restantes irmãos, acompanhados das respetivas esposas e prole, mudam-se para o terreno, construindo um rancho comunitário, com Joseph como patriarca. No coração do rancho dos Wayne encontra-se um grande e velho carvalho, que Joseph acredita encarnar o espírito do seu falecido pai. Por isso mesmo, Joseph vai-se dedicando à grande árvore, o que parece resultar na prosperidade do rancho. É em Nuestra Señora que Joseph conhece Elizabeth McGregor, com quem acabaria por casar, mudando-se esta também para o rancho. No entanto, Burton Wayne, muito religioso, sente-se assustado com as crenças que o seu irmão aparenta demonstrar, pelo que, depois de o avisar repetidamente para reencontrar o caminho de Deus, decide cortar a árvore, que resulta no fim da prosperidade da quinta e numa onda de doença, seca e morte que se abate sobre o rancho. 
   Como seria de esperar, a alegoria preenche as páginas deste romance. A crença, a fé, a religião e a esperança encontram nos personagens e nos locais deste romance as suas manifestações "terrenas". Todo o ambiente do romance é dotado de um misticismo e de um certo paganismo que nos levam a refletir sobre a simbiose que deveria existir entre o Homem e a Natureza e sobre como, confrontado com uma Grandeza superior a si, o ser humano apenas consegue recear, antes de aceitar. É também aberto espaço à reflexão sobre o papel da religião na crença humana e sobre os efeitos adversos da cegueira religiosa no ambiente humano. A comunhão que Thomas, outro irmão de Joseph, e este sentem com os animais e a natureza contrasta com o fervor religioso desestabilizador que Burton exprime. Em termos descritivos, o romance contém relatos completos das paisagens do Oeste norte-americano, repletas do tique pagão que povoa as páginas do livro. 
   
Citações:
"O outono aproximava-se enevoado, tornando o céu cinzento. Enormes nuvens, fofas como algodão, corriam todos os dias do oceano e detinham-se um bocado sobre os cumes das colinas, para depois se retirarem outra vez para o mar, como navios celestes de reconhecimento."
"Começaram a cantarolar baixinho, em notas fora de compasso. O tom elevou-se.Cada vez mais vozes seguiam o ritmo. Grupos inteiros balançavam-se na apinhada pista de dança. O zumbido das vozes cresceu tornando-se profundo e vibrante, em vez dos risos e piadas gritadas iniciais (...). Os dançarinos perdiam a sua identidade. Os rostos assumiam um aspeto enlevado, os ombros descaíam-lhes ligeiramente para a frente, cada pessoa se transformava numa parte de todo um corpo dançante e a alma desse corpo era o ritmo."
"Joseph começou a recordar-se de como galopara em certa noite escura, atirando com o chapéu e a chibata para longe, para preservar um bom momento entre muitos outros. E de como estavam verdes e espessos os arbustos, debaixo das árvores, como as ervas das colinas se curvavam ao peso das sementes que continham; como os outeiros se encontravam pesadamente revestidos, parecendo raposas. Agora eram glabras; uma embaixada dos desertos do sul procurava terras para a futura expansão do império dos desertos."


Pontuação: 6.5/10


Gonçalo Martins de Matos

sábado, 20 de março de 2021

"Princípio de Karenina", de Afonso Cruz

    Afonso Cruz é, sem sombra de dúvida, um grande efabulador e uma voz narrativa ímpar no panorama literário português contemporâneo. 
   Neste romance, um pai confessa, em estilo epistolar, a uma filha que condições nas suas vidas os impediram de se encontrar e como a sua vida sempre o forçou a trilhar esse caminho. Filho de um pai severo, amedrontado com o mundo exterior e com o estrangeiro, o narrador sempre cresceu num ambiente hostil à descoberta e à novidade, refém dos estritos parâmetros éticos com que o seu pai desenhava o mundo. Apesar de a mãe do narrador ser uma presença apaziguadora e mais leve, o peso do exemplo paterno tem muita influência no crescimento do narrador. Um peso que não chega a abandoná-lo para o resto da sua vida. Após a morte do seu pai, o narrador decide substitui-lo na sua visão fechada do mundo, adotando muitos dos seus  comportamentos prejudiciais. Sem se aperceber viver rodeado pela novidade e pelo estrangeiro, o narrador vive uma vida estremunhada de casado sem amor e de bloco inamovível. Isto até entrar na sua vida uma estrangeira, a mãe da sua filha, uma vietnamita refugiada em Portugal, fugida da guerra e do terror vividos nessa nação asiática na altura da Guerra Fria. Empurrado para fora da sua toca de conforto e de estreiteza moral, os muros que o narrador construíra são abalados e aos poucos irão desabar. No momento da sua confissão, no final do seu percurso, o narrador reflete sobre a importância da aceitação da imperfeição como componente essencial da perfeição do mundo. Redimido, enfim, prossegue para o seu final arrebatador, em paz com a sua vida e com a estranheza do mundo.
   Composto num estilo próximo do epistolar, os vários capítulos que compõem o romance  correspondem a breves confissões e reflexões na primeira pessoa sobre os acontecimentos passados que levariam até ao momento em que o narrador escrevia. Dividido em cinco partes, que correspondem sensivelmente aos cinco momentos marcantes da sua vida que o levaram a abrir-se para a complexidade do mundo. A imperfeição como parte integrante da perfeição é um dos temas centrais deste romance, materializado desde logo no facto de o narrador ser coxo, devido a uma deformação no seu pá. Contrariamente a muitos livros anteriores do autor, este não vem acompanhado de desenhos da sua autoria ou de utilizações plásticas da sua estrutura. Vem acompanhado de cinco fotografias, que surgem nas divisões entre as partes da narrativa, idênticas à que constitui a capa. O mais curioso é que, juntando todas as fotografias, desde a capa até à última, vemos surgir perante nós uma ideia de movimento, de sequência, o que é um pormenor muito interessante atendendo ao conteúdo da obra. As metáforas e as imagens invocados pelo narrador para enquadrar as suas descobertas e as suas crenças são solidamente aplicados, desde a sua própria deformidade até à medição (na sua infância) da distância por phobos (medos) e não por metros. A metatextualidade da invocação do princípio do romance Anna Karenina para se referir ao paradoxo da felicidade do mundo é também um aspeto muito cativante desta leitura. Também tem destaque a erudição do vernáculo empregue na obra. Um dos aspetos fortes da obra global de Afonso Cruz é sem dúvida o seu desarmante humanismo, que neste romance também marca forte presença: a importância do outro, as relações familiares e afetivas, a amizade são sempre temas fundamentais da sua escrita. 
   Mais uma sólida maravilha literária de um notável humanista

Citações: 
"As que eu mais gostava de trepar eram figueiras. O motivo para isso é muito simples: são as que dão os melhores frutos, aqueles que se diz que é preciso abrir em quatro como se fossem pétalas de uma flor (na verdade, os figos são literalmente flores que crescem para dentro), sorver o interior. É assim que se come um figo: encostar os nossos lábios à sua carne, devorar de uma vez o suco, a matéria, a ferida, era qualquer coisa assim que dizia o manual de instruções que li mais tarde, um poema de D. H. Lawrence."
"A felicidade é um estado especial que só pode existir se incluir no seu seio uma certa dose de infelicidade, por muito paradoxal que possa parecer. Sem desequilíbrio, nada se move. Um círculo está em constante desequilíbrio. É bom para fazer andar os carros. Os quadrados não têm essa possibilidade. Já estão bem assim, sentados à lareira, a sublinhar a sua hombridade, a sua estrutura sólida." 
"Chegamos à conclusão de que as pessoas são más e de que nada vale a pena. Ou talvez cheguemos à conclusão de que tudo vale a pena. Eu acho que as pessoas não são más nem boas, são como tudo o resto. As pessoas são como o vento, como a chuva, como o mar. Por vezes, o mar põe-nos um peixe no prato, outras, entra pela terra adentro e mata aos milhares." 
 
 
Pontuação: 9.5/10 
 
 
Gonçalo Martins de Matos

segunda-feira, 8 de março de 2021

"A Melhor Máquina Viva", de José Gardeazabal

   Foi com relativa solidez que José Gardeazabal se introduziu no mundo literário português, com as sua premiada obra poética história do século vinte (obra vencedora do Prémio INCM/Vasco Graça Moura 2015) e, em 2018, com o seu primeiro romance, Meio homem, metade baleia. A melhor máquina viva é o seu segundo romance e o primeiro da Trilogia dos Pares
    Anders Kopf é um aspirante a escritor que decide viver na pobreza durante um ano, de forma a poder escapar a um passado doloroso e, pelo caminho, melhorar a sua literatura. Eeva Wiseman é uma jovem e bela capitalista, herdeira do matadouro da sua família. Ambos são órfãos e ambos conhecem, nos seus passados, a dor. As linhas que unem os dois protagonistas são comuns e paralelas. Kopf recorda o seu passado, com toda a dor e todo o crime, enquanto sobrevive na pobreza do presente, partilhando roubos, injustiças e escassas refeições com a galeria de pobres que o acompanha. Por sua vez, Eeva recorda igualmente o seu passado, enquanto tenta lidar com a presença da dor de então na vida do presente. Pelo meio, pensa na modernidade e no que significa ser-se órfã, capitalista e mulher num mundo cada vez mais modernizado e global. Das peripécias de Kopf, das reflexões de Eeva e do desfiar das linhas do passado, quer de Kopf pelas suas palavras, quer de Eeva, pelas suas questões, resultará uma reflexão conjunta sobre o passado e o presente, sobre o nosso papel real na grande mecânica dos eventos e também sobre o significado da pobreza num século pós-moderno. 
   Expondo desde logo o aspeto menos positivo do romance, o ritmo e a cadência são, a certa altura, entediantes, com as sucessões de frases fragmentárias a não saberem resolver ou simplesmente atrapalhando-se umas às outras. Curiosamente, tal leva a que um dos aspetos fortes deste romance corresponda a um dos seus aspetos menos positivos. Ainda neste ponto, esta arritmia levou a que pairasse, por vezes, uma capa de pedantismo sobre a narrativa, o que também contribuiu negativamente para o romance no todo. Ultrapassadas estas questões, passemos aos aspetos positivos. A linguagem de José Gardeazabal é fragmentária e reflexiva, imperando o fluxo de consciência. Não é exageradamente descritivo nem desmesuradamente cru, equilibra-se num ponto periclitante entre a frieza científica e a emotividade literária (à semelhança de autores como Gonçalo M. Tavares - de quem Gardeazabal é irmão, curiosamente). A reflexividade poética que distingue a poesia de Gardeazabal nota-se na linguagem empregue na narração, nomeadamente no enfoque na influência do século XX nas vidas contemporâneas. Anders e Eeva são símbolos desta temática, um representando o passado e a sua influência constante no presenta, a outra representando a inevitabilidade do avanço do tempo sobre o passado. 
   Trata-se este de uma leitura pós-modernista interessante.
 
 Citações: 
"Pobreza: navio lento, emigração para um continente novo, por motivos materiais. Chora, Kopf!, pensava Kopf, mas as lágrimas não vinham. Pobreza: ânimo, sentimento, modo de vida, com o tempo uma técnica. Aqueles eram os pobres que ficam. As crises iam e vinham, financeiras, mas aqueles não eram pobres financeiros, eram os pobres bíblicos, os constantes. Pobres permanentes."
"Aproveitar cada minuto livre para escrever às escondidas. Porque dizemos cada minuto livre e não cada hora, cada segundo, quando falamos de escrever às escondidas? Kopf queria fazer ouvir a sua voz de autor. Finalizar um livro sobre toda a humanidade, curto, e outro sobre o interminável sofrimento humano, dois livros curtos. Aceitar a contaminação do real, ouvira isto."
"O tempo das fábricas passou, o tempo da moral laica, das mortandades. Passou a fé elétrica na energia, nos melhoramentos, a fé dos matadouros. A televisão, os livros infantis, coloridos, os fins cinematográficos, as viagens e os roubos intercontinentais, todos passaram. Os nossos movimentos resumem-se agora a uma festa violenta onde os melhores animais se aniquilam organizados por tribos, na floresta, ferozmente desanimados pelo desaparecimento dos antigos deuses."


Pontuação: 6.7/10


Gonçalo Martins de Matos

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

"os transparentes", de Ondjaki

    Abrir as portas do universo literário lusófono é entrar num universo multilicultural pleno de histórias, filosofias e modos de viver diferentes e variados, todos conectados pela maravilhosa força da nossa língua comum. Quanto mais descobrimos os autores de expressão lusófona, mais se abre a nossa visão e a nossa empatia. É com estas impressões em mente que tenho encetado na descoberta destes autores lusófonos. Em os transparentes mergulhamos nesse universo de infinitas diversidades que se ramificam do tronco da língua portuguesa. 
   Num prédio em Luanda habita um grupo de pessoas cujas histórias particulares se confundem com a sua vivência comum nos corredores do seu prédio. Na entrada deste prédio existe uma fonte de águas frescas, reparadoras e acolhedoras, que ninguém sabe muito bem de onde vêm, mas que já fazem parte das suas vidas. Habita neste prédio um leque muito colorido de personagens, de quem conhecemos as suas frustrações e ambições. Odonato, personagem que ocupa bastante espaço narrativo, é um indivíduo comum, mas que é acometido de uma estranha doença: está, aos poucos, a ficar transparente. Mas a sua maleita não lhe ocupa muito do seu espaço emocional, uma vez que todos os que o rodeiam merecem mais a sua atenção. Com Odonato vivem a sua mulher, Xilisbaba, a mãe desta, AvóKunjikise, e a sua filha Amarelinha. O filho de Odonato e de Xilisbaba, CienteDoGrã, não habita na mesma casa, uma vez que vive a sua vida cometendo furtos, modo de vida que os seus pais não aprovam. No prédio conhecemos ainda outros personagens como JoãoDevagar, Paizinho, Edú e a sua esposa Nelucha, MariaComForça, o CamaradaMudo, entre outros que vivem os seus quotidianos entrelaçados com o de Odonato e a sua família. De fora do prédio conhecemos ainda outros personagens, com as suas batalhas mundanas e os seus problemas comuns. Conhecemos o VendedorDeConchas e o seu amigo Cego, conhecemos PauloPausado, jornalista, e a sua mulher Clara, Raago e DavideAirosa, dois cientistas, um americano e o outro angolano, ou o Carteiro, empenhado em que o Governo lhe dê uma mota para que melhor possa cumprir a sua missão. Também conhecemos aqueles a quem a vida parece mais facilitada, os próprios membros do Governo, como o Assessor ou o Ministro, o grande empresário DomCristalino, e os dois fiscais DestaVez e DaOutra. Mais personagens ainda compõem esta colorida galeria de intervenientes da vida luandense, todos interligando-se a certo ponto na teia de relações que é tecida pela vida simultaneamente pacata e difícil em Luanda. 
    Neste romance não existem personagens principais. Ninguém tem mais relevância que o próximo, apenas ocupam mais ou menos espaço da narrativa. Ondjaki afirma diversas vezes que o personagem principal dos seus romances é Luanda, e neste nota-se bem essa característica. Seja qual for a vida que acompanhamos, Luanda é sempre o elemento comum, sempre presente, seja em que situação for. Existe uma batalha simbólica que percorre o romance, que é a frescura, a água, e o calor, o fogo. Por vezes esta batalha é evidente, como quando as pessoas se banham nas águas do prédio para combater o calor; outras vezes, esta batalha é subtil, como o nome do café BarDoNoé e a sua promessa de frescura contra o calor luandense. Um dos aspetos mais fascinantes deste romance é o seu uso da linguagem corrente angolana, a mistura entre o português e o kimbundu, um dialeto típico angolano. O romance faz-se acompanhar de um pequeno glossário no final, no qual se apresentam algumas das palavras em kimbundu para que possamos apreciar ainda melhor essa experiência de ouvir a Luanda de hoje. É também muito curiosa a forma como o autor utiliza e quebra os parágrafos. Ondjaki escreve os seus parágrafos todos em minúsculas, quebrando-os sem pontos finais, o que gera uma fluidez de escrita equiparável à fluidez do pensamento, sem que estejamos a falar exatamente da técnica de fluxo de consciência. Os únicos pontos finais são encontrados apenas no final de cada capítulo. Os capítulos em si estão divididos por uma ou duas páginas pintadas de preto, na qual estão escritas a letras brancas algumas frases ou pensamentos do autor ou dos personagens, que podem ou não relacionar-se com o que se desenvolveu até aí. Existe uma nota de bom humor no romance, quer na forma como os personagens se relacionam e vivem as suas vidas, quer na própria narração. A escrita do autor é tão humana como é criativa, as histórias mais inverosímeis que habitam as páginas deste romance são, igualmente, as mais verdadeiras. É uma escrita verdadeiramente poética na sua força emotiva e na sua amplitude semântica.
   Não resta mais do que recomendar vivamente a leitura deste romance. 
 
Citações:
"as línguas e as labaredas do inferno distendido numa caminhada visceral de animal cansado, redondo e resoluto, fugindo ao caçador na vontade renovada de ir mais longe, de queimar mais, de causar mais ardor e, exausto, buscar a queima de corpos em perda de ritmia humana, harmonia respirada, mãos que acariciavam cabelos e crânios alegres numa cidade onde, durante séculos, o amor tinha descoberto, entre brumas de brutalidade,
   um ou outro coração para habitar"
"comprar pão, sabia-se no prédio, podia querer dizer muita coisa, até porque, pão mesmo, desse de se fazer à noite com o forno e sal, havia em toda a parte, ir buscar pão era outra coisa, matéria de profunda filosofia, ocupação de teor ocioso e criativo, justificação tanto profissional quanto humana para erráticas movimentações urbanas"
"o que nalguns países é um lar, composto por uma determinada combinação de objetos e possibilidades, em outro pode não ser bem assim, uma vez que, humanamente, nos mais variados continentes, é a força do hábito que dita as circunstâncias que cada cidadão acata como aceitáveis, coletivamente insuportáveis ou democraticamente justas"
 
 
Pontuação: 9.3/10
 
 
Gonçalo Martins de Matos