sábado, 23 de julho de 2022

"Uma Viagem à Índia", de Gonçalo M. Tavares

   Uma Viagem à Índia é das obras de Gonçalo M. Tavares mais estudadas, elogiadas e lidas. O que a torna tão especial? Nas próximas linhas tentaremos responder a esta questão, partindo do pressuposto principal: estamos, efetivamente, perante uma obra profundamente brilhante de um autor absolutamente genial. 
   Em Uma Viagem à Índia, seguimos os passos de Bloom, o herói desta "epopeia", numa viagem que o próprio encetou até à Índia em busca de conhecimento e de paz. Bloom parte de Lisboa e pára em Londres, Paris, Viena e na Índia. Pelo caminho, trava conhecimento com amigos e inimigos, todos interessados na sua demanda, mas de formas diferentes. Bloom leva consigo apenas uma mala e um fardo pesado sobre os seus ombros, materializado pelo rádio avariado do seu pai. Esperam na Viagem de Bloom obstáculos, revelações, questões, angústias e certezas, e o final traz revelações tão inesperadas como certas. Esta é a descrição fundamental da viagem de Bloom, porque, como sabemos, o que releva em autores como Gonçalo M. Tavares é a reflexão impressa em todas as frases que descrevem a viagem quer física, quer metafísica de Bloom. 
   Uma Viagem à Índia é uma obra absolutamente arrebatadora. Trata-se de uma brilhante desconstrução pós-modernista dos conceitos de epopeia e de romance, e de todos os aspetos subjacentes. Nem sei muito bem por onde começar, que um simples texto num blogue não faz justiça à grandeza deste livro, que merece (e tem) estudos a si dedicados. Mas, por uma questão de arrumação, comecemos pela forma, passemos depois ao texto e ao metatexto. Uma Viagem à Índia estrutura-se como reflexo de Os Lusíadas, dividindo-se em dez Cantos, cada um composto por um diferente número de estrofes, todos narrando as peripécias do protagonista. Apesar de se encontrar redigido por estrofes, esta obra é um romance ao estilo tavariano, o que leva a outro dos aspetos mais originais da obra deste Autor, que é a desconstrução do género literário. Uma Viagem à Índia não é um romance sendo-o, e também não é uma epopeia sendo-o, para não falar do facto de ser transversalmente um ensaio, como qualquer outra obra do Autor. As estrofes não têm número fixo, e o número de versos que as compõem é igualmente variável. No final do livro, é-nos oferecido "um itinerário" apelidado de Melancolia contemporânea, que se trata de um diagrama composto por palavras e ideias que ocorrem em certas estrofes da obra, organizados por uma barra horizontal numérica e uma barra vertical alfabética. Este toque particular lembra um capítulo de Ulisses, de James Joyce (outra grande obra que serve de inspiração a Tavares), no qual o autor irlandês dispõe no início do capítulo as palavras e ideias que serão encontradas ao longo do mesmo. Aproveito este diagrama para fazer ponte com o conteúdo, uma vez que este itinerário acaba por ser forma e conteúdo mesclados. 
   As reflexões de Gonçalo M. Tavares são de uma genialidade sóbria, quase científica. Quase como se a metafísica fosse mais um ramo das ciências ditas objetivas. As imagens e as ideias que Tavares consegue convocar com o seu particular uso da língua portuguesa são maravilhosas, e densificam as palavras com novos significados potenciais que surgem das suas combinações. Como dissemos em cima, Uma Viagem à Índia opera uma desconstrução pós-modernista. Com este termo pretendemos dizer que Tavares continua os trabalhos de repensamento iniciados com as grandes obras modernistas. É bem patente a intertextualidade entre esta obra e Ulisses, nesse aspeto. Basta olhar para o protagonista de Uma Viagem à Índia, Bloom. Este é o apelido do "herói" do romance irlandês, Leopold Bloom, um protagonista mundano e neutro. O Bloom de Tavares pega nessa desconstrução do herói clássico e dá-lhe a roupagem do século XXI: Bloom é uma personagem complexa a nível moral, não sendo herói nem vilão, não possuindo mais bondade do que maldade mas integrando-se perfeitamente nos ambientes em que se movimenta. As reflexões de Tavares sobre o mundo da técnica e sobre a sociedade contemporâneas revestem-se de uma lucidez filosófica tão poderosa que dá ainda para olhar para este grande romance como um tratado filosófico, característica que também consegue descrever na perfeição toda a obra deste enorme autor português. No que toca aos ecos d'Os Lusíadas neste grande romance, nota-se uma distorção de alguns episódios da obra camoniana, como um Adamastor transversal (o fardo que Bloom carrega, ou o Tempo), ou a inclusão perfeitamente simétrica da Ilha dos Amores (no Canto IX, como na epopeia de Camões); o próprio mote, uma viagem à Índia, é um eco desse momento fundamental na alma portuguesa, que é a descoberta do caminho marítimo para a Índia, por Vasco da Gama. Saramago vaticinou-lhe o Nobel, em tempos, e Uma Viagem à Índia, creio, demonstra que tal previsão não é assim tão rebuscada como parece. Quem sabe um dia...
   Muito mais poderia ser dito desta obra maravilhosa e fundamental da literatura portuguesa (e europeia, como muito bem lembra Saramago). Uma obra que deve ser lida, estudada e admirada por todos!
 
Citações:

"Mas o Destino foi (ultimamente) aperfeiçoado.
Agora o barco e o avião chegam a chão seguro
por força da bússola mecânica, que normalmente
funciona, ao contrário do Destino
que, por ser invenção antiga,
já vai evidenciando cansaço
e até incompetência."
 
"Diga-se que cada língua poderá ser definida como
um modo especializado de interromper o silêncio. E sendo
o silêncio de Paris, de uma forma geral,
igual ao silêncio de Londres ou Viena,
já o modo como esse silêncio é interrompido varia brutalmente,
mesmo tendo em conta as pequenas distâncias 
europeias. A esta brutalidade, mais ou menos organizada 
                                                                         [em sintaxe,
ortografia e palavreado que interrompe de modo civilizado 
o oxigénio e o nevoeiro, a isso chamamos língua.
E em Paris o alfabeto é francês."
 
"Os homens e as suas indústrias poluem os rios,
o mar, o ar que já escurece por cima das cidades 
e a terra, as montanhas, a grande floresta.
Dos quatro elementos antigos - não sei se já reparou -,
o homem só é incapaz de poluir o fogo.
O fogo terá um mistério, certamente."
 
"O rio Ganges é a mais importante biblioteca 
da cidade e o mais importante arquivo.
Não há verdade fora do rio, nem há mentira de qualidade,
ficção ou mitologia, exterior às suas águas sujas. Mas as
águas não são sujas, realmente tal expressão
é um erro - corrige Anish. São águas complexas,
o que é diferente.
Aqui a água não é um elemento de visita ao mundo dos homens, 
são os homens que estão de visita
à água - e na Índia toda a gente o sabe." 


Pontuação: 10/10


Gonçalo Martins de Matos