sexta-feira, 10 de julho de 2020

"Autobiografia", de José Luís Peixoto

  A voz de José Luís Peixoto é uma das mais inconfundíveis e marcantes da literatura portuguesa contemporânea, e neste romance revela-se com a sua costumada força.
   Conhecemos José, protagonista desta narrativa, um jovem aspirante a escritor cuja vida em Lisboa é afogada pelas suas dívidas do jogo, o seu alcoolismo e a sua frustração com o seu inexistente segundo romance. São as inquietações deste personagem que nos irão acompanhar ao longo da narrativa. Em contraponto, acompanhamos um Saramago nos anos noventa, já auto-exilado em Lanzarote, a sua reputação já construída, ainda sem o Prémio Nobel. Entre as suas inquietações, é oferecida, pelo seu editor, a José a oportunidade de escrever uma ficção biográfica sobre Saramago. Entretanto, José conhece Lídia, mãe solteira cabo-verdiana, apaixonada por Saramago, que trabalha num mercado, até se despedir e ir trabalhar para a casa de Bartolomeu, amigo de José e reformado saudosista. Somos também apresentados a Fritz, amigo de José e dono de uma pequena livraria em Lisboa. As inquietações e os vícios de José vão sendo aos poucos atenuados pela sua convivência com Lídia, que o mantém preso à terra e lhe dá alento para que a sua preocupação seja a escrita da ficção biográfica, que se metamorfoseia na preocupação com a escrita do seu segundo romance. De Lídia conhecemos as suas preocupações quotidianas com o seu filho pequeno, mais para a frente sendo-nos apresentado aos poucos o seu passado e as suas saudades de casa. De Fritz, acompanhamos a sua vontade de fazer as pazes com o passado, com o reencontro com o seu pai. Em torno destes três pilares principais rodam outros personagens e outras preocupações, mas todas elas parecendo ter um aspeto em comum: José Saramago. Seguimos, então, estas histórias que se cruzam em direção a um final poético e esperançado, almejando ao melhor que o futuro poderá trazer. Até lá, ainda muitas surpresas e reviravoltas se escondem à espreita, aguardando que nelas caiamos, inadvertidos. 
   Este romance é, como outras obras de José Luís Peixoto, uma obra de grande fôlego literário. A premissa de tornar José Saramago em personagem de um romance é muito interessante, e o autor não desilude no tratamento que lhe dá. Mantém sempre o domínio da prosa, e as linhas que desfia tornam a juntar-se magistralmente no final, sem nunca se desviarem dos seus rumos. Como noutras obras do autor, a metaliteratura e a metalinguagem fazem a sua aparição quando necessárias, aqui não se imiscuindo demasiado na histórias, mas essenciais a um romance que interliga um José desconhecido com um Saramago conhecido. O título Autobiografia associado ao conteúdo do romance levam-nos para campos de metalinguagem que José Luís Peixoto se tornou especialista em explorar. Não deixa de ser curioso como consegue ser estabelecida uma ligação, direta e flagrante ou indireta e ténue, entre as vidas dos protagonistas e Saramago, uma ligação que, quando não é pessoal, sente-se como pessoal através do ato da leitura. Não posso, infelizmente, explorar mais o lado meta deste romance, com receio de que sejam feitas revelações indesejadas. Mas espero que, dito isto, tenha despertado o interesse. Além das personagens principais, temos uma galeria inusitada e curiosa de personagens. Muitos nomes e locais do romance são referências a nomes e locais dos romances do próprio Saramago, mais um exemplo da metaliteratura presente neste romance. Ainda sobre esta metaliteratura, a estrutura e a premissa so romance são uma homenagem ao Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago, uma vez que ambos transformam uma figura maior da nossa literatura em personagem de romance. Os laços familiares e o passado são muito relevantes ao longo de todo o romance. Quer os laços fortes como os laços estranhos. A ligação de José, Fritz e Saramago aos seus pais é um eco da conhecida orfandade paterna do autor, uma ligação agridoce, de amor filial e, ao mesmo tempo, de dúvida e angústia. Já a ligação do Saramago real aos seus avós é homenageada aqui na ligação de Lídia à sua avó, longe em Cabo Verde mas sempre presente. Um pormenor muito interessante neste romance é a inclusão de alguns capítulos que reproduzem as anotações de José no seu caderno sobre a evolução da ficção biográfica, que, como foi dito, se vai esbatendo na escrita do seu segundo romance. O fecho do romance é um reflexo simétrico do início do romance, e esse é ainda outro pormenor muito interessante na notável metalinguagem de Peixoto. 
   Recomenda-se a leitura deste romance.

Citações:
"Ao mesmo tempo, as personagens ainda mexiam no seu íntimo, revolteavam assustadas, incertas do futuro, faltava-lhes palavras, começavam a desfazer-se; também por isso, o escritor precisava de mais algum tempo a sós com elas, precisava de acudir a essa aflição; e agora?, e agora?, indagavam as personagens sem parança. Era necessário tempo para explicar-lhes que agora a sua vida começaria de facto."
"E, não se sabe de que memória ou invenção, de Saramago com trinta anos ou deste narrador anónimo, não se sabe de onde surgiu a imagem de um balão de criança, a mão a abrir-se e a soltar o cordel, o balão a subir ao céu e, lá no alto, a ser levado pelo vento, cada vez mais longe, a cor ainda a distinguir-se, pequeno ponto, mas a dor terrível de todo o céu ao seu dispor, como todo o esquecimento, todo o abandono."
"A mesma pessoa sabia e não sabia, tal como está a acontecer aqui. Poucas personagens tentam conhecer o título do romance a que pertencem. Até se forem capazes de intuí-lo, até se passarem longos capítulos a imaginá-lo, parágrafos enormes nunca são capazes de ter a certeza absoluta. No entanto, quem escreve o romance avaliou o título de vários prismas, quem o lê parte desse enunciado."


Pontuação: 9/10


Gonçalo Martins de Matos