sexta-feira, 8 de novembro de 2019

"O Beco da Liberdade", de Álvaro Laborinho Lúcio

   O nome de Álvaro Laborinho Lúcio é sobremaneira associado à área da qual fez carreira, tendo as suas publicações mais antigas sido dedicadas principalmente à área do direito. No entanto, desde 2014 que Laborinho Lúcio apresenta aos leitores os seus romances, sendo este o seu terceiro. 
   Neste romance, conhecemos uma aldeia portuguesa do Interior Norte, povoada por um leque de personagens singulares. O narrador é um escritor à procura de uma história para escrever, sendo assim que entra em contacto com Floriano Antunes, jornalista, que tinha uma história para partilhar. A história que o jornalista traz é a de Guilherme Augusto Marreiro Lessa, juiz jubilado, que há cinquenta anos atrás proferira uma sentença tão leve para o arguido que suscitara dúvidas quanto aos verdadeiros motivos que a teriam determinado. Na altura, fora Floriano quem acompanhara o caso, tendo sido o seu artigo cortado pela censura, pelo que achou que retomar o caso poderia trazer-lhe alguma conclusão quanto a esses tempos. Também porque o próprio Marreiro Lessa se encontrava, agora, ele mesmo no lugar de arguido, acusado da prática de um crime. É então que conhecemos, os factos de então, analisados pela distância que o tempo permite, e os de agora, tão inesperados como estranhamente conectados com os acontecimentos de há cinquenta anos atrás. Aos poucos, vamos ficando a conhecer as teias que se urdem em volta dos vários intervenientes de então, como Maria Cacilda, a viúva da primeira vítima e possuidora de estranhos poderes divinatórios, Joaquim Quitério, tolo da aldeia, Gervásio Ventura, subinspetor da PJ e encarregue do caso, Hildebrando Moreira de Castro, notário reformado, Narcisa, fiel governanta da família Marreiro Lessa, e Júlia, amante de Guilherme Augusto, entre outros personagens peculiares. Tudo conduzindo a revelações surpreendentes sobre os vários envolvidos e sobre o próprio Marreiro Lessa. 
   O romance é narrado a duas vozes, mas "coordenado" por uma delas. As vozes são as do escritor em busca de uma história e a de Floriano Antunes, aquando dos seus encontros com o juiz. Estas duas vozes distinguem-se pelas partes que compõem o romance. A primeira parte é narrada pelo escritor, que relata, na terceira pessoa, os factos ocorridos então, retirados dos pedaços de informação que o jornalista lhe colocou à disposição. A segunda parte é já o relato completo de Floriano Antunes sobre as conversas que manteve com o juiz nos dias anteriores ao seu julgamento. Ambas as partes se conjugam no sentido de ir revelando aos poucos os factos e as ficções que compõem os acontecimentos em causa. O uso do vernáculo pelo autor ganha a sua arte nas imagens que este consegue exprimir através das palavras, sejam elas pictóricas ou metafóricas. O tema fulcral do romance é a contradição que a justiça consegue abarcar, pondo em conflito a justiça formal, do direito, e a justiça material, da ética e da moral. Todo o texto pretende exprimir a enorme diferença que existe entre o ato de julgar e o ato de compreender, através, precisamente, da contradição atrás referida. E essa diferença é representada pelo juiz Marreiro Lessa jovem, no papel de julgador, e pelo mesmo, velho, agora no papel de julgado. As suas ideias e opiniões sobre o modo como a sociedade se organiza e sobre a realização da justiça mudam com o seu contacto com uma nova realidade, que lhe põe em evidência a diferença abismal que existe entre o que ele tinha como certo e o que de facto se verifica nas vidas das pessoas reais. As figuras da mulher de Marreiro Lessa, Maria da Graça, e da sua amante, Julinha, representam precisamente essa diferença entre o formal e o que é tido como certo e entre o material e o que se verifica na realidade. 
   Resta agora recomendar a leitura deste romance de indagação sobre a diferença de perspetivas humanas quanto à justiça, à moral e à própria liberdade.

Citações: 
"Aos pés da cama, nasciam duas poltronas revestidas a damasco rosa-velho replicando o dossel, e apontando a uma mesa de camilha de manto grosso, com braseira elétrica, acolitada por duas cadeiras rabo de bacalhau, com almofadinhas de atilho."
"Ali, atirado para o sofá, sorria, olhos postos na aranha afadigada a tecer a teia junto ao teto. Não lera Kafka e, talvez por isso, gostou da companhia. Afinal, pensava, bem pode haver um ponto onde as linhas do bem se encontrem com as do mal e fiem um véu que ora mostra, ora esconde, num jogo de sombras onde nem tudo é o que parece, nem tudo parece aquilo que é."
"A lei surgia-lhe como uma síntese, um traço de cada tempo, uma grosseira simplificação. De fora ficava toda a vida que nela não cabia. Talvez o direito na ilusão do absoluto tivesse a solução. Fora nisso que sempre acreditara. Mas toda a solução? À lei e ao direito poderia pedir a resposta para a tentativa de emigração clandestina, e de nenhuma dificuldade seria o percurso lógico até à condenação. Mas teriam a lei e o direito resposta para a tentativa de emigração clandestina daquele Manuel Santos, de quarenta anos, analfabeto, parecendo um velho?"


Pontuação: 8/10


Gonçalo Martins de Matos