domingo, 22 de maio de 2016

"O Evangelho segundo Jesus Cristo", de José Saramago

   Se antes tive dúvidas sobre a importância e genialidade de José Saramago como escritor, estas foram completamente desfeitas por esta obra fenomenal, fruto de uma imaginação fértil como só Saramago sabe produzir. A sua acutilante visão sobre tudo é o que torna os seus livros cativantes, independentemente das formas de escrita diferentes do habitual e do uso peculiar que Saramago faz das regras ortográficas, que só não compreende quem não quer. O Evangelho segundo Jesus Cristo é o livro que causou a polémica que levou Saramago a exilar-se em Lanzarote, uma vez que o livro foi censurado de uma lista de candidatos a um prémio literário europeu pelo então subsecretário da cultura. 
   Como contar uma história que já foi contada mil vezes. Contá-la mais uma vez. A história narrada nesta obra é uma história com que toda a gente está familiarizada. José e Maria decidem um dia fazer um filho, ao qual dão o nem de Jesus, e desde o início o recém-nascido parece protegido por alguma providência divina, uma vez que se salva por sorte da morte certa, ordenada por Herodes, morte essa de que não tiveram a sorte de escapar todos os recém-nascidos de Belém. José, atormentado por pesadelos, dá o seu melhor para manter a sua família, composta de Maria, Jesus e mais nove filhos, mas a sua vida chega a um fim abrupto e inesperado, ficando Maria sozinha a cuidar dos seus filhos. Isto passa-se até Jesus sair de casa e ir fazer de pastor do maior rebanho do mundo, como ajudante de uma personagem que nos é apresentada simplesmente como Pastor. Após uns anos dessa vida, Jesus encontra Deus no deserto, que lhe apresenta um contrato que não pode ser debatido nem recusado. Regressado a casa, Jesus conhece Maria Madalena em Magdala, a quem promete regressar. Sendo desacreditado em sua própria casa, Jesus abandona a sua casa definitivamente e regressa a Maria Madalena, com quem passa o resto da sua vida. Jesus parte então pelas terras judias operando milagres de pouca envergadura, até que por força das circunstâncias se apercebe da sua real capacidade e começa a ajudar os menos afortunados. Após um diálogo com Deus num lago, Jesus sabe qual é a sua missão, e trata de a cumprir, contrariado, estes eventos todos resultando no desfecho que já nos é familiar.
   O que há de inovador nesta obra de Saramago não é a história. A história de Jesus já foi mil vezes contada. Nem o modo peculiar de usar a ortografia, que em Saramago é uma constante. Não, o que torna este livro único é o enfoque que Saramago dá ao lado mais humano de Jesus, aos seus relacionamentos com os outros e com a sua família. Os milagres são de pouquíssima relevância nesta obra, completamente secundários. O que não é secundário é a crítica à religião que atravessa a obra do início ao fim. Saramago começa logo a arrasar com a descrição de uma imagem da crucificação de Cristo, dissecando todos os aspetos e pormenores da imagem. E pelo livro fora há essa crítica á religião, a Deus e a todos os aspetos mais negros da religião e da fé. Desde um inverter de papéis entre Deus e o Diabo, que segundo o livro, Deus é mau porque quer e o diabo é mau porque o fizeram assim. A maior crítica a Deus encontra-se no episódio do diálogo entre Jesus e Deus no lago. Deus revela a Jesus o que o futuro o espera e Jesus questiona todos os eventos, como as guerras intermináveis em nome da religião, sendo a resposta de Deus a tudo: porque tem de ser. 
   A crítica que Saramago fez nesta obra valeu-lhe muita má fama entre o público católico, desamor que Saramago sempre ignorou como sendo fruto de uma cultura conformista sem vontade de pensar. Independentemente das críticas que Saramago recebeu, é e será um dos maiores escritores da literatura portuguesa, e O Evangelho segundo Jesus Cristo uma dádiva que não é justamente apreciada. Independentemente de se ser religioso ou não, esta obra é uma das mais brilhantes e inspiradas da língua portuguesa. Mais não me resta que recomendar, mais, impor a leitura deste brilhantíssimo romance.

Citações:
"Jesus poderá dizer ao seu progenitor, Pai, não tens de levar contigo toda a culpa, e, no segredo do seu coração, quiçá ouse perguntar, Quando chegará, Senhor, o dia em que virás a nós para reconheceres os teus erros perante os homens."
"Este homem, que traz em si uma promessa de Deus, não tem outro sítio aonde ir se não a casa de uma prostituta. Não pode regressar ao rebanho, Vai-te, disse-lhe Pastor, nem tornar à sua própria casa, Não te cremos, disse-lhe a família, e agora os seus passos hesitam, tem medo de ir, tem medo de chegar, é como se estivesse novamente no meio do deserto"
"Serás a colher que eu mergulharei na humanidade para a retirar cheia dos homens que acreditarão no deus novo em que me vou tornar, Cheia de homens, para os devorares, Não precisa que eu o devore, quem a si mesmo se devorará."


Pontuação: 10/10


Inteligentes leituras,
Gonçalo M. Matos