terça-feira, 7 de maio de 2024

"A Terceira Rosa", de Manuel Alegre

   "(Os anos passarão." é a frase que abre um romance belo, mas dilacerante, de uma das maiores vozes da poesia portuguesa.
   Xavier e Cláudia conhecem-se numa tarde de verão que marca Xavier para sempre. Nesse julho que Xavier não consegue esquecer, vivem os inícios do que prometia ser um grande romances, "escrito nas estrelas", diriam alguns amigos. Mas as vicissitudes da vida têm as suas próprias agendas, e Xavier e Cláudia acabam por se desencontrar para o resto das suas vidas. Xavier rememora a enorme paixão que cresceu dentro de si em simultâneo com a oposição ao regime do Estado Novo e o seu inevitável conflito entre modos de vida. Nos anos finais do regime, Xavier e Cláudia desencontram-se uma última vez, e, anos depois, na festa que foi o dia da Revolução dos Cravos, Xavier remói como as vidas se cruzam e descruzam inesperadamente, e como as certezas e as incertezas andam mais próximas do que parece. 
   A linguagem poética de Manuel Alegre é intensa e bela, e neste romance estão as suas duas facetas de sempre - um poeta de amor e um poeta de luta - emparelhadas usando ao máximo o que a voz deste poeta traz a ambas. O romance desenvolve-se em dois tempos e dois espaços distintos: em Alba, terra natal de Xavier, e nas ruminações do próprio Xavier. O que diferencia ambos é a mudança de ponto de vista do narrador, de heterodiegético para autodiegético, sempre assinalado com um entre-parêntesis, ou seja, quando a voz de Xavier se sobrepõe à narrativa em desenvolvimento, abre-se um parêntesis e o protagonista pode livremente remoer as suas cogitações, retomando a narrativa fechando-se o parêntesis aberto. O romance é fortemente autobiográfico, podendo classificar-se como ficção autobiográfica, pois as vidas de Xavier e de Manuel Alegre têm pontos em comum, como a luta anti-fascista, e talvez inclusivamente na paixão fatal por uma, ou várias numa, Cláudia. No romance encontram-se algumas metarreferências com o objetivo de demonstrarem que este romance é de facto uma construção, e não um relato, como por exemplo quando o narrador teoriza sobre Xavier ser o autor, ou o autor ser Xavier, como é Jano, deus romano com duas caras, ou Bernardim Ribeiro, o autor de Menina e Moça, famosamente pejado de projeções do seu autor nos respetivos personagens. Os capítulos que compõem o romance são curtos, não passando as três-quatro páginas, o que aproxima a forma do romance à composição poética. Esta edição integra a famosa coleção "Frente e Verso", pelo que em conjunto com o romance, esta edição contém o Livro do Português Errante, livro de poesia também de Manuel Alegre, o que gerou a experiência original de ir pontuando a leitura do romance com os belíssimos poemas do grande poeta. 

Citações:

"Mais tarde, Xavier dirá que, de certo modo, foi tocado pela graça. Alquimia, eis a explicação, se é que se pode explicar. Antes, talvez tivesse o dom de lhe querer sem saber que lhe queria. A partir de então, quando ela o olhava, tudo nele se subvertia, um anjo ou um demónio, talvez os dois ao mesmo tempo tocavam-no com seu fogo e com seu frio."

"É possível que sobre a paixão possam escrever-se muitos tratados. E contos, romances, éclogas, narrativas. Eu não seria capaz. Sei, como Bernardim ou Jano ou o autor, Xavier Furtado, eu próprio, o outro, que só então verdadeiramente se vive. E se desvive, acrescente-se. Porque é um viver de se morrer a cada instante. Xavier que o diga: foram anos e anos de plenitude e penitência. Num um só dia sem a incerteza e o ciúme. Não só o concreto, mas o abstracto, que é o pior de todos."

"As aves por vezes enlouquecem, costumava dizer Afonso Furtado. Quem sabe se não trago em mim uma gaivota endoidecida a voar para um sol que não existe? Às vezes penso se não serás apenas uma ilusão. Gostava de poder criar para ti a fala que não há, inventar outra caligrafia para deixar de ti não apenas um traço mas o retrato de onde saísses inteira e fulgurante para outro tempo, outra cidade, outra aventura." 


Pontuação: 8.5/10


Gonçalo Martins de Matos