quarta-feira, 29 de agosto de 2018

"A Boneca de Kokoschka", de Afonso Cruz

   Este é o terceiro livro de Afonso Cruz que leio e, apesar da sua inegável qualidade e novidade, faltou-lhe qualquer coisa que não o elevou ao nível de outros livros que li do autor. Não obstante, tratou-se de um prazer enorme de leitura como Afonso Cruz sabe bem proporcionar aos seus leitores. Compõe histórias como um pintor compõe uma tela, pincela, traça e adiciona camadas, e desse trabalho resulta um belo fresco que é difícil não admirar. 
   A história é dividida em três partes. Na primeira parte conhecemos aqueles que podem ser chamados os protagonistas principais da narrativa. São eles Isaac Dresner, um jovem rapaz, Bonifaz Vogel, dono de uma loja de pássaros, e Tsilia Kacev, aprendiz de pintora. Todos moram na cidade de Dresden aquando da Segunda Guerra Mundial, período em que a cidade alemã foi devastada pela queda de toneladas e toneladas de bombas. Esta parte foca-se na forma como os seus destinos aparentemente autónomos se cruzam. A segunda parte apresenta-nos Dresner, Tsilia e Vogel vivendo juntos em Paris, onde Dresner possui uma editora pequena chamada Eurídice! Eurídice! e uma livraria de seu nome Humilhados & Ofendidos, que apenas publica autores rejeitados. Um desses autores é Mathias Popa, autor de várias obras que não conheceram sucesso algum, que oferece a Dresner um último manuscrito para este publicar: A Boneca de Kokoschka. Por fim, a terceira parte apresenta-nos os protagonistas secundários, que são Miro Korda, um músico português, e Adele Varga, uma jovem que procura o amante perdido da sua avó moribunda. Todas as histórias se relacionam umas com as outras de forma a tecer um enredo de vidas que, numa aparente autonomia, dependem umas das outras. 
   Este é um livro sobre a importância do outro. As vidas e a forma como a diversidade de vidas é fulcral para que estas existam são uma constante ao longo da obra. O livro, como muitos de Afonso Cruz, é uma maravilha da plasticidade que uma obra literária pode ter, ou seja, é um excelente exemplo de como as diferentes formas de arte não são estanques. Para além do texto brilhantemente construído, o próprio livro é visualmente aliciante. Entre parágrafos mais curtos, fotografias e desenhos do próprio autor, as duas formas de arte presentes complementam-se. Ainda neste particular, o pormenor que mais me deleitou e que mais contribui para a referida plasticidade foi o facto de nos ser apresentado, no final da segunda parte, um livro dentro de um livro. O romance A Boneca de Kokoschka escrito por Mathias Popa é-nos dado a ler, incluído na narrativa. Neste, a numeração dos capítulos segue a sequência de Fibonacci (1, 1, 2, 3, 5, 8, 13...), o que foi um pormenor mesmo interessante que o autor acrescentou para enfatizar uma das mensagens principais que pretende transmitir. A construção dessas páginas que dão corpo ao livro de Popa assemelha-se mesmo a um livro, com uma página a servir de capa e uma de contracapa, com biografia do autor e resumo do livro incluídos. Outro pormenor interessante é o facto de alguns dos personagens (e até algumas das obras) referidos fazerem parte de um outro universo que Afonso Cruz constrói em paralelo, com a sua obra Enciclopédia da Estória Universal, o que cria uma sensação de realidade ao universo literário por si criado. 
   Trata-se de uma leitura interessante e emotiva sobre a importância do outro na construção de nós mesmos que merece indubitavelmente ser lida por todos os apreciadores de uma obra original e criativa. 

Citações:
"A sua relação com o mundo e com o tempo podia ser vivida de três maneiras: a) suava quando fazia calor, sem qualquer relação causal, mas apenas simultaneidade, ou b) suava porque fazia calor (que é, aliás, o sistema que costumamos usar para interpretar os fenómenos que acontecem à nossa volta, uma explicação causa/efeito), ou, ainda, c) porque suava, fazia calor(uma maneira de ver as coisas que Aristóteles não aprovaria)."
"Repare que o bigode do Hitler tinha muita piada no Charlot. E o bigode do Charlot era abominável num Hitler. Uma coisa igualzinha, se mudarmos o contexto, determina a nossa alegria ou a nossa tragédia. Duchamp é que tinha razão com aquilo do urinol: é o contexto que cria a arte e o drama e a desgraça e a felicidade."
"Todos dentro de nós para que nos seja fácil compreender aquelas diferenças e, eventualmente, encontrar uma paz no meio dessa tensão. As guerras têm mais dificuldade de existir quando as pessoas se compreendem umas às outras. As bombas caem menos, os prédios tendem a ficar de pé, os corpos não se despedaçam com a mesma frequência, os braços deixam de voar e é possível que as gaiolas deixem de existir, os campos de concentração passem a ser museus para a nossa memória."


Pontuação: 8.9/10


Gonçalo Martins de Matos

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

"Biografia involuntária dos amantes", de João Tordo

   Na carreira dos escritores, é muito frequente a mudança. Mudança de estilo, de escrita, de tema, de mensagem. Enquanto um escritor não encontra a sua voz, é frequente que experimente em busca dessa mesma voz. Ou pode acontecer também que se esgote o que uma certa voz tinha a dizer e seja necessário procurar novas vozes com novas mensagens a transmitir. Estou inclinado a encaixar nesta segunda categoria este romance de João Tordo, visto que neste este parece procurar, mais do que a expiação da sua inquietude (mais à frente será melhor analisado), uma nova voz. 
   A história começa com dois homens e um facto. O narrador, um professor universitário galego, e Saldaña Paris, poeta mexicano, atropelam um javali numa viajem que faziam entre Pontevedra e Compostela. Parte deste facto o narrador para nos introduzir o ambiente do romance. O narrador conta-nos, depois, como conheceu Saldaña Paris e como se criou entre eles uma improvável amizade. Algo no poeta mexicano marca o narrador: uma persistente melancolia. Após esse acidente numa estrada galega, Saldaña Paris pede ao narrador que leia um manuscrito deixado pela sua mulher, Teresa, morta de cancro. A leitura que o espera é a narração de uma vida inquieta e marcada pela dor. Após a leitura, o narrador não conta ao poeta o que leu, o que culmina num ataque de ansiedade que o deixa letárgico. Cabe ao narrador, enquanto o poeta se encontra nesse estado, deslindar o complexo passado de Teresa e conseguir alguma paz para Saldaña Paris e para si próprio. De revelação em revelação, o narrador vai compondo a razão da persistente melancolia de Saldaña Paris, em busca de redenção e alguma paz.
   O romance tem um tom obsessivo. No sentido em que há uma inquietação que remói a cabeça do narrador e este faz de tudo para encontrar algum consolo. As dúvidas e o desencanto assaltam-no e ele envereda numa procura que não sabe bem explicar porquê para amenizar a inquietação que o assola. A melancolia que embrenha o texto, atrevo-me a dizer, é a melancolia do próprio autor. Em muitas das suas intervenções, João Tordo fala do ato da escrita como a amenização de dúvidas e inquietações, como a procura por paz para a alma. E é bem patente neste romance essa inquietação, mais do que noutros do autor. A busca por uma resposta que acalme as dúvidas que o assaltam. Algo que também sobressai deste romance é a mudança que se anuncia no estilo do autor. Este foi o último romance que João Tordo publicou antes da sua famosa "Trilogia dos Lugares sem Nome", livros que são já uma fase diferente do escritor. Este romance tem muito desse desejo de mudança. É mais experimental, ensaia formas de escrever e pensar diferentes e varia entre estas ao longo da obra. Mais uma vez, João Tordo consegue transformar algum aspeto da sua vida (Saldaña Paris tem um correspondente na vida real) num romance de qualidade que nos prende até ao fim, sendo construído, como os anteriores, em crescendo, sendo desvelados aspetos nos momentos em que têm de o ser de forma a que tudo se encaixe a caminho do final. Final esse que deixa uma nota de esperança, após toda a angústia do resto da obra. Novamente, o autor revisita personagens de outros textos para criar a sensação de realidade de que falei anteriormente, dando a impressão que sim, tudo isto aconteceu, não é mentira. Um pormenor interessante é a transfiguração que o autor faz para um personagem seu, referido no texto, que será descoberto por quem o ler se estiver atento. Achei interessante o autor colocar-se dessa forma e da forma como é escrito, o que acaba por confirmar a minha suspeita da inquietação do autor. 
   Recomendo esta leitura. É um texto pesado e extremamente melancólico, mas é facilmente ultrapassável com a leitura das suas páginas e com a descoberta, pouco a pouco, de alguma luz nessa escuridão. 

Citações:
"Era a sua melancolia que me encantava, uma melancolia que ele não procurava abater; uma melancolia duradoura e persistente, que chegara para ficar. Essa condição insalubre que chama a si fantasmas e que abre brechas nas convicções mais empedernidas. (...) Saldaña Paris era verdadeiramente melancólico: um homem de outro tempo que vivia aprisionado neste"
"Nunca entendi esta espécie de maldade, Benxamín. Ou, pelo menos, não a entendia então. Que prazer poderiam ter eles em rir-se da incapacidade de alguém? Se vissem um cego esbarrar numa parede teriam a mesma reação? Ou um aleijado a cair das escadas?"
"Permanecia entre nós o grito de velhos terrores; a constatação de que, ainda que as respostas fossem surgindo, a melancolia que era agora minha me mostrava que o mundo era feito de uma matéria porosa que se desfazia assim que a tentávamos tocar; que tudo aquilo que julgávamos sólido não passava de gelo, e que esse gelo, à luz morna que sempre transportávamos quando procurávamos respostas (...), se derretia e se transformava em água; e que, por mais perfeita que fosse a concha que formávamos com as mãos, essa água era impossível de suster."


Pontuação: 8.3/10


Gonçalo Martins de Matos

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

"O Manual dos Inquisidores", de António Lobo Antunes

   Poucos romanceiam como António Lobo Antunes. Se com a leitura d' As Naus fiquei maravilhado, o fôlego com que este O Manual dos Inquisidores nos é narrado apanhou-me desprevenido. Mas não me surpreendeu, visto que, como antes disse, de Lobo Antunes podemos esperar uma visão muito particular e desafiadora. Aos poucos, com as leituras que vou fazendo de ambos, compreendo porque é depositado em Lobo Antunes e Saramago o domínio da arte do romance do final do século XX. 
   A história é simples. Seguimos os percursos de um pai e de um filho: João, o engenheiro, o filho; e Francisco, o ministro, o pai. Francisco é (ou foi) ministro de Salazar durante o Estado Novo, e o que vemos desenvolver-se diante nós é a ruína dessa figura e da sua família (e da sua quinta em Palmela), principalmente com a Revolução dos Cravos e posteriores acontecimentos. Desde a infância de João à velhice de Francisco seguimos os seus pensamentos e inquietações, acompanhados dos pensamentos, inquietações e cogitações de outros personagens que os rodeiam ou que de alguma forma intervieram na sua particular história, tais como Albertina (Titina), governanta de Francisco e João, Paula, irmã de João, Milá, amante de Francisco após a sua separação, entre outros. Todas estas vozes compõem o retrato de uma família que não mais é que um retrato de uma era na História do país (ou do final desta).
   Formalmente, o romance é composto por cinco relatos, os quais se dividem em três relatos e três comentários (tirando o último relato, que apenas tem dois comentários). Os relatos são narrados pela voz de um personagem em específico, pertencendo estas, por ordem, a João, a Titina, a Paula, a Milá e a Francisco, cada um relatando as suas preocupações e recordações. Os comentários são feitos pelas vozes dos que rodeiam estas personagens centrais, como a mulher de João, a cozinheira da quinta de Palmela, um funcionário de um prédio, a mãe de Milá, entre outros. O estilo de Lobo Antunes é labiríntico, é preciso ter atenção ao que se está a ler. A sua escrita segue o estilo de fluxo de consciência, o que reproduz o processo mental das personagens, acompanhado ocasionalmente de traços de oralidade, principalmente quando os personagens interrompem os seus pensamentos para dizer ao narrador para não escrever certa passagem ou para tomar certa ação. Acima de tudo, aqui se evidencia a característica marcante da obra posterior de Lobo Antunes, que é a quebra da frase para adensar o fluxo de consciência, o que leva a que a falta de conclusão, de pontos finais, nos leve a continuar a ler até encontrarmos essa conclusão. Pelo menos foi esse o efeito que surtiu em mim. O vernáculo é também ponto assente do estilo antuniano, acompanhado de assíndetos e analepses, que suportam a oralidade e fluxo de consciência da escrita, e, acima de tudo, pelas suas metáforas e imagens paradoxais, que são um deleite tão bom de leitura. Por sua vez, a quinta de Palmela representa Francisco e o seu elemento. Degrada-se e desaparece no final, assim como tudo o que Francisco defendeu e representou. Para mim, o pormenor que neste romance me mais marcou a nível de estrutura foi o final (sem entrar em revelações de enredo). Este romance termina em aberto, o último parágrafo da narração não tem um ponto final nem uma conclusão lógica, termina com um simples "que apesar de tudo eu", o que me ofereceu uma cereja no topo do bolo da leitura desta obra. 
   Esta leitura afigura-se como obrigatória para qualquer apreciador de um bom e apreciável relato em bom português e soberbamente escrito. 

Citações:
"um corredor com empregados que escreviam à máquina, convocatórias e avisos que proibiam fumar num painel de cortiça, pessoas à espera e ao fim do corredor uma prateleira de livros, um calendário de parede, dossiers no soalho, uma mesa de repartição pública preenchida por códigos e processos e o juiz entrincheirado de caneta em riste por detrás das leis como para se defender de nós, (...)"
"(...), o som das vozes calou-se, escutei passos a afastarem-se a caminho da estação de comboios lá em baixo ao pé da baía, e uma serenidade enorme como se fôssemos morrer sem morrer, como se deixássemos de respirar continuando vivos, (...)"
"(...), o ano passado vi um homem arrastar-se para o santuário de barriga no chão como uma osga e a mulher a protegê-lo da chuva com a sombrinha, o homem, exausto de ser cobra, sentava-se a descansar e ela, aborrecida, alfinetando-lhe as nádegas com as varetas
   - Com o raio da promessa que fizeste nem daqui a um mês lá chegamos"
"  - Se calhar o meu pai esqueceu-se madrinha
   e a minha madrinha a precisar de soro também
   - Cala-te
   ela a dizer
   - Cala-te
   e a baterem à porta como se o
   - Cala-te
   fosse uma senha, um código, um sinal, (...)"


Pontuação: 9.9/10


Gonçalo Martins de Matos