domingo, 2 de julho de 2017

"O Anjo da Tempestade", de Nuno Júdice

   Há livros que temos há tanto tempo em casa que chega o dia em que decidimos mergulhar de cabeça no que tem para oferecer. Foi este o caso de O Anjo da Tempestade. E que bem que soube esse mergulho! A obra em prosa de Nuno Júdice não é muito conhecida do público, uma vez que a sua obra poética é mais difundida, o que leva a que haja pouca divulgação daquela. Este romance valeu ao seu autor o Prémio Literário Fernando Namora. 
   A história é um desenvolvimento contínuo de uma premissa inicial, que é o assassinato de um tio-bisavô do narrador em meados do século XIX. Com este ponto de partida, o narrador desenvolve duas histórias em paralelo: a do seu tio-bisavô, que é desenvolvida com um misto de suposições e de hipóteses do que provavelmente aconteceu, e a sua própria história, feita de angústias e de oportunidades perdidas. De hipótese em hipótese, o narrador vai compondo o que se passou afinal nesse meado de século, aproveitando cada hipótese para discorrer sobre vários temas ligados à vida e à morte, ligando a essa história a outra de maneira a que a fusão das duas resulte numa espécie de resumo de um momento da sua vida. A história do romance pouco mais é que isto. Mas o que o torna interessante é o que mencionarei de seguida, porque uma boa história não é necessariamente igual a muita ação. 
   O romance é sublimemente escrito. O domínio do autor da língua é notável, conseguindo este manter-se num registo coloquial sem descair no corriqueiro, algo que é bastantes vezes muito complicado de equilibrar. Neste romance, as possibilidades e os acontecimentos misturam-se na mesma realidade. Como já referi, todo o desenvolvimento parte da premissa da morte do tio-bisavô do narrador, sendo a partir desse ponto de partida colocadas várias hipóteses pelas quais o narrador envereda ou não, como se tivesse a certeza do caminho a seguir numa estrada que bifurca muitas vezes. As ligações temáticas entre obras de arte e de música e os acontecimentos que narra compõem muito do fascínio que este romance exerce. O tema do amor e da morte atravessa todo o romance. As pinturas, as músicas e os escritos mencionados no texto ligam-se em pequenos pormenores às duas histórias principais, criando um círculo temático que corresponde muito resumidamente à vida humana. É também maravilhosa a forma equilibrada como se desenvolve a história, sem perder nunca o interesse no que está a ser descrito, apesar de todo o romance girar em torno dos mesmos temas. 
   Tenho pena que a prosa de Nuno Júdice não seja tão conhecida, porque milhares de leitores passam ao lado de obras como esta. Com isto quero dizer que esta é uma obra muito bem escrita e muito equilibrada que merece ser lida por todos quantos apreciem uma história bem desenvolvida. 

Citações:
"Ficará aqui a dúvida sobre se o crime teria sido consumado; e esta dúvida, no fundo, está bem dentro dos nossos hábitos e costumes, porque é raro que um processo chegue a bom termo, e quando chega demorou tanto tempo que o criminoso, caso o seja, ou mesmo que o não seja, transformar-se-á sempre em vítima, podendo acusar o poder de o manter indefinidamente atrás das grades, enquanto se discute se um papel está bom ou não está, ou se apura tal ou tal facto, que de tanto se apurar acaba por se transformar mais numa peça de ficção do que num relato que corresponde a um acontecimento determinado."
"Estes homens, relegados para uma nota de rodapé sociológica, não alteram a velha ideia de que somos um país de brandos costumes; talvez, porém, não o sejamos até ao fim, só que a nossa violência é uma violência em diminutivo, a violênciazinha de que somos capazes, como em tantas outras coisas o inho se insinua, impedindo-nos de ser grandes, com essa grandeza que entrou na essência de outros países como a França, onde dizer-se grandeur não é o mesmo que nós dizermos grandeza com a pronúncia redonda e profunda do francês a esmagar a sonoridade decrescente do português, onde o próprio império, estendido pelo mundo, no mundo se prolongava em diminutivo, por muito grande que fosse o território."
"O problema, hoje, é que tudo o que dizemos tem um duplo sentido. A inocência acabou. Somos o que dizemos; mas o que dizemos está para além de nós, nesse magma de significados que nos arrasta, como as enxurradas, e onde temos de procurar uma ou outra palavra a que nos agarrarmos, como uma tábua de salvação."


Pontuação: 9.1/10


Gonçalo Martins de Matos