quarta-feira, 15 de agosto de 2018

"O Manual dos Inquisidores", de António Lobo Antunes

   Poucos romanceiam como António Lobo Antunes. Se com a leitura d' As Naus fiquei maravilhado, o fôlego com que este O Manual dos Inquisidores nos é narrado apanhou-me desprevenido. Mas não me surpreendeu, visto que, como antes disse, de Lobo Antunes podemos esperar uma visão muito particular e desafiadora. Aos poucos, com as leituras que vou fazendo de ambos, compreendo porque é depositado em Lobo Antunes e Saramago o domínio da arte do romance do final do século XX. 
   A história é simples. Seguimos os percursos de um pai e de um filho: João, o engenheiro, o filho; e Francisco, o ministro, o pai. Francisco é (ou foi) ministro de Salazar durante o Estado Novo, e o que vemos desenvolver-se diante nós é a ruína dessa figura e da sua família (e da sua quinta em Palmela), principalmente com a Revolução dos Cravos e posteriores acontecimentos. Desde a infância de João à velhice de Francisco seguimos os seus pensamentos e inquietações, acompanhados dos pensamentos, inquietações e cogitações de outros personagens que os rodeiam ou que de alguma forma intervieram na sua particular história, tais como Albertina (Titina), governanta de Francisco e João, Paula, irmã de João, Milá, amante de Francisco após a sua separação, entre outros. Todas estas vozes compõem o retrato de uma família que não mais é que um retrato de uma era na História do país (ou do final desta).
   Formalmente, o romance é composto por cinco relatos, os quais se dividem em três relatos e três comentários (tirando o último relato, que apenas tem dois comentários). Os relatos são narrados pela voz de um personagem em específico, pertencendo estas, por ordem, a João, a Titina, a Paula, a Milá e a Francisco, cada um relatando as suas preocupações e recordações. Os comentários são feitos pelas vozes dos que rodeiam estas personagens centrais, como a mulher de João, a cozinheira da quinta de Palmela, um funcionário de um prédio, a mãe de Milá, entre outros. O estilo de Lobo Antunes é labiríntico, é preciso ter atenção ao que se está a ler. A sua escrita segue o estilo de fluxo de consciência, o que reproduz o processo mental das personagens, acompanhado ocasionalmente de traços de oralidade, principalmente quando os personagens interrompem os seus pensamentos para dizer ao narrador para não escrever certa passagem ou para tomar certa ação. Acima de tudo, aqui se evidencia a característica marcante da obra posterior de Lobo Antunes, que é a quebra da frase para adensar o fluxo de consciência, o que leva a que a falta de conclusão, de pontos finais, nos leve a continuar a ler até encontrarmos essa conclusão. Pelo menos foi esse o efeito que surtiu em mim. O vernáculo é também ponto assente do estilo antuniano, acompanhado de assíndetos e analepses, que suportam a oralidade e fluxo de consciência da escrita, e, acima de tudo, pelas suas metáforas e imagens paradoxais, que são um deleite tão bom de leitura. Por sua vez, a quinta de Palmela representa Francisco e o seu elemento. Degrada-se e desaparece no final, assim como tudo o que Francisco defendeu e representou. Para mim, o pormenor que neste romance me mais marcou a nível de estrutura foi o final (sem entrar em revelações de enredo). Este romance termina em aberto, o último parágrafo da narração não tem um ponto final nem uma conclusão lógica, termina com um simples "que apesar de tudo eu", o que me ofereceu uma cereja no topo do bolo da leitura desta obra. 
   Esta leitura afigura-se como obrigatória para qualquer apreciador de um bom e apreciável relato em bom português e soberbamente escrito. 

Citações:
"um corredor com empregados que escreviam à máquina, convocatórias e avisos que proibiam fumar num painel de cortiça, pessoas à espera e ao fim do corredor uma prateleira de livros, um calendário de parede, dossiers no soalho, uma mesa de repartição pública preenchida por códigos e processos e o juiz entrincheirado de caneta em riste por detrás das leis como para se defender de nós, (...)"
"(...), o som das vozes calou-se, escutei passos a afastarem-se a caminho da estação de comboios lá em baixo ao pé da baía, e uma serenidade enorme como se fôssemos morrer sem morrer, como se deixássemos de respirar continuando vivos, (...)"
"(...), o ano passado vi um homem arrastar-se para o santuário de barriga no chão como uma osga e a mulher a protegê-lo da chuva com a sombrinha, o homem, exausto de ser cobra, sentava-se a descansar e ela, aborrecida, alfinetando-lhe as nádegas com as varetas
   - Com o raio da promessa que fizeste nem daqui a um mês lá chegamos"
"  - Se calhar o meu pai esqueceu-se madrinha
   e a minha madrinha a precisar de soro também
   - Cala-te
   ela a dizer
   - Cala-te
   e a baterem à porta como se o
   - Cala-te
   fosse uma senha, um código, um sinal, (...)"


Pontuação: 9.9/10


Gonçalo Martins de Matos

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