quinta-feira, 18 de julho de 2019

"O paraíso segundo Lars D.", de João Tordo

   O paraíso segundo Lars D. é o segundo romance da "trilogia" dos lugares sem nome, série de três livros de João Tordo sem ligação sequencial entre eles. É-lhes atribuída a mudança de paradigma na escrita do autor, e neste segundo romance nota-se com mais força esse fator. Mas mais para a frente analisaremos isso melhor.
   Neste romance, conhecemos a narradora, uma mulher sexagenária, casada com Lars, um escritor da mesma idade. Este tem uma personalidade solitária e ensimesmada, e vive coberto de uma angústia profunda. Há largos anos que não publica nenhum livro. Na primeira parte do livro, conhecemos Lars pelos olhos da sua mulher, que vai discorrendo sobre episódios antigos ou recentes da sua vida conjugal e da tarefa nem sempre simples de partilhar a sua vida com Lars. Nesta primeira parte, sabemos de antemão que o escritor desapareceu, e que a narradora também tenta levar a sua vida com o peso dessa ausência. No seu prédio, no último andar, mora um jovem estudante de Teologia de seu nome Xavier, que se torna uma companhia para as inquietações da narradora. Na segunda parte, é-nos relatada, já por uma terceira pessoa omnisciente, a trama "principal" do romance: a madrugada de insónia que leva Lars a descobrir no seu carro uma jovem desmaiada, de seu nome Gloria, a levá-la para a sua e a cuidar dela. O escritor e a mulher decidem ajudar a rapariga, que diz ter sido assaltada e ter-se refugiado do frio no carro de Lars, levando-a o escritor até à estação de comboios. Só que, em vez de fazer isso, ambos seguem até uma zona de praia e ficam ambos a morar numa casa de verão. Na terceira parte, regressamos ao relato da narradora, mas desta vez apenas localizando-se temporalmente no presente sem Lars e nos dias com Xavier, em busca do consolo da inquietude que a ausência do escritor deixou na sua mulher. 
   Anteriormente, referi que estes abrem um novo capítulo na escrita do autor, colocando de seguida a dúvida se não estariam antes a encerrar o capítulo anterior. Bem, as dúvidas dissiparam-se neste segundo romance. Neste, a mudança nota-se com mais força. Os temas típicos da obra de João Tordo mantêm-se, mas o estilo de romancear transfigura-se. Assistimos, assim, aqui, à metamorfose estilística do autor e da sua obra, mais do que no romance anterior. O romance encontra-se dividido em três partes, sendo o narrador, na primeira e na terceira, autodiegético, e na segunda heterodiegético. Esta segunda parte do romance demarca-se, não só por essa diferença narrativa, mas também por nela ocorrer a ação "física" do romance. No resto do livro, a ação é mais psicológica, focada na memória e nos mundos interiores dos personagens (note-se que há passagem de tempo em todas elas, mas é diferente a perceção que temos dessa passagem). Na segunda parte, vemos o enredo principal ocorrer, a fuga de Lars com Gloria, e que vida levaram eles nessa fuga. É fascinante a reutilização que João Tordo faz das personagens cujos nomes já ouvimos em O luto de Elias Gro. Nomes como o de Lars, de Xavier, de Alma e de Cecilia, personagens fulcrais no romance anterior, também aparecem aqui, com o mesmo peso existencial, mas com as suas importâncias narrativas modificadas. O simbolismo que marca o romance anterior também se faz sentir neste. A ilha, o farol e a ideia de paraíso são marcas presentes e indispensáveis neste universo de lugares sem nome. Como nos anteriores romances do autor, há uma grande melancolia e angústia que se faz sentir nas páginas deste romance. Um último pormenor curioso é o romance inédito que Lars deixa antes de desaparecer, um manuscrito de seu nome O luto de Elias Gro. Este exemplo de metatextualidade proporciona uma delícia acrescentada à leitura do romance, na medida em que o autor nos guia através dos pensamentos e angústias de Lars para percebermos as angústias do narrador d' O luto. A perspetiva que nos é trazida neste romance altera-nos a perspetiva inicial que tivemos do romance anterior, o que constituiu um exercício fabuloso por parte de João Tordo. Mais uma pedra na pirâmide literária que este autor tem vindo a erguer. 
   Posto isto, trata-se de uma obra que deve merece, e bem, ser lida por todos aqueles que procurem uma leitura carregada de sentimento, mas simultaneamente sóbria e inovadora. 

Citações:
"Ultimamente, tenho reparado nisto. Que somos abraçados pelo pó; que entre o nosso corpo e as restantes coisas existe um espaço que julgamos vazio, mas que está cheio de uma matéria qualquer que é pó e mais do que pó, que é sombra e mais do que sombra."
"Tacteia o caminho até à sala e, uma vez aí, abre as janelas de par em par. A noite é um hino sobre o mar, a Lua enorme e imóvel no meio do céu, ainda uma nuvem pardacenta chorando sobre as águas. O brilho do céu provoca-lhe um horror intenso."
"(...) espreitou pelas ripas de madeira e pensou, nesse momento, que todos os sons aconteciam a todos os instantes mas viviam soterrados por outros ruídos, mais prementes, menos graciosos, que os escondiam: as marés ocultas pelas obras de um prédio, o grasnar de patos bebés pelas vozes de um grupo de italianos, o bocejar de um urso na floresta pelo motor de um avião. Tudo estava escondido por outra coisa qualquer e, debaixo de tudo, um avassalador silêncio."


Pontuação: 9/10


Gonçalo Martins de Matos

sexta-feira, 12 de julho de 2019

"Aprender a rezar na Era da Técnica", de Gonçalo M. Tavares

   Após um início meio conturbado com a obra e a escrita de Gonçalo M. Tavares, queria aqui desde já retificar o génio literário que se observa na sua obra. Se antes vacilei neste reconhecimento ao autor, nada mais foi que imaturidade literária. Reconheço-o agora. Gonçalo M. Tavares é, de facto, um dos escritores contemporâneos mais originais e brilhantes e merece, sem dúvida, todos os prémios e reconhecimentos que lhe são atribuídos. Este Aprender a rezar na Era da Técnica é o quarto e último volume da tetralogia O Reino, da qual fazem parte Um Homem: Klaus Klump, A Máquina de Joseph Walser e Jerusalém
   O protagonista desta história, Lenz Buchmann, teve uma educação cruel e militarista por parte do seu pai Frederich, o que o marcou e moldou na sua idade adulta. Lenz é um médico muito competente, um dos melhores profissionais do hospital, precisamente por causa da sua educação. Desprovido de sentimentos fúteis, trata-se de um "homem forte", objetivo e pragmático, para além de frio e calculista. Depois de nos ser dada a conhecer muita da ideologia pessoal de Lenz, entramos naquela que parece ser a história chave deste romance: o abandono do exercício da medicina por Lenz para se poder dedicar à política. Possuindo as características já referidas, a ascensão de Lenz no Partido do poder é rápida, eficaz e impiedosa, conseguindo ele chegar, no pouco tempo que esteve no Partido, ao lugar de vice-presidente. No intermédio de tudo isto, é-lhe atribuída uma secretária, de seu nome Julia Liegnitz, que o irá acompanhar o resto da narrativa. Todo este sucesso tem um final abrupto, dando-se um acontecimento definitivo que marca o fim de todo o seu sucesso. A posição de Lenz no mundo é abalada e este nunca mais a recupera.
   Como os anteriores, este romance trabalha a perspetiva pessoal dos seus personagens sobre o mundo. Neste caso, a perspetiva do protagonista, Lenz Buchmann. O subtítulo do romance, "Posição no mundo de Lenz Buchmann", demonstra isso mesmo. E que perspetiva! Através dos seus olhos, conhecemos as suas ideias sobre os fortes e os fracos, sobre a natureza e o homem, sobre a paz e a guerra, e sobre como estes conceitos andam sempre em conflito, na luta pela posição mais vantajosa no mundo. Como nos romances anteriores, estas ideias servem para traçar um retrato negro sobre o poder, a crueldade, a ambição e a loucura na alma humana. O romance encontra-se dividido em três partes, cujos nomes não referirei pois oferecem revelações fundamentais sobre a história. Na primeira parte, conhecemos o "homem forte" e as suas ideias, para além da sua ascensão no Partido; na segunda parte, vemos a alteração da posição no mundo de Lenz; a terceira parte consagra em definitivo esta alteração. Lenz é um homem cujas ideias e percurso nos levam, de início, a não torcer por ele, porque não conseguimos concordar com a sua visão do mundo. No entanto, curiosamente, não conseguimos de deixar de reconhecer a lógica por trás dos seus pensamentos. Aí reside um dos pontos fortes deste romance (e dos outros, no geral), a lógica aos serviço da loucura e da crueldade. O duelo força vs fraqueza percorre o romance de uma ponta a outra. Nos aspetos formais, este romance, como já escrevi para Jerusalém, possui uma escrita que parece objetiva e analítica, mas que está carregada de subjetividade e simbolismo quanto baste, que é fácil não repararmos numa primeira leitura de qualquer dos romances que compõem esta teralogia. Também a forma dos capítulos é fascinante e peculiar, sendo estes compostos por capítulos principais divididos em sub-capítulos, cada qual com uma frase que espelha a ideia ínsita a cada um deles. 
   Concluindo, portanto, trata-se esta de uma leitura fascinante e intrigante que não pode deixar de ser feita por todos quanto adorem a leitura de uma astuta análise das profundezas mais obscuras da alma humana. 

Citações:
"Todas as frases de simpatia podiam ser vistas, segundo um outro olhar, como frases de ataque. Ao deixar passar o outro à frente, um homem não estava a aceitar ser segundo mas sim a preparar o mapa do terreno para poder controlar visualmente o homem que por instantes se julgava em primeiro lugar. A vantagem de alguém estar à nossa frente, dissera uma vez o pai de Lenz, é estar de costas viradas para nós. Não importa o lugar onde estamos mas o campo de visão e a posição relativa." 
"Frederich apontava para o jardim e para o seu jardineiro, há muito entrado na decadência física, e dizia para os filhos que aquilo era bem o exemplo do que é a natureza nos tempos de paz: até um velho, analfabeto, com pouca força de braços, e incapaz de dizer uma única frase sensata, até um homem desses, um homem secundário, conseguia controlar aquele jardim, aquela outra máquina, aquela máquina verde."
"Todas as estratégias militares diziam o óbvio: apanhar o inimigo de costas, quando muito frente a frente se formos mais poderosos, e de cima, claro - quem está em cima tem vantagem, desde a construção dos castelos altos que todos o sabem - no entanto nenhuma referência era feita a um inimigo que viesse por baixo; o ataque, por baixo não era considerado."


Pontuação: 9.5/10


Gonçalo Martins de Matos

segunda-feira, 1 de julho de 2019

"Lunário", de Al Berto

   Al Berto é sem dúvida um dos nomes incontornáveis da poesia portuguesa do final do século XX. Como acontece com inúmeros outros poetas, a sua obra em prosa acaba por muitas vezes ser secundarizada face à sua obra poética. Esse pormenor costuma levar-me a indagar aquela. 
   Beno, o protagonista desta narrativa, recorda a vida errante e excessiva que o levou até ao momento em que começamos a história. Uma vida deambulatória, de excessos e noturna. Desde logo nos é dito que nos primeiros tempos, Beno não se apegava a nada, viajando de cidade em cidade e nunca ficando em nenhuma demasiado tempo. Uma noite, no café que frequentava, o Lura, é abordado por um homem que não lhe diz o seu nome, mas os dois começam a viver juntos, dando-lhe Beno o nome de Nému. E juntos viveram. Um dia são visitados por Alba, que sabemos ser amiga de ambos e mãe de um filho com Beno, para voltarem a sair à noite. Mais para frente conhecemos Kid e Zohía, ambos amigos de Beno, que no auge do romance serão peças fulcrais. Mais tarde ainda, conheceremos Alaíno, companheiro de Zohía. Todos estes personagens se movem nas suas vidas, errantes, sem saber com o que contar no dia seguinte, até que cada uma das histórias abertas se vai fechando até à conclusão final. 
   Antes de mais, este livro trata-se de um texto autobiográfico, desde logo se evidenciando com as semelhanças entre o nome do autor e o nome de Beno, passando pelo gosto pela escrita e pela pintura por que ambos são conhecidos. Sendo assim, todas as vidas e todas as histórias que encontramos nesta obra são reflexos do próprio autor, desdobrado em ambos, procurando alguma lógica na fragmentação diária da sua vida. Há, no caráter deambulatório da vida dos personagens, uma reflexão do próprio autor na sua própria deambulação. O livro é soberbamente escrito, denotando-se uma sensibilidade e uma inquietação fora do comum que, nunca é de mais repetir, sempre marcaram a vida de Al Berto, evidentes a quem conhecer a sua obra. A construção dos capítulos é fascinante. Cada capítulo é uma fase lunar (daí o nome do romance), sendo que no início e no fim temos o anoitecer e o amanhecer, o "Crepúsculo" e a "Umbria", culminando tudo num "Cântico" final. Tudo se desenvolve em crescendo até ao apogeu, à "Lua Cheia", decrescendo o ritmo e o passo a partir de aí. É toda a prosa, no fundo, um enorme poema. E que poema. É fascinante observar a desfragmentação do autor nas suas personas literárias, de modo a conseguir alguma fuga da inquietação que o assombra. Um outro aspeto, mais formal, que me fascinou neste livro foi a capa. Apesar do que diz o acertado ditado popular sobre as capas dos livros, a verdade é que esta capa faz parte da primeira atração que este livro provoca (esta edição da Assírio & Alvim, claro). Da capa deste livro fita-nos intensamente um jovem Al Berto, enigmático, convidando-nos a vir conhecê-lo. É uma capa muito bem pensada para o objetivo do livro (sendo até por isso mesmo que as edições desta chancela da Porto Editora colocam os seus poetas nas capas dos seus livros), uma complementaridade entre o conteúdo e a forma. E isso apenas contribuiu para o fascínio por esta obra.
   Resta portanto recomendar a leitura desta obra, especialmente se alguma inquietação incomodar o hipotético leitor; pode ser que assim encontre uma fuga para o que o assola.

Citações:
"Uma brisa noturna e carregada de sal desatou a soprar. O dia começava a morrer. A espuma das ondas tornara-se quase vermelha, a água ardia. Beno sentiu-se envolto numa espécie de torpor que o cegava. Olhava o mar, pressentia-o mais do que, na verdade, o via. E tudo o que via, afinal, não era senão uma mancha azulada estendendo-se a perder de vista, metalizada e ondulante, onde o crepúsculo derramava breves incêndios."
"Disseram um ao outro como se chamavam. Compraram cigarros e livros. Beberam café numa esplanada junto ao rio. Passearam-se até que o halo avermelhado do crepúsculo caiu sobre a cidade. A noite tornou-se densa, e os asfaltos refletiam a feérica luminosidade dos néons e dos semáforos."
" - Há tempos, aprisionei o tigre com olhos de rubi numa imagem de papel. Levei-o para dentro do meu sonho e passei noites inteiras a domá-lo, e agora ele anda à solta, muito manos, sedutor, por toda a casa. Já não sonho com ele, sonho com Beno. Mas o tigre só é verdadeiramente visível quando me dói alguma coisa e os espelhos me prendem o olhar. Pergunto-me sempre que estranho sonho me terá acordado..."


Pontuação: 8.9/10


Gonçalo Martins de Matos