segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Releitura de "o remorso de baltazar serapião", de valter hugo mãe

   Ainda bem que existem as segundas oportunidades. Elas flexibilizam a noção e a ideia que tínhamos sobre algo, proporcionadas pelo nosso crescimento individual. E, nesta série de releituras que atualmente faço, houve algo que me surpreendeu ainda mais que a anterior: o facto de se pensar uma coisa sobre um livro e descobrir-se que se pensa outra quase completamente contrária. O livro em causa é o romance o remorso de baltazar serapião. Mais uma vez verifico que a leitura de Lobo Antunes e de Saramago é essencial para se compreender a geração literária de valter hugo mãe (a partir de agora grafado em maiúsculas). Esta segunda leitura permitiu-me, acima de tudo, perceber o quanto estava enganado sobre este romance. E ainda bem. Portanto, vejamos o que mudou. 
   A história poderia ser colocada em duas óticas, dois pontos, um principal e um(s) secundário(s). No plano principal temos o amor que baltazar serapião, chamado de sarga por causa da vaca de estimação da sua família, por ermesinda, chegando a casar com ela. No plano secundário temos as várias venturas e desventuras de baltazar e a sua família. Do meio destes planos sai um grito de revolta, uma chamada de atenção e uma denúncia de toda a violência de que a mulher sempre foi vítima por parte de uma mentalidade machista monstruosa. A história pode também ser dividida em dois momentos: um inicial que relata o quotidiano difícil mas também pacato dos sargas; um segundo momento em que baltazar e o seu irmão aldegundes partem em viagem e, por diversas razões, encontram todo o tipo de obstáculos e maldições ao seu sucesso. Entre estes eventos existem momentos chave que ajudam a história a progredir, como a morte da mãe de baltazar e a sua infindável suspeita da relação adúltera entre dom afonso, fidalgo proprietário do terreno onde trabalham os sargas, e a sua mulher ermesinda. 
   A história, confesso, é violenta. É contada através dos olhos de baltazar serapião, um homem comum da Idade Média, terrivelmente machista e violento nos seus modos. O protagonista não cria relação com o leitor, é repulsivo, mas é escrito para o ser, uma vez que o autor pretende exmplificar uma forma atrasada de ver o mundo que sempre dominou a sociedade, principalmente na Idade Média. As suas afirmações sobre o papel da mulher são terrivelmente retrógradas. Mas são-no para nós, sociedade (não tão) evoluída do século XXI, uma vez que na altura, esta era a visão preponderante (havia sempre os que discordavam, mas a esses regressaremos). Foi este o fator, na minha primeira leitura, que me causou maior perturbação, foi a crueza com que o assunto é tratado (magistralmente) por Valter Hugo Mãe. É, no dizer de alguns leitores, terapia de choque, expressão com a qual não podia estar mais de acordo: é terapia de choque para nos fazer refletir e, penso eu, colocarmo-nos uma questão - estaremos assim tão evoluídos quanto isso? A obra é magnífica em muitos aspetos. Referirei dois deles que, para mim, são os mais marcantes. A escrita e o simbolismo. Este romance pertence à tetralogia das minúsculas, que correspondem aos quatro primeiros romances do autor, peculiares por se encontrarem redigidas completamente em minúsculas. O caráter oralizante da escrita, iniciado em Saramago, está bem presente neste romance, uma vez que tudo está redigido em minúsculas, sem qualquer distinção entre diálogos de personagens ou outras mudanças (facto de que me queixei no passado). É exatamente o que Saramago iniciou, mas levado ao seu próximo passo. Ainda neste caráter oralizante, o jogo de português que o autor faz nesta obra é sublime. Valter Hugo Mãe recria um português medieval, sem o transcrever de facto, aventurando-se pela linguagem sem qualquer receio mas também sem perder o domínio desta. Este aspeto é brilhante, um dos mais brilhantes jogos de linguagem que tive o prazer de ler. Começo a perceber Saramago quando afirmou que este livro é um tsunami, "não no sentido destrutivo, mas no da força". O segundo aspeto que merece nota é o simbolismo impresso nas páginas deste livro, também de forma brilhante. Desde a vaca de estimação até à mulher queimada, muitos aspetos, personagens e eventos simbolizam, quer a violência a que a mulher foi historicamente sujeita, quer o seu raivoso grito de revolta contra essa mesma violência. Sem mais alongamentos, que o texto já se faz longo, o maior simbolismo está na mulher queimada, uma bruxa deformada que amaldiçoa baltazar e aldegundes para sempre (curiosamente, a mulher queimada é a única mulher no romance que eleva a sua voz acima do domínio machista. Todas as outras são tristemente apáticas e submissas, pateticamente escravizadas pela sua condição). Para mim, esta personagem simboliza tanto a raiva como o remorso. A raiva da voz das mulheres que se levanta contra a injustiça a que é sujeita e a penitência da maldade dos homens, que termina em remorso. A pista está no título do romance. Como pode uma obra chamar-se o remorso de um homem quando na história não há lugar ao remorso? A hipótese de redenção aberta pelo remorso de baltazar é representada pela sarga, que os guia para longe do mal que os acomete. 
   Portanto, resta-me apenas recomendar vivamente a leitura desta obra magnífica. Mais que isso, impor a sua leitura. No dizer de Saramago, tem "de ser lido, porque traz muito de novo e fertilizará a literatura." E também pedir penitência por não ter visto logo o valor de uma obra tão gigantesca na literatura portuguesa e, atrevo-me a dizer, europeia.

Citações:
"e em surdina me gritou que saísse, como me mandou calar para pedidos últimos, lamentos ou refilos que não queria conhecer. como fui a tentar levitar pés de silêncio chão fora até à rua da casa, chorando minhas mágoas ao ruído nenhum da manhã."
"sabe, senhor paulo, as mães são como lugares de onde deus chega. lugares onde deus está e a partir dos quais pode chegar até nós. porque só através delas nos encontramos aqui. e, por isso, não há mãe alguma que não mereça o céu."
"minha bela ermesinda, como estás. pé torto, mão para o ar, braço colado ao peito, outra mão nenhuma, olho só buraco e cabeça descarecada às peladas, altos e baixos a faltar redondez de cabeça comum."


Pontuação: 9.2/10


Gonçalo Martins de Matos